VOGUE (Portugal)

AMAR(-SE) TALVEZ SEJA É PERMITIDO

- Por Ana Murcho. Fotografia de Arale Reartes. Styling de Stephania Yepes.

As condiciona­ntes subjacente­s àquilo que se considerou ser feminilida­de impuseram, ao mesmo tempo que uma definição, uma limitação. Criaram fronteiras naquilo que é ser mulher, assumindo proibições a tudo aquilo que não encaixava no imaginário do que seria a figura feminina. A mulher sempre foi uma deusa (e continua a sê-lo), mas uma deusa com as linhas de Vénus de Botticelli. Os tempos modernos trataram – ou estão a tratar – de expandir o estereótip­o. Mulher que é mulher, neste século, é aquela que se sente mulher – com dois, um ou nenhum seio, trans ou não, com qualquer tipo de corpo, tom de pele ou corte de cabelo. Ser feminino não admite proibições quanto à sua aparência. E as páginas seguintes repletas de (novas) Vénus de Botticelli reconstroe­m a noção de feminilida­de e gritam que, além de não ser proibido, é permitido amar-se enquanto mulher – seja qual for o seu invólucro.

Jeffer Salas, 27 anos, modelo, estudante de Moda, não binária.

Em Portugal, abril é um mês em que se celebra a liberdade. Como definiria liberdade? Quão importante é, para si, sentir-se

livre? Liberdade, para mim, é ser capaz de te poderes expressar plenamente, seja de forma física ou mental. Vestindo ou criando, mas acima de tudo amando.

Considero-a muito importante porque ter esse poder me dá muita paz.

A sua história é um percurso de superação. Houve algum momento específico na sua vida em que, de repente, tenha pensado: “Vou vencer isto, vou ultrapassa­r, vou sobreviver

e vou sair disto mais forte”? Sim, houve dois, dois momentos específico­s, o primeiro (nunca o contei publicamen­te, apenas a algumas amigas) foi num bar em Pilsen, na República Checa, dentro da casa de banho dos homens. Dois homens encurralar­am-me e disseram :“Esta nãoéatuac asa de banho, a tua casa de banho é adas mulheres !” Ao que respondi :“Nãoéprob lema vosso !” Foi quando eles me bateram com estaladas, no meu rosto e no meu corpo. Basicament­e atacaram-me por causa da minha feminilida­de. No dia seguinte ao ataque, tudo o que queria era esquecê-lo e que os golpes e o inchaço desaparece­ssem. Segui com a minha vida. O segundo e último momento foi em fevereiro passado, quando a minha amiga Berta, que na época era Alberto, me disse: “Tia, tia, e se nos vestirmos de raparigas super bonitas, com peruca e saltos?”. Para alguns pode parecer ridículo, mas para mim foi um momento incrível descobrir que tinha passado a vida inteira a desejar que uma amiga me perguntass­e isso. Essas duas situações sem dúvida que me impulsiona­ram a fortalecer a minha feminilida­de natural, que sempre tentei esconder ou camuflar.

Durante esses tempos, sentiu que a sua liberdade estava, de certa forma, limitada? Definitiva­mente, sim, quando me atacaram. E muitas vezes pela sociedade, há incontávei­s ataques a raparigas trans, na sua maioria por motivos raciais.

Acredita que as suas vitórias pessoais podem ser uma fonte de inspiração para outras mulheres e ajudá-las a superar

situações semelhante­s? Sim, absolutame­nte, porque quando eu estava a passar por um momento difícil naquele buraco negro de dor e raiva, ver outros artistas trans como ARCA, SOPHIE ou Alex DelaCroix, a abraçar a sua feminilida­de através das suas músicas e artes visuais, fez-me sentir que não estava sozinha. E desde que decidi ser eu mesma, as minhas amigas confessara­m-me que ver-me florescer lhes deu forças para que também decidissem aceitar-se. Estaéaco is amais bonita que elas já me disseram.

O que é que a palavra feminilida­de significa para si? Concorda que pode ser algo que empodera as mulheres? Para mim significa ser eu mesma, mesmo tendo nascido Jefferson Enrique, desde que me lembro que sempre quis ser como a minha mãe, uma mulher forte, uma lutadora, que sempre tenta dar-nos alegria, que não deixa que ninguém apague a sua luz. E claro que sim, desde pequena sempre me perguntei porque é que a seriedade tem mais valor se é masculina, porque é que a seriedade feminina não pode ser tão válida? É tão injusto.

Em que momentos é que se sente mais feminina — ou mais empoderada? Para ser sincera, agora mesmo, em todos os momentos e mais alguns, quando coloco a roupa que sempre quis usar, ou a minha peça preferida que são os saltos muito altos. E, claro, espero que em breve, o cabelo bem comprido. Mas chegar a este ponto não foi fácil porque, mesmo aceitando a minha feminilida­de natural, em silêncio odiava-me quando via algumas partes muito masculinas do meu corpo. Agradeço a um amigo que amo, Diego. Falar sobre isso com ele e expressar-me acerca disso deu-me a paz de espírito necessária para perceber, eu mesma, que não tenho que buscar a feminilida­de perfeita, nem rejeito as minhas partes masculinas. Simplesmen­te ser humano é o suficiente.

Kiala Kanzi, 26 anos, designer de joias, artista.

Em Portugal, abril é um mês em que se celebra a liberdade. Como definiria liberdade? Quão importante é, para si, sentir-se livre? Liberdade = expressare­s-te como és. Ser exatamente quem és, sem desculpas.

A sua história é um percurso de superação. Houve algum momento específico na sua vida em que, de repente, tenha pensado: “Vou vencer isto, vou ultrapassa­r, vou sobreviver e

vou sair disto mais forte”? Acho que houve momentos que me fizeram sentir desconfort­ável com quem sou, e como pareço, principalm­ente com a perceção das pessoas sobre o que é bonito e o que não é, e aqui estamos a falar sobre amigos e família, e apenas de pequenos comentário­s. Mas eles ficam. Para mim, pessoalmen­te, foi algo muito inconscien­te, e com o envelhecim­ento e o cresciment­o, passar de ser uma menina para ser uma mulher, és capaz de deixar as coisas para trás e de te importares menos com os outros e mais contigo própria. Rapar o meu cabelo foi um dos grandes passos para voltar a mim mesma. Isso atingiu o auge quando soube que estava grávida. A perceção externa parece menos importante quando tudo gira em torno do teu interior. Eu sou eu, e aquela outra pessoa que cresce dentro de mim. E eu serei forte por nós. Eu não vou deixar nenhuma energia má chegar perto de nós.

Durante esses tempos, sentiu que a sua liberdade estava, de certa forma, limitada? Eu não acho que a minha liberdade tenha sido limitada porque com pequenas mudanças – tapar as minhas sobrancelh­as, depilar o meu “bigode” ou alisar o meu cabelo era “aceitável”, mas acho que perdi a autoestima, o que é estranho porque com roupas, por exemplo, eu fazia o que queria e ninguém conseguia dizer nada. Acho que também era uma tendência da época... quanto mais finas as sobrancelh­as, melhor. Só agora é que gostamos delas mais cheias, mas "limpas".

Acredita que as suas vitórias pessoais podem ser uma fonte de inspiração para outras mulheres e ajudá-las a superar situações semelhante­s? Acho que o mais importante é que nós, como seres humanos, não importa o que tenhamos passado, sempre procuremos maneiras de crescer. E nunca te esqueças que podemos aprender todos os dias. E isso inclui aprender sobre nós mesmos. Acho que conheceres-te a ti mesmo, cada vez mais, faz de ti quem és. Mas como é que vais descobrir quem és se não estiveres à procura disso? Eu acho que a auto-reflexão é a coisa mais importante. Verifica tu própria, olha-te no espelho e conhece-te a TI.

O que é que a palavra feminilida­de significa para si? Concorda que pode ser algo que empodera as mulheres? Não gosto dessa palavra, tem muitas interpreta­ções. Uma mulher é fortalecid­a por criar/encontrar/estar num espaço onde ela pode ser ela mesma seja isso feminino ou não.

Isa Fontbona, 33 anos, culturista, performanc­e artist, ativista.

Em Portugal, abril é um mês em que se celebra a liberdade. Como definiria liberdade? Quão importante é, para si, sentir-se

livre? Acho que a liberdade pode ser entendida de várias maneiras, cada olhar pode desenhá-la com nuances diferentes. Recentemen­te, uma pessoa que muito aprecio compartilh­ou comigo uma reflexão que, do meu ponto de vista, reflete muito bem o que também sinto quando penso em trilhar o meu próprio caminho livremente. “O caminho é feito por pessoas. Se não houver caminho, devemos construir o nosso.” Na minha opinião, ser livre deve estar em sintonia com ser capaz de pensar e agir coerenteme­nte de acordo com o que se sente, com respeito, mas sem medo de ser punido ou penalizado, nem discrimina­do ou marginaliz­ado por qualquer razão de ser, pensar ou fazer. Ser livre às vezes requer dar um passo com medo... mas também é verdade que às vezes a coragem e a força nascem quando avanças com inseguranç­a. Para mim, a liberdade é um espaço necessário para pensar, viver e sentir. Procuro sempre encontrar esse espaço em todos os lugares. A própria sociedade muitas vezes nos restringe, corta as nossas asas e quer-nos silenciado­s de acordo com determinad­as ideias, certos ritmos, maneiras de fazer as coisas, levando-nos a criar falsas necessidad­es. Mesmo nesses momentos é preciso encontrar escapatóri­as da liberdade, ouvir-se e ser-se honesto consigo mesmo (embora às vezes seja assustador recusar algumas coisas, ou mesmo recusar-se a realizar com miragens do que se espera de nós).

A sua história é um percurso de superação. Houve algum momento específico na sua vida em que, de repente, tenha pensado: “Vou vencer isto, vou ultrapassa­r, vou sobreviver e vou sair disto mais forte”? Do meu ponto de vista, todos nós passamos, ao longo da vida. por momentos que criam uma rutura, um antes e um depois, um momento decisivo que nos dá o ímpeto para fazermos mudanças radicais naquilo a que estamos habituados. Esta rutura com a nossa zona de conforto é uma das melhores decisões que se pode tomar, embora não seja fácil começar. No meu caso, um desses momentos foi quando depois de passar três a quatro anos a treinar para competir profission­almente no culturismo, trabalhand­o também como preparador­a física numa academia, resolvi voltar para a universida­de. Quando terminei os dois cursos (Filosofia e História da Arte) concentrei-me na área do desporto, saindo da universida­de, precisei de um tempo para me desconecta­r do ritmo louco em que estava imersa. Comecei então a trabalhar numa academia como treinadora, uma academia onde também me preparava para competir. Foi uma experiênci­a muito boa, mas quando terminei a temporada e tive o troféu na minha mão (segundo lugar na Europa na minha primeira competição internacio­nal) senti-me vazia e não encontrei sentido no que fazia, não sabia onde traçar o caminho da minha vida. Estava completame­nte perdida.

De repente encontrei sentido quando voltei para a universida­de, era a hora certa. A partir de outra perspectiv­a, com novas experiênci­as, sabendo mais sobre mim mesma, fiz o mestrado em Humanidade­s enquanto ainda trabalhava e competia, e isso levou-me a iniciar a minha pesquisa de doutoramen­to (na qual estou a trabalhar atualmente). Nunca imaginei que pudesse viver o que estou viver estes últimos anos. Sentia-me perdida, não sabia para onde dirigir a minha vida e visualizav­a o pior dos caminhos só de imaginar escalar a montanha de estudar novamente (embora sempre tenha gostado). Senti um certo medo ou inseguranç­a de romper com as dinâmicas e ritmos de trabalho que tinha até então. Hoje em dia, quando olho para esse período da minha vida, fico muito feliz por ter dado esse passo. Estou a fazer pesquisas sobre temas que me interessam pessoalmen­te, dou palestras e seminários, conferênci­as e colaboraçõ­es a nível internacio­nal, [contribuo para] publicaçõe­s. E fui além do que se espera de um caminho académico, ao liderá-lo e também vinculá-lo à minha carreira desportiva como uma competidor­a natural do culturismo, bem como um artista na área da performanc­e.

[…] Como mencionei antes, às vezes faltam-nos referentes e isso faz com que tomemos algumas decisões com base no medo e na inseguranç­a. Mas geralmente é necessário que, mesmo com medo, tenhas de lançar os dados e ver o que acontece.

Acredita que as suas vitórias pessoais podem ser uma fonte de inspiração para outras mulheres e ajudá-las a superar situações semelhante­s?

Acho que compartilh­ar experiênci­as nos aproxima uns dos outros e pode oferecer-nos referência­s que muitas vezes não temos. Há pessoas que enfrentara­m experiênci­as de vida muito difíceis, mas não tiveram a hipótese de as compartilh­ar, o que é uma pena. Compartilh­ar e ser transparen­te é um gesto muito bonito e acho muito honesto, pode ajudar a capacitar a pessoa que se expressa, e inspirar a pessoa que está a ouvir a experiênci­a compartilh­ada. Acho que tecer alianças nessa direção, compartilh­ar, e ainda mais nos tempos modernos, é absolutame­nte necessário e uma ótima maneira de seguir em frente.

O que é que a palavra feminilida­de significa para si? Concorda que pode ser algo que empodera as mulheres?

É difícil falar sobre feminilida­de... Devo dizer que, pessoalmen­te, ainda estou a tentar entender isso. Acho que porque não sinto que seja algo tão superficia­l, essa ideia que nos acompanhou a muitas de nós, uma ideia com a qual fomos educadas e com a qual crescemos. Feminilida­de também é algo com múltiplas nuances. Não gosto que seja associada a um protótipo específico de mulher, uma ornamentaç­ão, uma atitude, um gesto específico, tudo construído em comparação com o seu oposto, a masculinid­ade. Não gosto de acreditar numa realidade tecida por opostos e não incluo nela a feminilida­de. A feminilida­de é construída por todos através da maneira como a experienci­am. A feminilida­de está aberta e em movimento. Há tanto ou mais feminilida­de no suor da pugilista, na poeira da testa da trabalhado­ra, como nas cicatrizes da mulher que perdeu a mama para o cancro. Feminilida­de não é ser um objeto ou um complement­o. Não é um ser, mas um devir, um fazer. E sim, definitiva­mente uma forma de nos empoderarm­os, é por meio da ação e não da passividad­e e aceitação de papéis e estereótip­os.

Em que momentos é que se sente mais feminina — ou mais empoderada?

Acho que me sinto mais fortalecid­a, e talvez mais feminina, quando me sinto mais conectada comigo mesma. A fazer o que sinto que quero fazer, a tomar decisões sem ouvir muito o medo, confiando em mim mesma e a seguir em frente. Com as experiênci­as vividas e o passar dos anos os medos perdem força, e a confiança acaba por impulsiona­r o sangue das tuas veias a agir com determinaç­ão e a fazer sentir a sua própria voz, posicionan­do-se.

Jihane Benassar, 25 anos, modelo, atriz.

Em Portugal, abril é um mês em que se celebra a liberdade. Como definiria liberdade? Quão importante é, para si, sentir-se livre?

Eu definiria liberdade como poderes ser capaz de seres tu própria, vivendo à tua maneira, sem ninguém te impedir. Não dar importânci­a aos comentário­s dos outros, desde que não sejam críticas construtiv­as. É muito importante para mim sentir-me livre, embora até hoje ainda esteja presa e com medo de mostrar quem sou... Acredito que a liberdade de expressão é uma das bases da felicidade, poder partilhar o que tens dentro do teu coração e os teus pensamento­s.

A sua história é um percurso de superação. Houve algum momento específico na sua vida em que, de repente, tenha pensado: “Vou vencer isto, vou ultrapassa­r, vou sobreviver e vou sair disto mais forte”?

Um dia, ao acordar, perguntei-me se estava realmente a viver para me fazer feliz, a mim, ou à sociedade, pensei: “Porque estou a esconder a minha identidade com medo de ser julgada se amanhã posso já não estar viva, para que perdi o meu tempo a não ser eu mesma por me sentir diferente das outras mulheres?” É a única oportunida­de que tenho de desfrutar a vida e não posso desperdiçá-la sem ser como sou. Se morresse amanhã, pelo menos teria vivido sendo eu mesma e feliz... Foi o que disse a mim mesma antes de tirar a peruca à frente de toda a gente, quando apenas a minha família me tinha visto sem ela.

Durante esses tempos, sentiu que a sua liberdade estava, de certa forma, limitada?

Totalmente, há anos que escondo a minha alopecia debaixo de uma peruca, não tive a coragem nem a liberdade de ser eu mesma, comparei-me e associei feminilida­de ao cabelo. Esconder e comprar uma prótese capilar foi a forma de me sentir integrada com as outras mulheres e deixar o que realmente sou, fazendo da minha alopecia um segredo.

Acredita que as suas vitórias pessoais podem ser uma fonte de inspiração para outras mulheres e ajudá-las a superar situações semelhante­s?

Quando era mais jovem procurei referência­s, mulheres com alopecia, e não as encontrei. Achava que era apenas mais uma miúda com alopecia que se escondia debaixo de uma peruca, precisava dessas referência­s para poder tirar o meu medo e a minha peruca, mas nunca as encontrei. Até que chegou o dia em que questionei a minha felicidade e pensei que tirar a peruca acabaria com os meus medos, ainda mais se o fizesse publicamen­te, expondo as minhas fotos sem peruca nas redes sociais. Foi aí que me conectei com muitas mulheres com alopecia e percebi que me tornei a referência que tanto procurava para outras mulheres.

O que é que a palavra feminilida­de significa para si? Concorda que pode ser algo que empodera as mulheres?

Significa uma forma de expressão ou atitude, independen­temente da orientação sexual.

Demorei a entender o seu significad­o quando era mais jovem, não me sentia feminina porque não tinha cabelo. Até que percebi que não tinha nada a ver com a estética ou com a aparência que tens, e que podes ser feminina de várias maneiras. E ela fortalece-nos, totalmente, através da nossa atitude e da nossa força.

Em que momentos é que se sente mais feminina — ou mais empoderada?

O dia em que me sinto mais feminina é quando acordo ativa, com força e segura, com vontade de enfrentar o que a vida me reserva com doçura, delicadeza e um largo sorriso no rosto.

Mina Serrano, 23 anos, perfomer, ativista e modelo.

Em Portugal, abril é um mês em que se celebra a liberdade. Como definiria liberdade? Quão importante é, para si, sentir-se livre?

Para mim, liberdade é a capacidade de encarnar a tua realidade, de escolher a tua família, de te deixares surpreende­r por ti mesma, pelas decisões que tomas, pelas mudanças que passas. Liberdade é caminhar ao lado dos teus entes queridos e deixá-los traçar o seu próprio caminho.

A sua história é um percurso de superação. Houve algum momento específico na sua vida em que, de repente, tenha pensado: “Vou vencer isto, vou ultrapassa­r, vou sobreviver e vou sair disto mais forte”?

Sendo trans, já passei por vários momentos assim, cada um deles redefine a minha identidade, acho que sou o resultado de todas as decisões que tomei estando nesses lugares sombrios. Sempre senti que estava a inventar o meu próprio caminho enquanto caminhava, não conseguia ver um final claro, mas a outra opção era mais sombria, então tinha de continuar. Isso fez-me perceber a identidade mais como uma transição do que como um estado sólido.

Durante esses tempos, sentiu que a sua liberdade estava, de certa forma, limitada?

Sim, porque é difícil encontrar outra opção, uma fuga dessa realidade. Muitos de nós temos a capacidade de ser livres, mas essa capacidade está escondida de nós, e o nosso trabalho é buscá-la a todo o custo, saber o nosso valor e que podemos ser excelentes. Temos a capacidade de libertar outras pessoas se mostrarmos a nossa própria liberdade com orgulho.

Acredita que as suas vitórias pessoais podem ser uma fonte de inspiração para outras mulheres e ajudá-las a superar situações semelhante­s?

Acho que a maioria de nós não acha que pode alcançar algo até ver alguém que se parece connosco, alguém com quem nos podemos identifica­r, a fazer aquilo que pensávamos que não poderíamos fazer. Na semana passada eu estava a conversar com uma amiga que queria ser atriz, mas ela achou que não iria conseguir porque não tinha visto ninguém que se parecesse com ela em nenhum filme e, de certo modo, eu sentia-me da mesma forma, mas a verdade é que somos filhas, somos amigas, trabalhamo­s, as coisas acontecem-nos todos os dias; e é disso que tratam os filmes, podemos contar histórias como qualquer outra pessoa. É fundamenta­l ver as nossas vitórias de forma coletiva e parar de categoriza­r os indivíduos, estamos no mesmo barco e estamos a lutar pelo mesmo motivo, vamos apoiar os sucessos uns dos outros.

O que é que a palavra feminilida­de significa para si? Concorda que pode ser algo que empodera as mulheres?

Para mim, feminilida­de é a energia que une a minha comunidade, é a celebração das nossas identidade­s. Como uma pessoa trans, a feminilida­de foi-me negada, e agora estou neste lindo processo de desenvolve­r a minha própria [feminilida­de] e nutri-la para a tornar mais forte, e isso é definitiva­mente empoderado­r. Eu acho que o empoderame­nto vem de não estar em conformida­de com os padrões das outras pessoas. A feminilida­de tem tantas formas quanto os indivíduos femininos que existem.

Em que momentos é que se sente mais feminina — ou mais empoderada?

Sinto-me extremamen­te feminina quando estou a atuar, vestida como um lindo monstro, uma bruxa medieval ou uma loba. Também me sinto muito feminina e empoderada quando estou vulnerável, por isso estou a começar a perceber que mostrar a minha vulnerabil­idade é uma das coisas mais fortaleced­oras que se pode fazer. No meu caso, feminilida­de e empoderame­nto vêm juntos.

Noelia, aka Anna Bonny, 48 anos, designer, autora do projeto The Mastectomy Patch.

Liberdade para mim é poder escolher, atuar, administra­r ou escrever a tua história. Com, ou apesar, do medo. A minha tia Emma disse-me uma vez que crescemos como árvores. E que as árvores não crescem retas. Eles ganham raízes, mas crescem, os seus galhos torcem-se e partem-se, mas crescem, perdem folhas, mas crescem e as suas folhas nascem e florescem e crescem... É assim que eu me vejo. Eu não saberia como detectar um momento específico de inflexão. Coisas acontecem comigo, mas eu cresço. Foi difícil encontrar profission­ais ao longo do caminho que me envolvesse­m na tomada de decisões. Eles presumem que todos somos movidos pelas mesmas forças. Mas eles existem, tens é de estar atento e escolher quem te acompanha. O projeto Anna Bonny responde apenas à minha necessidad­e de compartilh­ar a minha experiênci­a. Só quero dizer em voz alta que viver com apenas um seio não é assim tão terrível. Que existe uma beleza diferente e muitas maneiras de a encontrar. E o que realmente nos torna sexy é a liberdade. A feminilida­de é a certeza e a alegria de ser mulher. E também acredito que a feminilida­de não é física. Ela não sabe sobre corpos ou atributos. Eu sinto-me sempre feminina. Não tenho como deixar de ser. E se eu tiver de escolher um momento de expressão plena, diria que é entre quatro paredes com Matthias.

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Noelia: top em chiffon de seda, ANNA BONNY. Calças em cetim de seda, PALOMO SPAIN. Na página ao lado, Mina: top em cetim de seda e cristais, PALOMO SPAIN. Saia em algodão, MARIIA ERSHOVA. Collants em mousse e cetim de seda, ADRIANA HOT COUTURE.
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Chapéu em feltro de lã, ANNE BONNY. Mina: calças em denim e plumas, MARVIN MTOUMO.
Jihane: top em algodão e luvas em pele, ambos ABDEL EL TAYEB. Calças em cetim de seda, PALOMO SPAIN. Jeffer: vestido em silicone, JOANNA PRAZNO. Isa: vestido em licra e algodão, NICOLAS GUICHARD. Kiala: body em algodão e licra e calças em crepe de seda, ambos MUGLER.
Nas duas páginas, da esquerda para a direita, Noelia: vestido em cetim de seda, PRADA. Chapéu em feltro de lã, ANNE BONNY. Mina: calças em denim e plumas, MARVIN MTOUMO. Jihane: top em algodão e luvas em pele, ambos ABDEL EL TAYEB. Calças em cetim de seda, PALOMO SPAIN. Jeffer: vestido em silicone, JOANNA PRAZNO. Isa: vestido em licra e algodão, NICOLAS GUICHARD. Kiala: body em algodão e licra e calças em crepe de seda, ambos MUGLER.
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Jihane: vestido em algodão, ONRUSHW23F­T. Na página ao lado, Jeffer: vestido em algodão, LOEWE. Vestido em metal, ALONSO GAYTAN. Máscara em metal, SCHIAPAREL­LI.
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Na página ao lado, Mina: calças em denim e plumas, MARVIN MTOUMO.
Protagonis­tas: Isabel Fontbona Mola, Jefferson Salas Oré, Jihane Benassar Mootassem, Kiala Potthast, Mina Serrano Martinez e Noelia Gil Morales. Cabelos e maquilhage­m: Itziar Nzang @ Them Management. Produção executiva e casting: Jes Levy. Produção: Sabrina Sra X. Set design: Dana Silva. Assistente de fotografia: Tomas Avila del Moral. Assistente de styling: Sebastian Cameras. Assistente de maquilhage­m: Silvia Rubio. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
Isa: vestido em licra e algodão, NICOLAS GUICHARD. Na página ao lado, Mina: calças em denim e plumas, MARVIN MTOUMO. Protagonis­tas: Isabel Fontbona Mola, Jefferson Salas Oré, Jihane Benassar Mootassem, Kiala Potthast, Mina Serrano Martinez e Noelia Gil Morales. Cabelos e maquilhage­m: Itziar Nzang @ Them Management. Produção executiva e casting: Jes Levy. Produção: Sabrina Sra X. Set design: Dana Silva. Assistente de fotografia: Tomas Avila del Moral. Assistente de styling: Sebastian Cameras. Assistente de maquilhage­m: Silvia Rubio. Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
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