A INSUSTENTÁVEL ANGÚSTIA DE SER HUMANO
Tanto quanto nos é possível saber, o homem é o único animal que sente culpa. No entanto, essa culpa, esse peso, nem sempre existe porque fez algo errado ou porque cometeu um crime. Por vezes, muitas vezes, essa culpa, esse peso, não está associada a nenhum ato concreto, mas apenas, e só, à sua existência. E é precisamente por isso que custa tanto ignorá-la.
"Há um problema com o seu passaporte.” A frase, proferida em inglês, foi-me dita por um funcionário do aeroporto de Newark, Nova Iorque, em meados de 2013. Ato contínuo, o meu corpo teve uma descarga de adrenalina tal que não sei, até hoje, como consegui manter-me de pé. O senhor, sentado no interior de um pequeno gabinete, igual a tantos outros naquela extensa linha internacionalmente conhecida como “Passport Control”, passou de cordial a rude em menos de nada. Levantou-se, saiu do seu guichê, e, com o meu passaporte na mão, encaminhou-me para uma sala grande, em tudo semelhante a uma repartição de finanças. “Agora espera aqui.” Ali, naquele ambiente pesado e silencioso, deviam estar meia dúzia de pessoas, aparentemente turistas, como eu, que aguardavam “por qualquer coisa”, mas cuja permanência raramente ultrapassava os cinco minutos; para além delas, os únicos indivíduos presentes eram policias, que tratavam de cada “caso” atrás de um balcão que a minha memória lembra como sendo de madeira. Assim que ouvi o meu nome soube que ia ter problemas. A primeira pergunta que a senhora agente me fez, “O que é que está aqui a fazer?” colou-se à segunda, “Porque é que já veio tantas vezes aos Estados Unidos?”, que por sua vez se misturou com a terceira, “Tem alguma forma de justificar a sua presença, aqui, quando esteve cá em abril [estávamos no final de julho]?” e com dezenas de outras, muitas delas repetidas, misturadas como ratoeiras, para me apanhar em falso. “Vim visitar o meu namorado, que é americano.” Repeti-lhe o que já tinha dito antes, na zona aparentemente pacífica do “Passport Control.” Disse a verdade — depois disso pensei que se tivesse respondido apenas “Estou de férias” não tinha tido metade das chatices.
Durante mais de uma hora, fui obrigada a contar-lhe, tim tim por tim tim, como é que nos tínhamos conhecido, onde é que tinha ficado nas minhas estadias anteriores nos EUA (“Tem a certeza de que esteve a morar em West Hollywood? Pareceu-me ter dito outra coisa, há pouco…”), quais eram as minhas “reais intenções com aquela viagem” — na cabeça dela, seria casar-me, por interesse, claro, já que era impossível que estivéssemos apaixonados, tentar arranjar um emprego ou qualquer outra forma de ficar no país de modo ilegal — o que fazia da minha vida profissional, quanto dinheiro tinha na minha conta bancária, e, por fim, quando nada disto a convenceu, vi-me obrigada a entregar-lhe o meu telefone, passar-lhe o meu
pin, e deixar que fizesse com ele o que bem lhe apetecesse. Posteriormente, ao consultar uma advogada, soube que se não o tivesse feito teria sido imediatamente recambiada para Portugal. Ela ligou para o meu namorado, que confirmou tudo o que eu, apesar de estar num estado algures entre o pânico total e a incredulidade, balbuciei — ainda não sei como não me desfiz em lágrimas, tal foi a pressão psicológica para me enganar e me contradizer — e devolveu-me o passaporte, não sem antes me avisar de que “era melhor não tentar nada enquanto estivesse ali.” Lembro-me do momento em que voltei ao corrupio do aeroporto como se fosse ontem: os encontrões, o barulho e correria, outrora uma maçada, eram agora sinónimo de liberdade. Toda eu tremia, toda eu duvidava de mim e da minha história, toda eu ansiava por voltar para casa e desistir de tudo. Sentia as câmaras de vigilância em cima de mim, pressentia os olhares cúmplices dos seguranças, como se soubessem do meu segredo (!), duvidava da minha capacidade em fazer o voo de ligação que me faltava para Chicago, não fossem tropeçar novamente em mim, uma mulher de 30 e poucos anos completamente banal, de blazer azul bebé, t-shirt branca e calças de ganga pretas — recordo-me como aquele blazer azul bebé ainda me fez sentir mais ridícula, a minha figura era tão inócua, tão by
the book, que acusar-me do que quer que fosse era como estar dentro de um filme distópico. Quando finalmente me sentei no avião que me levava ao meu destino final, estava inundada num enorme sentimento de culpa. Mas culpa de quê, exatamente?
Foi essa a questão que lancei a Bernardo Coelho, sociólogo, investigador e professor universitário. “Num plano mais abstrato, podemos perceber as proibições enquanto estruturas sociais de caráter simbólico e ideológico. São construções sociais e históricas que têm como efeito o constrangimento da capacidade de ação ou, se quisermos, a limitação do campo de possibilidades de ação dos indivíduos.” Dito de outra forma, aquilo que alguém, ou alguma entidade, decide que está certo ou que está errado, que é permitido ou que é proibido, é interiorizado por nós, cidadãos, de forma natural, implícita, sem disso nos darmos conta. Depois, esse conjunto de regras “fazem parte de uma matriz, digamos assim, ou de uma grelha, que todos nós, enquanto indivíduos, temos, para nos avaliarmos a nós próprios, para avaliarmos os contextos de interação em que estamos integrados, e para percebermos quais são as reais possibilidades da nossa ação e da nossa interação. Elas estão interiorizadas em nós, são aprendidas socialmente, são aprendidas através das nossas experiências pessoais e também da transmissão ou da socialização sobre o que é possível e impossível fazer, e formatam, digamos assim, essa matriz a partir da qual nós conseguimos perspectivar a nossa vida, traçar os nossos projetos de vida. Aliás, os nossos projetos de vida também não são, digamos assim, estranhos ao conjunto das proibições existentes, ao conjunto das limitações à nossa ação, as limitações simbólico-ideológicas que possam existir à concretização dos nossos projetos.” E exemplifica: “As proibições enquanto estruturas simbólico-ideológicas podem ter, depois, várias formas. Podem ter formas jurídico-normativas, por exemplo, as leis, que são claramente formas de proibir, de criar constrangimentos verbalizados, mas também existem outras formas, que fazem parte de narrativas culturais e sociais mais vastas. […] Estas proibições são interiorizadas por nós, indivíduos — de uma forma não consciente, porque são tácitas — nas tais grelhas que temos de avaliação e de análise das nossas vidas. Elas só se tornam evidentes quando estamos em interação, quando estamos num contexto particular de ação, aí confrontamo-nos com a existência das proibições, com a existência de impossibilidades de ação. É num momento e num contexto concreto, objetivo e interacional, que nos apercebemos que temos um conjunto de limitações determinadas por um conjunto de proibições e constrangimentos. Mas é só nesse momento em que estamos, de facto, a agir, que essas proibições se tornam evidentes, sejam elas legais, sejam elas tácitas e culturais, é só no momento da interação que elas se tornam absolutamente evidentes e absolutamente constrangedoras da nossa ação, daquilo que vamos fazer ou dizer.” Foi por isso que, naquele dia, me senti culpada. Porque a minha matriz estava formatada para sentir culpa em situações de confronto com forças de autoridade. Mesmo sem ter feito nada de errado. Sobretudo não tendo feito nada de errado.
A culpa não morre solteira. Pelo menos é isso que diz o ditado. E não morre. No meu caso concreto — e, estou em crer, no de tantos portugueses com 40 anos ou mais — a culpa morre acompanhada, com décadas de um passado ditatorial que deixou muita moça. “As proibições são historicamente produzidas, portanto há uma memória social e uma memória histórica. Apesar de termos quase 50 anos de democracia, a verdade é que temos outros tantos de ditadura. Portanto ainda existe uma memória histórica, uma memória social, e muitas vezes uma memória familiar e pessoal sobre o tempo de ditadura e sobre um tempo de fortes constrangimentos relacionados com um regime autoritário e fascista. Isso é transportado para as nossas matrizes, isso ainda existe nas nossas matrizes de pensamento e de avaliação da nossa própria ação, da nossa vida e do mundo. Esses constrangimentos de ordem claramente política marcam, também, a história dos indivíduos, e isso não se apaga de uma penada, não é? Continuam a marcar, se quisermos, pelo menos em algumas gerações, as matrizes de pensamento e as matrizes de avaliação da nossa ação — seja por rejeição desses proibicionismos e desse autoritarismo, seja por uma complacência relativamente a essas lógicas autoritárias.” Não era suposto, por esta altura, termos perdido o medo? Termos gritado “basta” e enfrentado o touro pelos cornos? Quem não viveu o horror de anos e anos de ditadura cresceu, de certa forma, com o trauma daqueles cuja asfixia de pensamento tinha sido derrubada pouco tempo antes, com o 25 de Abril de 1974. É possível que a geração nascida imediatamente a seguir à queda do regime ainda tenha sequelas desse período cinzento da História de Portugal? É. Vejo-o na forma como reagimos de todas as vezes que somos confrontados com figuras de autoridade — o medo, o pânico, o “será que vão encontrar o corpo na mala do carro”, quando não há razão para medo, motivo para pânico, e nunca, jamais, corpo algum na mala do carro. É uma reação automática, que talvez se esteja a dissipar entre os mais novos, mas que permanece, imutável, entre muitos de nós. “E se quando um polícia me manda parar é porque matei alguém e não me lembro?”, brincava uma amiga, há meses, quando abordávamos este tema. “É o que penso sempre”, sosseguei-a.
Tudo isto tem uma razão de ser, garante Bernardo
Coelho. “Quando nos confrontamos com forças militares ou com instituições que representam a autoridade do Estado, esse é um tipo de interação em que estamos numa relação desigual de poder. Essas instituições têm poderes particulares conferidos por parte do Estado, nomeadamente o exercício de violência, o constrangimento da nossa ação — podemos ser presos, podemos ser detidos, enfim… Isso faz com que estejamos numa posição de desequilíbrio de poder, numa lógica de desigualdade. Nesse contexto, a interação vai ser condicionada pelo quê? Vai ser condicionada por aquilo que interiorizamos, pelas tais grelhas — num operação stop, por exemplo, o que é que vai condicionar a nossa interação com os agentes da polícia que nos mandam parar? É, por um lado, a tal matriz de avaliação e de perceção da realidade e do mundo, acerca das proibições, e o que [para nós] significa ou representa aquela instituição ou aquela autoridade, e isso vai condicionar a forma como vamos reagir. E podemos sentir-nos culpados, podemos sentir medo, porque temos interiorizada não só a desigualdade de posições que ocupamos, nós, enquanto cidadãos, e a autoridade, que tem conferidos poderes particulares, e portanto isso pode produzir essa sensação de culpa, ou a sensação de medo, ou eventualmente até de zanga. A nossa reação e os nossos sentimentos relativamente a esse contexto interacional vão depender, em grande medida, dessas nossas disposições para conseguirmos pensar a interação em que estamos envolvidos.” Ninguém sabe como vai comportar-se num momento que ainda não aconteceu, mas é provável que, qualquer que seja a sua atitude, a culpa fique ali, de mansinho, à espreita. “Poderão haver pessoas que rejeitam essa autoridade e que até possam ter uma atitude desafiante, porque é essa a matriz que incorporaram, a da rejeição da autoridade. Por exemplo, pessoas da geração dos nossos pais que tinham uma forte rejeição a quase tudo o que eram fardas, sobretudo policiais, porque eram muito associadas com o exercício da violência e da autoridade indiscriminada, num estado autoritário e fascista. E portanto rejeitavam isso e tinham uma atitude muito desafiante relativamente à polícia no momento interacional. Outras pessoas podem perceber a desigualdade patente numa interação dessas e sentirem-se diminuídas, num certo sentido, e portanto sentirem culpa, sentirem medo, porque o poder dessa instituição que é a polícia torna imprevisível, num certo sentido, o que pode acontecer. […] E essa imprevisibilidade e esse desequilíbrio de poder faz com que possamos sentir medo ou antecipar culpas, porque não conseguimos reagir de outra forma, e sentimo-nos manietados, sentimo-nos fortemente condicionados por causa do desequilíbrio de poder e do que significam essas instituições — e a perceção do desequilibro de poder e do significado dessas instituições tem muito a ver com a forma como nós incorporamos historicamente e socialmente, e se quisermos biograficamente, ao longo da nossa vida e das nossas experiências, aquilo que é proibido e aquilo que é permitido; quem são as instituições que produzem as proibições e quem são as pessoas que só são alvo dessas proibições; quem são as pessoas que têm a capacidade de vigiar o cumprimento das proibições e quem são as pessoas vigiadas. Ora isto são lugares hierárquicos muito diferentes, e é isso que depois está patente neste contexto tão particular que estamos a tomar como exemplo, é essa desigualdade tão profunda.”
Crítico literário, ensaísta, professor — e, certamente um dos maiores intelectuais da nossa era — George Steiner (1920-2020), publicou Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento em 2005. O livro abria com o seguinte prefácio: “Schelling [filósofo alemão], entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a perceção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma ‘melancolia profunda e indestrutível’. A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do ‘ruído de fundo’, dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser. Em todo o pensamento, de acordo com Schelling, esta radiação primitiva, esta ‘matéria negra’, é uma tristeza, um pesar (Schwermut), que também é criador. A existência humana, a vida do intelecto, significa uma experiência desta melancolia e a capacidade vital de a superar. Nós somos, por assim dizer, criados ‘entristecidos’. Nesta noção existe, quase indubitavelmente, o ‘ruído de fundo’ do universo Bíblico, das relações causais entre a aquisição ilícita do conhecimento, da discriminação analítica e do banimento da espécie humana do estado de felicidade inocente. Um véu de tristeza (tristitia) cobre a passagem, por muito positiva que ela possa ser, do homo para o homo sapiens. O pensamento carrega em si um legado de culpa.” Steiner, que sabia uma ou duas coisas sobre atos de loucura tão arriscados para a sanidade mental como pensar, examinar, e ter consciência dos nossos atos, havia de perceber porque nos queixamos desta insustentável angústia de ser humano. A culpa é da culpa.