VOGUE (Portugal)

A INSUSTENTÁ­VEL ANGÚSTIA DE SER HUMANO

- Por Ana Murcho. Fotografia de Kourtney Roy.

Tanto quanto nos é possível saber, o homem é o único animal que sente culpa. No entanto, essa culpa, esse peso, nem sempre existe porque fez algo errado ou porque cometeu um crime. Por vezes, muitas vezes, essa culpa, esse peso, não está associada a nenhum ato concreto, mas apenas, e só, à sua existência. E é precisamen­te por isso que custa tanto ignorá-la.

"Há um problema com o seu passaporte.” A frase, proferida em inglês, foi-me dita por um funcionári­o do aeroporto de Newark, Nova Iorque, em meados de 2013. Ato contínuo, o meu corpo teve uma descarga de adrenalina tal que não sei, até hoje, como consegui manter-me de pé. O senhor, sentado no interior de um pequeno gabinete, igual a tantos outros naquela extensa linha internacio­nalmente conhecida como “Passport Control”, passou de cordial a rude em menos de nada. Levantou-se, saiu do seu guichê, e, com o meu passaporte na mão, encaminhou-me para uma sala grande, em tudo semelhante a uma repartição de finanças. “Agora espera aqui.” Ali, naquele ambiente pesado e silencioso, deviam estar meia dúzia de pessoas, aparenteme­nte turistas, como eu, que aguardavam “por qualquer coisa”, mas cuja permanênci­a raramente ultrapassa­va os cinco minutos; para além delas, os únicos indivíduos presentes eram policias, que tratavam de cada “caso” atrás de um balcão que a minha memória lembra como sendo de madeira. Assim que ouvi o meu nome soube que ia ter problemas. A primeira pergunta que a senhora agente me fez, “O que é que está aqui a fazer?” colou-se à segunda, “Porque é que já veio tantas vezes aos Estados Unidos?”, que por sua vez se misturou com a terceira, “Tem alguma forma de justificar a sua presença, aqui, quando esteve cá em abril [estávamos no final de julho]?” e com dezenas de outras, muitas delas repetidas, misturadas como ratoeiras, para me apanhar em falso. “Vim visitar o meu namorado, que é americano.” Repeti-lhe o que já tinha dito antes, na zona aparenteme­nte pacífica do “Passport Control.” Disse a verdade — depois disso pensei que se tivesse respondido apenas “Estou de férias” não tinha tido metade das chatices.

Durante mais de uma hora, fui obrigada a contar-lhe, tim tim por tim tim, como é que nos tínhamos conhecido, onde é que tinha ficado nas minhas estadias anteriores nos EUA (“Tem a certeza de que esteve a morar em West Hollywood? Pareceu-me ter dito outra coisa, há pouco…”), quais eram as minhas “reais intenções com aquela viagem” — na cabeça dela, seria casar-me, por interesse, claro, já que era impossível que estivéssem­os apaixonado­s, tentar arranjar um emprego ou qualquer outra forma de ficar no país de modo ilegal — o que fazia da minha vida profission­al, quanto dinheiro tinha na minha conta bancária, e, por fim, quando nada disto a convenceu, vi-me obrigada a entregar-lhe o meu telefone, passar-lhe o meu

pin, e deixar que fizesse com ele o que bem lhe apetecesse. Posteriorm­ente, ao consultar uma advogada, soube que se não o tivesse feito teria sido imediatame­nte recambiada para Portugal. Ela ligou para o meu namorado, que confirmou tudo o que eu, apesar de estar num estado algures entre o pânico total e a incredulid­ade, balbuciei — ainda não sei como não me desfiz em lágrimas, tal foi a pressão psicológic­a para me enganar e me contradize­r — e devolveu-me o passaporte, não sem antes me avisar de que “era melhor não tentar nada enquanto estivesse ali.” Lembro-me do momento em que voltei ao corrupio do aeroporto como se fosse ontem: os encontrões, o barulho e correria, outrora uma maçada, eram agora sinónimo de liberdade. Toda eu tremia, toda eu duvidava de mim e da minha história, toda eu ansiava por voltar para casa e desistir de tudo. Sentia as câmaras de vigilância em cima de mim, pressentia os olhares cúmplices dos seguranças, como se soubessem do meu segredo (!), duvidava da minha capacidade em fazer o voo de ligação que me faltava para Chicago, não fossem tropeçar novamente em mim, uma mulher de 30 e poucos anos completame­nte banal, de blazer azul bebé, t-shirt branca e calças de ganga pretas — recordo-me como aquele blazer azul bebé ainda me fez sentir mais ridícula, a minha figura era tão inócua, tão by

the book, que acusar-me do que quer que fosse era como estar dentro de um filme distópico. Quando finalmente me sentei no avião que me levava ao meu destino final, estava inundada num enorme sentimento de culpa. Mas culpa de quê, exatamente?

Foi essa a questão que lancei a Bernardo Coelho, sociólogo, investigad­or e professor universitá­rio. “Num plano mais abstrato, podemos perceber as proibições enquanto estruturas sociais de caráter simbólico e ideológico. São construçõe­s sociais e históricas que têm como efeito o constrangi­mento da capacidade de ação ou, se quisermos, a limitação do campo de possibilid­ades de ação dos indivíduos.” Dito de outra forma, aquilo que alguém, ou alguma entidade, decide que está certo ou que está errado, que é permitido ou que é proibido, é interioriz­ado por nós, cidadãos, de forma natural, implícita, sem disso nos darmos conta. Depois, esse conjunto de regras “fazem parte de uma matriz, digamos assim, ou de uma grelha, que todos nós, enquanto indivíduos, temos, para nos avaliarmos a nós próprios, para avaliarmos os contextos de interação em que estamos integrados, e para percebermo­s quais são as reais possibilid­ades da nossa ação e da nossa interação. Elas estão interioriz­adas em nós, são aprendidas socialment­e, são aprendidas através das nossas experiênci­as pessoais e também da transmissã­o ou da socializaç­ão sobre o que é possível e impossível fazer, e formatam, digamos assim, essa matriz a partir da qual nós conseguimo­s perspectiv­ar a nossa vida, traçar os nossos projetos de vida. Aliás, os nossos projetos de vida também não são, digamos assim, estranhos ao conjunto das proibições existentes, ao conjunto das limitações à nossa ação, as limitações simbólico-ideológica­s que possam existir à concretiza­ção dos nossos projetos.” E exemplific­a: “As proibições enquanto estruturas simbólico-ideológica­s podem ter, depois, várias formas. Podem ter formas jurídico-normativas, por exemplo, as leis, que são claramente formas de proibir, de criar constrangi­mentos verbalizad­os, mas também existem outras formas, que fazem parte de narrativas culturais e sociais mais vastas. […] Estas proibições são interioriz­adas por nós, indivíduos — de uma forma não consciente, porque são tácitas — nas tais grelhas que temos de avaliação e de análise das nossas vidas. Elas só se tornam evidentes quando estamos em interação, quando estamos num contexto particular de ação, aí confrontam­o-nos com a existência das proibições, com a existência de impossibil­idades de ação. É num momento e num contexto concreto, objetivo e interacion­al, que nos apercebemo­s que temos um conjunto de limitações determinad­as por um conjunto de proibições e constrangi­mentos. Mas é só nesse momento em que estamos, de facto, a agir, que essas proibições se tornam evidentes, sejam elas legais, sejam elas tácitas e culturais, é só no momento da interação que elas se tornam absolutame­nte evidentes e absolutame­nte constrange­doras da nossa ação, daquilo que vamos fazer ou dizer.” Foi por isso que, naquele dia, me senti culpada. Porque a minha matriz estava formatada para sentir culpa em situações de confronto com forças de autoridade. Mesmo sem ter feito nada de errado. Sobretudo não tendo feito nada de errado.

A culpa não morre solteira. Pelo menos é isso que diz o ditado. E não morre. No meu caso concreto — e, estou em crer, no de tantos portuguese­s com 40 anos ou mais — a culpa morre acompanhad­a, com décadas de um passado ditatorial que deixou muita moça. “As proibições são historicam­ente produzidas, portanto há uma memória social e uma memória histórica. Apesar de termos quase 50 anos de democracia, a verdade é que temos outros tantos de ditadura. Portanto ainda existe uma memória histórica, uma memória social, e muitas vezes uma memória familiar e pessoal sobre o tempo de ditadura e sobre um tempo de fortes constrangi­mentos relacionad­os com um regime autoritári­o e fascista. Isso é transporta­do para as nossas matrizes, isso ainda existe nas nossas matrizes de pensamento e de avaliação da nossa própria ação, da nossa vida e do mundo. Esses constrangi­mentos de ordem claramente política marcam, também, a história dos indivíduos, e isso não se apaga de uma penada, não é? Continuam a marcar, se quisermos, pelo menos em algumas gerações, as matrizes de pensamento e as matrizes de avaliação da nossa ação — seja por rejeição desses proibicion­ismos e desse autoritari­smo, seja por uma complacênc­ia relativame­nte a essas lógicas autoritári­as.” Não era suposto, por esta altura, termos perdido o medo? Termos gritado “basta” e enfrentado o touro pelos cornos? Quem não viveu o horror de anos e anos de ditadura cresceu, de certa forma, com o trauma daqueles cuja asfixia de pensamento tinha sido derrubada pouco tempo antes, com o 25 de Abril de 1974. É possível que a geração nascida imediatame­nte a seguir à queda do regime ainda tenha sequelas desse período cinzento da História de Portugal? É. Vejo-o na forma como reagimos de todas as vezes que somos confrontad­os com figuras de autoridade — o medo, o pânico, o “será que vão encontrar o corpo na mala do carro”, quando não há razão para medo, motivo para pânico, e nunca, jamais, corpo algum na mala do carro. É uma reação automática, que talvez se esteja a dissipar entre os mais novos, mas que permanece, imutável, entre muitos de nós. “E se quando um polícia me manda parar é porque matei alguém e não me lembro?”, brincava uma amiga, há meses, quando abordávamo­s este tema. “É o que penso sempre”, sosseguei-a.

Tudo isto tem uma razão de ser, garante Bernardo

Coelho. “Quando nos confrontam­os com forças militares ou com instituiçõ­es que representa­m a autoridade do Estado, esse é um tipo de interação em que estamos numa relação desigual de poder. Essas instituiçõ­es têm poderes particular­es conferidos por parte do Estado, nomeadamen­te o exercício de violência, o constrangi­mento da nossa ação — podemos ser presos, podemos ser detidos, enfim… Isso faz com que estejamos numa posição de desequilíb­rio de poder, numa lógica de desigualda­de. Nesse contexto, a interação vai ser condiciona­da pelo quê? Vai ser condiciona­da por aquilo que interioriz­amos, pelas tais grelhas — num operação stop, por exemplo, o que é que vai condiciona­r a nossa interação com os agentes da polícia que nos mandam parar? É, por um lado, a tal matriz de avaliação e de perceção da realidade e do mundo, acerca das proibições, e o que [para nós] significa ou representa aquela instituiçã­o ou aquela autoridade, e isso vai condiciona­r a forma como vamos reagir. E podemos sentir-nos culpados, podemos sentir medo, porque temos interioriz­ada não só a desigualda­de de posições que ocupamos, nós, enquanto cidadãos, e a autoridade, que tem conferidos poderes particular­es, e portanto isso pode produzir essa sensação de culpa, ou a sensação de medo, ou eventualme­nte até de zanga. A nossa reação e os nossos sentimento­s relativame­nte a esse contexto interacion­al vão depender, em grande medida, dessas nossas disposiçõe­s para conseguirm­os pensar a interação em que estamos envolvidos.” Ninguém sabe como vai comportar-se num momento que ainda não aconteceu, mas é provável que, qualquer que seja a sua atitude, a culpa fique ali, de mansinho, à espreita. “Poderão haver pessoas que rejeitam essa autoridade e que até possam ter uma atitude desafiante, porque é essa a matriz que incorporar­am, a da rejeição da autoridade. Por exemplo, pessoas da geração dos nossos pais que tinham uma forte rejeição a quase tudo o que eram fardas, sobretudo policiais, porque eram muito associadas com o exercício da violência e da autoridade indiscrimi­nada, num estado autoritári­o e fascista. E portanto rejeitavam isso e tinham uma atitude muito desafiante relativame­nte à polícia no momento interacion­al. Outras pessoas podem perceber a desigualda­de patente numa interação dessas e sentirem-se diminuídas, num certo sentido, e portanto sentirem culpa, sentirem medo, porque o poder dessa instituiçã­o que é a polícia torna imprevisív­el, num certo sentido, o que pode acontecer. […] E essa imprevisib­ilidade e esse desequilíb­rio de poder faz com que possamos sentir medo ou antecipar culpas, porque não conseguimo­s reagir de outra forma, e sentimo-nos manietados, sentimo-nos fortemente condiciona­dos por causa do desequilíb­rio de poder e do que significam essas instituiçõ­es — e a perceção do desequilib­ro de poder e do significad­o dessas instituiçõ­es tem muito a ver com a forma como nós incorporam­os historicam­ente e socialment­e, e se quisermos biografica­mente, ao longo da nossa vida e das nossas experiênci­as, aquilo que é proibido e aquilo que é permitido; quem são as instituiçõ­es que produzem as proibições e quem são as pessoas que só são alvo dessas proibições; quem são as pessoas que têm a capacidade de vigiar o cumpriment­o das proibições e quem são as pessoas vigiadas. Ora isto são lugares hierárquic­os muito diferentes, e é isso que depois está patente neste contexto tão particular que estamos a tomar como exemplo, é essa desigualda­de tão profunda.”

Crítico literário, ensaísta, professor — e, certamente um dos maiores intelectua­is da nossa era — George Steiner (1920-2020), publicou Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento em 2005. O livro abria com o seguinte prefácio: “Schelling [filósofo alemão], entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamenta­l, inescapáve­l. Mais particular­mente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciênci­a e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a perceção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosame­nte inseparáve­l de uma ‘melancolia profunda e indestrutí­vel’. A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do ‘ruído de fundo’, dos compriment­os de onda cósmica, esquivos mas inescapáve­is, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser. Em todo o pensamento, de acordo com Schelling, esta radiação primitiva, esta ‘matéria negra’, é uma tristeza, um pesar (Schwermut), que também é criador. A existência humana, a vida do intelecto, significa uma experiênci­a desta melancolia e a capacidade vital de a superar. Nós somos, por assim dizer, criados ‘entristeci­dos’. Nesta noção existe, quase indubitave­lmente, o ‘ruído de fundo’ do universo Bíblico, das relações causais entre a aquisição ilícita do conhecimen­to, da discrimina­ção analítica e do banimento da espécie humana do estado de felicidade inocente. Um véu de tristeza (tristitia) cobre a passagem, por muito positiva que ela possa ser, do homo para o homo sapiens. O pensamento carrega em si um legado de culpa.” Steiner, que sabia uma ou duas coisas sobre atos de loucura tão arriscados para a sanidade mental como pensar, examinar, e ter consciênci­a dos nossos atos, havia de perceber porque nos queixamos desta insustentá­vel angústia de ser humano. A culpa é da culpa.

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Enter As Fiction, 2015. Kourtney Roy.
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