QUERIDAS INIMIGAS
O assunto não é, de todo, cor-de-rosa, mas precisa de ser falado, esmiuçado, discutido, analisado, debatido — em suma, trazido para a praça pública. Referimo-nos a uma forma muito subtil de bullying, que raras vezes tem direito a ser trending topic e que, no entanto, causa tantos danos colaterais como qualquer outro tipo de maltrato psicológico: o bullying entre mulheres.
Comecemos com um pequeno amuse-bouche, cortesia da
chef responsável por este repasto. São dois pequenos pratos — metaforicamente falando, claro está — de sabores totalmente opostos, e ainda assim muito comuns no menu que iremos degustar: “Estás mais magra, não estás? Andas a fazer aquelas dietas malucas em que se acaba numa cama de hospital? Ou é pior? Não me digas que são drogas?” Há quem prefira outros aperitivos, de travo distinto: “Não devias usar esse vestido. Tens demasiadas curvas. Assim só se nota ainda mais que engordaste um bocadinho. Não é que tenha mal, mas eu não usava…” Satisfeitas? Prossigamos, então, com os pratos principais: “Pareces doente de tão esquelética que estás”, “Não deves ter espelhos em casa, ou não saías assim à rua”, “Devias ter vergonha de usar essa saia, com a tua idade”, “Essa celulite é nojenta. Nem uma burka te salva, no verão.” Para sobremesa, algo mais agridoce — e surpreendente: “Acho que precisas de descansar. És obcecada com o trabalho. Já todos na empresa repararam. Só te estou a dizer porque sou tua amiga. E se tirasses umas férias? Dava-te um ar mais terra-a-terra, mais humano.” Também pode optar por algo mais gelatinoso: “Reparei que te focas muito no teu emprego. Como é que cuidas da casa? Tens tempo para os teus filhos? O teu marido não se queixa? Qualquer dia ele troca-te por outra…” Preparadas para o café, ou a leitura já se tornou indigesta, como se pretendia? É que nada do que foi escrito acima veio, apenas e só, da imaginação da escriba que assina este texto — como qualquer leitora, de qualquer faixa etária, poderá confirmar. Porque se há certeza neste mundo, para além da morte, é que as mulheres conseguem ser umas valentes cabras umas para as outras. Exagero? Ná. Os exemplos deste tipo de assédio, ou agressão, encontram-se um pouco por todo o lado. Eles estão, literalmente, no meio de nós. Claro que, vivendo num mundo que valoriza (glorifica?) mais o virtual que o real, as redes sociais são o local predileto para destilar ódio. Para espezinhar. Para pregar a toxicidade como se de uma seita se tratasse. Principalmente quando, tanto a vítima como o agressor, são do mesmo sexo — do sexo feminino. No século XXI, numa altura em que a luta pelo empoderamento feminino está ao rubro, ainda perdemos tempo com coisas mesquinhas que deviam ter ficado na corte de Maria Antoineta. Só que não ficaram. A única coisa que desapareceu com a sua trágica morte foi… a cabeça da rainha. O resto, os mexericos, as tricas, as intrigas, os comentários maldosos, mantiveram-se firmes, tão intrínsecos à sociedade como o culto à donzela guilhotinada. Atente-se a este pequeno fait-divers ocorrido na Rússia, em junho de 2018. Portugal era uma das equipas presentes na fase final do Campeonato do Mundo de Futebol. A namorada de Cristiano Ronaldo — capitão da seleção nacional e, quiçá, melhor jogador do planeta — Georgina Rodríguez, resolveu dar uma volta por Moscovo, para conhecer a cidade, tirou umas fotografias e (sacrilégio!) partilhou-as com os seus seguidores. Em menos de nada, a espanhola foi arrasada por posar em frente ao Kremlin de top, calças de fato de treino e ténis. Leu bem. Georgina não foi arrasada por tocar numa peça de arte, por tirar uma selfie com Vladimir Putin, por exibir mil e um monogramas de marcas de luxo (como tantas vezes aconteceu, depois disso). Não. Georgina foi arrasada porque estava vestida “como uma turista qualquer.” O ataque foi de tal forma intenso, que a modelo se viu forçada a responder: “Obviamente, se vou passear por Moscovo, de uma ponta à outra, não me vou vestir com um look extravagante, nem usar saltos, nem skinny jeans, nem roupa de seda. Embora tenha na minha mala oito looks lindos. Há que ser realista, depende da ocasião. Sou uma mulher prática, como todas vocês. Se parássemos de criticar tanto as mulheres, o mundo seria melhor. Mas, muitas vezes, somos o nosso maior inimigo. Juntas somos mais fortes.” E somos. Pergunta para um milhão de euros: quem é que seguiu o conselho de Georgina? Ainda está para se saber.
Vamos chamar as coisas pelos nomes. Isto é bullying — bullying puro e duro. Mas porque é que este tipo de bullying, praticado por mulheres e direcionado a mulheres, acontece? Há algum motivo histórico, sociológico, ou psicológico, que explique este tipo de ações? Foi o que perguntámos a Filipa Jardim da Silva, Psicóloga Clínica e
Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde.
“Há algumas reflexões que nos podem ajudar a compreender este tipo de ações. Em primeiro lugar, estes comportamentos são reforçados a nível educacional. De forma geral, desde a primeira infância espera-se que as meninas sejam doces, simpáticas e agradáveis. Quando uma rapariga mostra emoções naturais como raiva, medo, ciúme ou mágoa, ou se é persistente e obstinada, tendencialmente é repreendida, como se estivesse a experienciar emoções e a adotar posturas pouco corretas ‘para uma menina'. A escolha para o género feminino é clara: devem comportar-se de forma a que os outros as apreciem, sem arriscarem impopularidade. Estas normas sociais tendem a fazer com que as raparigas ocultem os seus verdadeiros sentimentos, desenvolvendo-se assim uma tendência para a agressão encoberta e para a repressão da autenticidade. As mulheres têm expectativas mais elevadas em relação a outras mulheres do que os homens e, talvez por isso, tenham mais dificuldade em aceitar e perdoar a falha [às outras] mulheres.” E continua: “Em segundo lugar, a nossa cultura ajuda a sustentar a toxicidade entre mulheres na idade adulta. Com frequência, em novelas, em reality shows e nos
media, os conflitos entre mulheres são capitalizados e destacados, quase que ‘normalizando' este comportamento, como se fosse algo banal e quase inevitável de acontecer. Naturalmente que isso tende a fomentar a competição e a influenciar a perceção que as mulheres têm sobre o género feminino desde cedo, tendendo a confirmar esta profecia por muitas vezes se focarem mais no negativo em relação a outras mulheres e por estarem mais defensivas umas para as outras, muito mais do que em relação ao género masculino. Em terceiro lugar, alguns destes comportamentos podem ter raízes biológicas. Estudos com chimpanzés e macacos mostram que as fêmeas costumam atacar outras fêmeas e matar os seus bebés, provavelmente para garantir que haja recursos suficientes para a sobrevivência dos seus próprios genes. Na verdade, os macacos fêmeas podem a aliar-se a um macho poderoso para os proteger de outras fêmeas.” Parece, de facto, que toda a evolução humana, e a nossa forma de viver em sociedade, se formou com base numa guerra invisível — mulheres contra mulheres. Filipa remata: “Se pensarmos no tipo de comunicação veiculada por muitos media e programas televisivos, e nos valores sexistas que proliferam até aos dias de hoje, e se considerarmos o paradigma comparativo que impera na nossa sociedade criando desagregação entre as mulheres, a par de um conjunto de pressões e expectativas sobre o género feminino, não é de admirar que algumas mulheres acabem por ter comportamentos pouco dignos umas com as outras. De referir, todavia, que o comportamento tóxico não é exclusivo das mulheres. Os homens também o fazem. No entanto, os homens conseguiram desenvolver maneiras de competir e de se desafiar mais abertamente e depois compartilhar um momento amigável, com uma reparação mais rápida e separação de realidades. As mulheres têm uma longa história de confiar nos homens para determinar o seu valor próprio, o que naturalmente potenciou a competição e desagregação entre mulheres, que se manifesta ainda nos dias de hoje.”
Mas o que é que faz com que alguém adote um comportamento de Regina George (a vilã e, se quisermos, a “cabecilha”, das Mean
Girls, filme de culto de 2004 com o mesmo nome), e se transforme numa pessoa malvada, cujo único rastro de inocência é, muitas vezes, a aparência? “Muitas mulheres acreditam que só há espaço para uma mulher no topo, para uma mulher popular. Essa perceção redutora faz com que as outras mulheres sejam encaradas como uma ameaça, pelo que se podem tornar alvo de bullying.” E isso é particularmente visível no mercado de trabalho. “A insegurança de muitas mulheres, a par de estilos de liderança masculinos que ainda predominam nos meios organizacionais, contribui para comportamentos duros, autoritários e agressivos por parte de algumas mulheres para com os seus pares, que acreditam que com estes comportamentos se afirmam mais, ganham mais poder e visibilidade.” O que não tem visibilidade, por norma, é o próprio
bullying, já que é feito “pela calada”, e vários estudos demonstram que, no local de trabalho, as mulheres são de facto as mais afetadas por este tipo de “tortura” que, sendo quase invisível, é mais difícil de perceber e, assim sendo, de denunciar. Insistimos: porque é que grande parte dos autores da “tortura” são, precisamente, outras mulheres? A palavra à especialista: “Se pensarmos num mercado de trabalho competitivo, dominado por estilos de liderança tipicamente masculinos, existirão poucos lugares para mulheres pelo que muitas encararão as colegas como alvos a abater. Se aliarmos a este facto o padrão de agressão dissimulada por influências educativas e culturais, percebemos porque é que as mulheres agem ‘pela calada’ criando intrigas, criticando o aspeto físico umas das outras e espalhando rumores que poderão denegrir a imagem alheia.”
"QUANDO ALGUÉM PRATICA BULLYING, DE UMA FORMA GERAL, ISSO DENOTA SOFRIMENTO PSICOLÓGICO, AUSÊNCIA DE CONTROLO DE IMPULSOS E/OU POUCOS RECURSOS EMOCIONAIS. UMA MULHER QUE HUMILHA OUTRA MULHER TENDERÁ A SENTIR-SE EXTRAORDINARIAMENTE VULNERÁVEL E, NUMA TENTATIVA DE NÃO ENTRAR EM CONTACTO COM ESSA VULNERABILIDADE, PODERÁ REVESTI-LA DE AGRESSIVIDADE." Filipa Jardim da Silva
Façamos então o exercício oposto. Vamos dar a outra face. Ou, por outras palavras, vamos tentar perceber o que é que este tipo de comportamento diz, em termos psicológicos, da mulher que o pratica. Será que isso é, no fundo, uma forma de “tapar o sol com a peneira”, de transpor, para os outros, problemas que não vê em si mesma? “Quando alguém pratica bullying, de uma forma geral, isso denota sofrimento psicológico, ausência de controlo de impulsos e/ou poucos recursos emocionais. Uma mulher que humilha outra mulher tenderá a sentir-se extraordinariamente vulnerável e, numa tentativa de não entrar em contacto com essa vulnerabilidade, poderá revesti-la de agressividade, desconectando-se assim de si própria e focando-se em ações dirigidas a outros. Pode, por isso, ser um escape ao medo da rejeição, ao medo da comparação, à insegurança com a imagem física ou capacidade intelectual. De igual forma, muitas mulheres com condutas agressivas demonstram uma mentalidade rígida, pouca capacidade de se auto-observarem e fracas competências emocionais, o que potencia este tipo de comportamentos de passagem ao ato, impulsivos e agressivos, alimentados por pensamentos absolutistas que não contemplam dúvidas ou auto-reflexões.” E que consequências tem, por seu lado, este tipo de bullying na mulher que é dele vítima? Filipa Jardim da Silva explica: “Já acompanhei mulheres vítimas de bullying por parte de outras mulheres e sem dúvida que quando essa situação é intensa ou se prolonga no tempo tende a aumentar a prevalência de humor deprimido e de transtornos de ansiedade, com um impacto muito nefasto na autoestima, na auto-imagem e na auto-confiança. Há palavras que são destruidoras e muitas mulheres que sofrem bullying acabam por desenvolver stress pós-traumático, necessitando de apoio psicológico para ultrapassarem de forma adaptativa esta situação. Muitas mulheres somatizam a sua ansiedade e medo, pelo que com frequência se denota no desenvolvimento de doenças autoimunes em mulheres que trabalham em ambientes hostis.”
Ostracizar. Desprezar. Excluir. Ora aí estão verbos que não nos devem soar assim tão estapafúrdios, se fizermos uma viagem no tempo e paramos na nossa infância e adolescência, quando era “normal” — e aqui são precisas muitas aspas, porque o ato nada tem de normal — juntarmo-nos em grupinhos e “fazer panelinha” com algumas amigas, deixando outras de fora, propositadamente, para reforçar a ideia de que não pertenciam, de que não eram aceites. Será que esta tendência para fazer bullying é algo intrínseco ao nosso comportamento, enquanto seres do sexo feminino? “Um certo nível de competição é intrínseco ao nosso comportamento, sendo que há uma grande curiosidade entre meninas de se observarem, partilharem brinquedos e roupas, de compararem bonecas. O que se denota é que o sistema escolar e o contexto cultural promove a comparação e isso naturalmente dá o tom precoce nas relações entre pares. Muitos pais comparam os seus filhos entre si, comparam os seus filhos com os filhos dos outros, rotulam comportamentos e aspetos de melhores e piores, de certos e errados, e percebe-se que com o género feminino há mais expectativas desde cedo. As meninas crescem a absorver estas dinâmicas. Adicionalmente, por norma, os rapazes tendem a ser mais físicos, pelo que as suas brincadeiras assumem um carácter mais ativo, explorador e desportivo, até porque é isso que é esperado e fomentado. As meninas, por seu lado, tendem a ser conduzidas para brincadeiras mais tranquilas e recatadas, o que tenderá a promover mais espaço mental, até pela sua astúcia precoce, para falarem umas sobre as outras e criarem rivalidades. De resto, muitos desenhos animados, histórias infantis e séries juvenis retratam esta rivalidade feminina ‘banalizando' o comportamento e tornando-o expectável.” Nada disto deveria ser banal. Nada disto deveria ser expectável. Nada disto deveria ser aceitável. Portanto, das duas uma. Se a leitura deste texto não foi suficiente para que perceba o quão grave é este tema, considere-se uma querida inimiga. Se teve o impacto pretendido, se da próxima vez que estiver na iminência de soltar um comentário menos feliz se lembrar destas linhas e for capaz de reconsiderar — e se, além disso, lhe der ganas de passar a mensagem (trending topic, anyone?), para que mais pessoas tomem consciência de que o bullying entre mulheres é um problema que pode ter consequências altamente danosas — então é porque cumprimos a nossa missão e existe esperança de que, com o tempo, o título deste artigo se torne algo mais… cor-de-rosa.
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