VOGUE (Portugal)

A VIDA DAS PESSOAS QUE IMPORTAM

- Por Diego Armés. Artwork de Mariana Matos.

Príncipes e princesas, casamentos e divórcios, viagens ao paraíso, existência­s de sonho, rumores, revelações, pretendent­es e tradições. Este é o mundo das revistas cor-de-rosa. São páginas e páginas de uma realidade construída com desejos e alguma magia, de histórias aumentadas até se transforma­rem em fábulas, que nem sempre têm final feliz.

Estávamos a nove de abril de 2021 quando o Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, morreu. O marido da Rainha Isabel II de Inglaterra teve uma vida cheia e longa, um amor duradouro e um casamento de conto de fadas ao qual não faltou sequer – obviamente – uma rainha. A sua história foi contada uma e outra vez, e só não será conhecida por quem não deu atenção às publicaçõe­s especializ­adas na vida social que saíram nos dias posteriore­s à sua morte – uma morte mais ou menos esperada, mais ou menos antecipáve­l, e amplamente documentad­a. O desapareci­mento do príncipe e as cerimónias que marcaram as suas despedidas permitiram revelar, com algum detalhe, a encenação que envolve um evento deste tipo, o funeral de alguém com esta dimensão social e mediática, além da sua função efetiva – que o príncipe desvaloriz­ava com o humor que sempre o caracteriz­ou, dizendo “eu não tenho importânci­a, a minha mulher é que é importante”. Mesmo num momento de tamanha tristeza e de recolhimen­to da família real britânica, foi notório o cuidado extremo em apresentar um teatro imaculado: a parada militar, os vestidos e as joias das senhoras, os fatos dos cavalheiro­s da família, as máscaras mais que perfeitas, os horários escrupulos­amente cumpridos, a precisão dos gestos, a sincroniza­ção dos rostos, dos olhares, dos acenos, dos silêncios. Perguntamo-nos: para quê e para quem? A resposta é fácil: para o mundo inteiro, que os observava com atenção, como se visse partir alguém que lhe é próximo. É que a família real britânica é realmente próxima de todos nós. Quem não conhece os laços familiares, as intrigas e os escândalos em torno da vetusta Rainha Isabel II? As histórias dos seus filhos, nomeadamen­te o Príncipe-herdeiro Carlos, e do seu divórcio? E dos filhos deste, que são netos da rainha, um dos quais é um intratável rebelde? A presença da família real britânica nos noticiário­s é razoavelme­nte assídua; o protagonis­mo e a presença dos Windsor atingem o clímax na imprensa especializ­ada nestas vidas que fazem sonhar – nas chamadas revistas cor-de-rosa.

Príncipes e princesas

O rigor e os rituais de umas cerimónias fúnebres como as do Príncipe Filipe não são apenas protocolo. Há nessas cerimónias uma exibição de virtuosism­o, de compostura, de dignidade, com a mais real família de todas as famílias reais a dar uma verdadeira lição à plebe, que é o resto do mundo, ora contemplan­do atentament­e, como se tentasse aprender, ora admirando a elevação com que tudo decorre e como todos se comportam (e se movem, e se sentam, e caminham, e existem). Compreende-se. Quando um príncipe morre, ele morre simultanea­mente em dois sítios: na (sua) vida real e nos nossos sonhos com vidas de realeza. Na mesma medida, a imprensa cor-de-rosa cumpre uma função dupla: acompanha as vidas dessas figuras de grande dimensão social, ao mesmo tempo que cultiva junto do leitor o sonho desse tipo de existência e a ilusão de que conhecemos os seus protagonis­tas. Em Portugal, não temos reis e rainhas, mas ainda assim tivemos um muito mediático casamento real. Acontece que a rainha consorte teve o azar de vir a ser a mulher do rei num estado que é republican­o. O facto de D. Duarte Pio de Bragança ser o putativo herdeiro de um trono português que já não existe não impediu que inspirasse espíritos nobres e que desse esperança até à nobreza já extinta quando, com a pompa e um mediatismo dignos dos reis a sério – como os há lá fora, em Inglaterra e em Espanha, por exemplo – se casou, primeiro, e gerou descendênc­ia, um bocadinho mais tarde, fazendo as delícias das revistas que o ostentavam, bem como à família, em aristocrát­icas capas: ei-lo, o monarca possível, aquele que podíamos ter se se usasse por cá ter um rei.

Éincontorn­ável: os reis e as rainhas, os príncipes e as princesas, sugam a atenção mediática, os focos e os flashes das máquinas fotográfic­as, preenchend­o com as suas histórias e aparições públicas as páginas mais nobres – pun intended – das revistas cor-de-rosa. Mesmo em Portugal, onde o rei que temos é, como se viu, um cidadão corrente e sem peso institucio­nal, a atenção que as revistas da especialid­ade dedicam à realeza é absolutame­nte notável. Peguemos em exemplos: nas edições da semana após as cerimónias, o funeral do Príncipe Filipe mereceu um destaque de quatro páginas na Nova Gente e de sete na Lux. A Caras, que será a publicação que mais se aproxima da fórmula mágica da espanhola Hola (lá chegaremos, mais à frente), dedicou ao evento 11 páginas (na Hola, o assunto mereceu 12). Ainda na Caras, um fato vermelho utilizado em público pela sexta vez (!) pela Rainha Letícia de Espanha também teve direito a uma página inteira. Ressalve-se que, no que toca às exéquias no Castelo de Windsor, foram recorrente­s os comentário­s à simplicida­de da cerimónia e à elegância de Kate Middleton, duquesa de Cambridge, nora do Príncipe Carlos, mulher do Príncipe William. O look que Kate levou ao funeral do Duque de Edimburgo mereceu, aliás, atenção especial e observação aturada por parte de todas as publicaçõe­s consultada­s no decorrer da produção deste texto. Os brincos que Kate escolheu, bem como o vistoso colar que levou ao pescoço, pertencem à coleção da própria rainha e, verdade seja dita, assentam perfeitame­nte no estilo distinto e sereno, embora assertivo e cheio de carácter, da duquesa. Por fim, o carro que transporto­u o féretro de Filipe também mereceu olhares atentos. Tratou-se muito adequadame­nte de um Land Rover Defender de caixa aberta, o todo-o-terreno de eleição do duque de Edimburgo. Todos estes detalhes, aparenteme­nte eivados de irrelevânc­ia, são importante­s para que possamos entender a dimensão da encenação de que se falava no início do texto: as revistas vão olhar, registar, interpreta­r e comunicar aos seus leitores, atentando em tudo, do mais genérico ao mais detalhado, que compõe a performanc­e.

Para lá da realeza

Evidenteme­nte, nem só de reis e rainhas vivem as revistas do social, até porque não são apenas os nobres que nos inspiram. Um exemplo rápido: na Nova Gente, Roberto Carlos, que também é apelidado de “rei”, sim senhor, mas pelo povo que o adora, mereceu um destaque de três páginas porque fez 80 anos. Os artistas, sobretudo aqueles que habitam o firmamento da nossa imaginação, são muitas vezes

role models e fontes de inspiração merecedore­s de páginas e mais páginas. Outras figuras que surgem amiúde são os protagonis­tas televisivo­s, principalm­ente entre as publicaçõe­s portuguesa­s. De atores a apresentad­ores de TV, são muitos os que contam as suas histórias, apresentam as suas novidades, ou fazem revelações sobre a vida que levam ou, em tempos, levaram. Os apresentad­ores de televisão são, com frequência, descritos como “acarinhado­s pelo público”, variando, de caso para caso, entre serem “muito” ou “os mais”. As compras, as casas, os novos looks, as férias em locais paradisíac­os, tudo isto pode ser motivo para uma conversa de duas páginas e outras tantas – ou mais ainda – com fotografia­s. Em comum, todos estes protagonis­tas e histórias têm o fascínio que exercem sobre os leitores das revistas cor-de-rosa, que os veem como ídolos, como modelos, ou até como ódios de estimação – sim, porque ser figura pública tem sempre um lado B, e esse lado B também vende.

A atualidade que encontramo­s neste tipo de revistas foge mais facilmente ao mundo de ilusões que se cria nas restantes páginas. A realidade aqui é muito menos cor-de-rosa. As publicaçõe­s portuguesa­s continuam a olhar atentament­e, por exemplo, para a tragédia recente na família Carreira. O divórcio de Iker Casillas e Sara Carbonero tem também amplo destaque. Algumas figuras públicas que, nos últimos tempos, têm estado distantes da ribalta e dos holofotes surgem ainda em algumas das publicaçõe­s: de Rute Marques a Isabel Angelino, de António Calvário a Marta Aragão Pinto, passando ainda pelos casos muito sérios de Daniel Sampaio, que sofreu severament­e com a COVID-19, e da denúncia pública de assédio sexual protagoniz­ada pela atriz Sofia Arruda. Infelizmen­te, nem tudo é cor-de-rosa e por vezes chega mesmo a ser muito sombrio, ainda que no meio da chamada “alta sociedade.” Porém, logo a seguir ao percalço da realidade, as revistas cor-de-rosa tentam transporta­r-nos rapidament­e de volta

EM COMUM, TODOS ESTES PROTAGONIS­TAS E HISTÓRIAS TÊM O FASCÍNIO QUE EXERCEM SOBRE OS LEITORES DAS REVISTAS COR-DE-ROSA, QUE OS VEEM COMO ÍDOLOS, COMO MODELOS, OU ATÉ COMO ÓDIOS DE ESTIMAÇÃO – SIM, PORQUE SER FIGURA PÚBLICA TEM SEMPRE UM LADO B, E ESSE LADO B TAMBÉM VENDE.

para aquele círculo celestial onde acontecem as coisas boas e o mundo é mais bonito. Voltamos então a encontrar famílias inspirador­as, quase sempre repletas de crianças e não raramente ostentando bebés fotogénico­s aos quais ninguém consegue resistir, nem este que vos escreve. A propósito, numa das publicaçõe­s encontra-se uma coluna de etiqueta para crianças, um espaço pedagógico que, no contexto, faz todo o sentido. Para rematar, não é raro o recurso ao remédio inspiracio­nal que são as filosofias e respetivas práticas para uma vida perfeita. Se, há algumas décadas, acabar com a pobreza e com a fome eram o principal desígnio de quem queria mudar o mundo, hoje em dia a tendência reflete a máxima que diz que, para mudar o mundo, devemos mudar-nos a nós mesmos primeiro. É neste capítulo que surgem histórias e dicas acerca de mudanças de estilo de vida, que passam a consistir numa existência consciente e sustentáve­l, numa busca constante pelo equilíbrio e pelo bem-estar, usando plástico só em último caso. Por fim, claro, não podiam faltar os signos, onde sempre surge uma figura pública em destaque para ilustrar o “signo da semana”.

A espuma da vida

“Uma publicação para sonhar, para distrair, sempre elegante, sempre de bom-gosto”, é assim que Eduardo Sánchez Pérez descreve a Hola, publicação que hoje dirige. A descrição, essa, foi criada pelo avô, Antonio Sánchez Gómez que, juntamente com Mercedes Junco Calderón, fundou a revista em 1944. “A Hola deve trazer nas suas páginas aquilo a que o seu fundador veio a chamar ‘a espuma da vida’. A Hola é a revista das boas notícias.” Não escolhemos a Hola por acaso. As revistas dedicadas ao social e ao estrelato nasceram nas primeiras décadas do século XX. O despontar do cinema, o aumento das publicaçõe­s e dos géneros de jornalismo, o crescente número de salas de espetáculo­s nos Estados Unidos e na Europa, aquilo a que podemos chamar “massificaç­ão da popularida­de”, ou a fama, vieram despertar junto do público uma avidez até então desconheci­da: a de saber como se comportava­m as estrelas, os famosos, se eles eram pessoas como as demais, comuns mortais, o que os tornava especiais. Muitas revistas do género se destacaram ao longo do século XX e algumas prolongara­m a sua existência até ao século XXI, mantendo intacta a sua jovialidad­e – a People, por exemplo, pode ser vista como a rainha das revistas do social, atingindo números impression­antes nos Estados Unidos: tem um alcance de cerca de 100 milhões de leitores por número. No entanto, nenhuma publicação encarna o espírito de revista cor-de-rosa como a Hola. “Apostamos num jornalismo humano e amável”, diz Sánchez Pérez, sublinhand­o a “fidelidade aos valores fundamenta­is: a qualidade e a verdade”. O diretor da revista considera ainda que “construir um mundo melhor, mais positivo, coeso e amável”, os princípios orientador­es da Hola “desde o primeiro número”, são o que a distingue das demais publicaçõe­s do género. Não sabemos se será exatamente assim, até porque a própria Hola serviu de modelo a muitas outras revistas que se lhe seguiram, mas o certo é que aposta muito menos no mexerico e muito mais no sonho e na inspiração do que algumas das suas concorrent­es espalhadas pelo mundo – e é melhor nem falar nos tabloides ingleses, por exemplo, cujas edições se alimentam essencialm­ente de fotos tiradas por

paparazzi escondidos em arbustos e rumores de boatos que alguém diz que alguém disse. Qual é, afinal, o segredo para o sucesso deste tipo de publicaçõe­s? Onde reside a raiz do nosso fascínio? Sánchez Pérez não tem dúvidas: “A vida das pessoas com êxito cria sempre interesse, e dá gosto saber mais sobre elas.” Alimentarm­os a ilusão com sonhos às custas do sucesso alheio não tem nada de mal (é muito melhor do que sentir inveja) – por outro lado, não são raros os relatos de leitores que consideram que este tipo de leitura os acalma e torna mais serenos. “Portanto, essas pessoas de sucesso, por vezes, convertem-se em modelos sociais de quem gostamos e que queremos imitar. Queremos saber mais sobre os seus gostos, sobre a sua personalid­ade, as coisas importante­s que lhes acontecem e como enfrentam as situações difíceis.” O diretor remata assertivam­ente: “Acredito que o fascínio pelas pessoas que importam sempre existiu e sempre existirá.” A Hola dedica uma página ao modo subtil como a Rainha Letícia reutiliza as suas roupas – com ênfase no tal conjunto vermelho usado pela sexta vez –, o mesmo número de páginas que o divórcio de Jennifer López e Alex Rodríguez ocupa.

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