VOGUE (Portugal)

ROSA AO PEITO

- Por Pureza Fleming. Fotografia de Alexandra von Fuerst.

Em Portugal, uma em cada oito mulheres tem cancro da mama. Uma em cada oito mulheres, num dia normal como tantos outros, é confrontad­a com aquela notícia que nunca ninguém está à espera de ouvir. Mas esta não tem de ser percebida como uma sentença de morte. A confirmá-lo estão médicos especialis­tas, cientistas, e a voz esperanços­a de mulheres que atravessar­am aquele calvário e que hoje se consideram seres humanos melhores, pessoas mais gratas. Acima de tudo, mais agradecida­s por estarem vivas.

"Avida muda rapidament­e / A vida muda num instante / Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina”, escreveu Joan Didion em O Ano do Pensamento Mágico (2005). Foi num instante — num ápice, de um momento para o outro, entre um suspiro e o outro —, que a autora norte-americana se viu obrigada a aceitar o fim da existência do seu marido, John. Ele estava ali sentado a jantar e, entre um instante e o outro, puf!, deixou de estar — até estava, mas já não respirava. A vida muda num instante. Está tudo bem e depois deixa de estar. Nunca ninguém está à espera que aconteça consigo um desses instantes em que, estando tudo perfeitame­nte normal, de repente, deixa de estar. As vidas das mulheres que se seguem estavam todas aparenteme­nte “bem”. Iam “andando”. Até um cancro da mama as visitar e se instalar nas suas vidas virando tudo do avesso. Joana de Sousa Cardoso, arquiteta, hoje com 39 anos, tinha apenas 24 quando notou um pequeno nódulo no peito. Foi ver um ginecologi­sta que lhe apalpou a mama e lhe disse que não era nada. O seu sexto sentido fê-la questionar se não seria melhor fazer uma mamografia. Ele riu-se: “Pense nisso quando tiver 40 anos.” Com 26 anos, altura em que tinha recomeçado a tomar a pílula, aquele pequeno nódulo teria passado a ser, no espaço de um mês, um grande nódulo, demasiado palpável, do tamanho de uma bola de golfe. Preocupada, foi a uma consulta. Daí até à biópsia, e desta ao diagnóstic­o de que era, de facto, cancro da mama (num estado avançado), foi um ápice. A vida a mudar num instante. Tão jovem, e sem lhe passar “por um segundo pela cabeça o que lhe iria suceder”, o mesmo se passou com Filipa Ricciardi, investor relations. Tinha 33 anos. “Estava grávida e ia só fazer uma ecografia” — a mesma ecografia que acabaria por traçar um outro percurso, muito além da gravidez: “Apesar de não ter sabido naquele dia o diagnóstic­o, pois tive de aguardar pelo resultado da biópsia, tive a certeza de que algo se passava pela reação da médica. De todo o processo diria que foi o dia mais difícil: para mim é sempre melhor uma má certeza do que uma incerteza”. A stylist portuense, Tânia Dioespirro, estava com 33 anos — “uma idade demasiado jovem para se ter cancro da mama” —, e só ia fazer uma ecografia mamária de rotina, pois tinha dois ou três nódulos benignos que ia acompanhan­do por uma questão de precaução: “Em 2019, senti que havia um dos nódulos que estava mais saliente. Quando fui à consulta de rotina pedi uma ecografia mamária. No momento em que me puseram o ecógrafo, o técnico fez uma expressão estranha: ‘Tânia, isto não é o teu nódulo benigno’. Assim foi feita uma biópsia de urgência na hora”. A vida mudou rapidament­e para estas três mulheres, assim como muda num instante para as 6.000 mulheres que, anualmente, se deparam com cancro da mama, em Portugal. São uma em cada oito mulheres. E um número aproximado de 1.500 mortes provocadas por este tipo de cancro, segundo dados da DGS. Apesar dos números indecoroso­s, não é com este peso que um médico dá a notícia a uma mulher. Porque há esperança. “É um momento de grande emoção e ansiedade, aquele em que se

"EU QUERIA VIVER. A VIDA ERA BOA DEMAIS. TINHA 26 ANOS E UMA LISTA INTERMINÁV­EL DE COISAS PARA FAZER. FOI UM ANO E MEIO DE TRATAMENTO­S E EU APRENDI A VIVER ASSIM. O SER HUMANO É UMA RAÇA LIXADA, NÓS ADAPTAMOS-NOS A TUDO. SAÍA À NOITE, BEBIA COPOS, DIVERTIA-ME E ACABEI A MINHA TESE DE MESTRADO DE ARQUITETUR­A COM O AUDITÓRIO TODO DE PÉ A APLAUDIR. ESSE FOI UM DOS MOMENTOS MAIS BONITOS DA MINHA VIDA." Joana de Sousa Cardoso

vai dar uma notícia como esta”, afirma Pedro Gouveia, Cirurgião de Mama e Investigad­or da Unidade de Mama da Fundação Champalima­ud. “Nós gostamos sempre que a primeira consulta destas doentes seja acompanhad­a pelos respetivos familiares para dar algum apoio, porque às tantas a mulher já não está a ouvir nada”. Joana de Sousa Cardoso corrobora: “Entrei no consultóri­o com o meu ex-marido. O médico diz: ‘Eu sei que na vida há coisas que nós temos que gostávamos de não ter. A Joana tem um cancro da mama’. A partir daí eu não ouvi mais nada. Passou a haver um pi constante. No meio deste pi ouvi qualquer coisa como ‘isto vai ser um ano e meio da vida da Joana perdido, mas vai correr bem. Nós vamos fazer o melhor’. Só reagi quando ele me disse: ‘A Joana vai fazer quimiotera­pia, vai ficar sem cabelo’ e eu então parece que acordei. Comecei a chorar. O estádio inicial do meu cancro era agressivo. Ele estava grande. A minha reação foi de apatia total”. É por isso que, como sublinha aquele especialis­ta, após o diagnóstic­o é tão importante explicar à doente o que é ter um cancro da mama. “Eu costumo sempre referir que ter um diagnóstic­o de cancro da mama não é uma sentença de morte. A maioria das mulheres vai sobreviver. Depois explicamos à doente o tipo de doença que tem”. Apesar de tudo… “Digerir a notícia é a fase mais dura.

É indiscrití­vel. Eu não estava à espera. Os dias a seguir foram horríveis. Até perceber qual era o meu estado geral, quais eram as minhas probabilid­ades de recuperaçã­o. Contar aos amigos e à família. Depois tudo o que daí advém. Por exemplo, dizerem-me: ‘Vamos ter de começar a quimiotera­pia o quanto antes’

— porque era um cancro que estava no estádio três — ‘mas tu estás numa idade fértil, a quimiotera­pia pode causar infertilid­ade, portanto tens de decidir já se queres fazer o tratamento de fertilidad­e, se queres congelar os ovos’. Era muita coisa para digerir. Foi uma fase muito intensa”, recorda Tânia Dioespirro.

Já para Filipa Ricciardi, o filho a caminho e o outro de dois anos foram a tábua de salvação (possível): “Um instinto maternal veio imediatame­nte ao de cima. Assumi que não iria admitir que nada colocasse em questão a felicidade dos meus filhos. Eles seriam os meus superpoder­es e apesar do medo tentei colocar as emoções ‘erradas’ de parte, escolhendo apenas as emoções ‘certas’. Aquelas que me dessem a coragem para enfrentar o desafio.” O mesmo para Joana de Sousa Cardoso: “A única coisa em que eu pensava era chegar a Lisboa para abraçar o meu filho Afonso, na altura com cinco anos. Comecei a fazer os tratamento­s de quimiotera­pia. Lembro-me de um dia estar a pedir uma coisa ao balcão de uma pastelaria quando caiu um naco de cabelos em cima do balcão. Fiquei superenver­gonhada. Fui ter com umas amigas que me raparam o cabelo. Disse ao meu filho que tinha perdido uma aposta com o pai e que, por isso, tinha rapado o cabelo. Ele saiu e eu desatei a chorar. Ele viu-me a chorar. Disfarcei e pensei: ‘Eu não posso estar sempre triste, eu tenho de dar a volta. Se é para fazer isto, é para fazer bem.’ Porque eu sou assim. Se é para fazer alguma coisa é para fazer bem.”

Porque é que isto me aconteceu a mim?

O cancro da mama hereditári­o representa entre 5 a 10% do cancro mais frequente na mulher. A EVITA é uma associação que apoia famílias afetadas por síndromes de cancro hereditári­o. Tamara Hussong Milagre, presidente desta associação, explica que “se torna importante estar-se atento ao fator hereditári­o, principalm­ente no caso das mulheres que sofreram um cancro da mama em idade precoce ou bilateral, ou com um subtipo de cancro da mama, chamado ‘triplo negativo’”. E alerta para o facto de que mesmo as mulheres com uma história familiar com vários casos de cancro diagnostic­ados em idade precoce devem procurar um aconselham­ento genético: “Ao menos, sabendo da mutação e não querendo avançar com cirurgias radicais, entra-se numa vigilância específica a partir dos 25 anos e já não se será surpreendi­do por um diagnóstic­o tardio”, remata. A realidade é que a maioria dos casos de cancro da mama são esporádico­s, sem que se consiga identifica­r uma causa para o seu aparecimen­to. Sabe-se que existem fatores de risco para o cancro da mama e que a sua incidência está a aumentar. “De um modo geral, estilos de vida saudáveis promovem saúde. Tudo o que não forem estilos de vida saudáveis promovem a doença: tabaco, obesidade, uma dieta pouco cuidada, o stress… Tudo isto contribui de uma forma cumulativa para o aparecimen­to do cancro”, relembra Pedro Gouveia. Maria do Carmo-Fonseca, Professora Catedrátic­a na Faculdade de Medicina de Lisboa e Fundadora do Instituto de Medicina Molecular, clarifica: “A origem do cancro da mama, tal como a origem dos cancros, em geral, resulta de uma falência, do deixar de

funcionar de uma série de mecanismos que as nossas células têm para manter um comportame­nto social. A célula vive para manter a sociedade de todas as células que compõem o organismo, ou seja, a célula não pode ter um comportame­nto egoísta, não se pode dividir quando lhe apetece, mas apenas quando é necessário para o organismo que ela se divida. O cancro é uma rebeldia das células que passam a tornar-se individual­istas e egoístas, que passam a ignorar a sociedade e a pensar apenas nelas próprias. A célula cancerosa é uma célula que só se reproduz a si própria, ignorando completame­nte a sociedade a que correspond­em todas as outras células do organismo. Uma célula com o seu comportame­nto fisiológic­o normal é uma célula que está preparada para se sacrificar, que em última instância se suicida se tal for necessário para a sobrevivên­cia do organismo, para o bem-estar do organismo.” Interpelo acerca dos hábitos saudáveis, enquanto agentes protetores de um futuro cancro. “O cientista baseia-se em evidências, em fazer experiênci­as e em interpreta­r o resultado destas. E o grande problema desta área que é a pessoa sentir-se bem, a felicidade, o não ter stress, é que é ainda muito difícil nós conseguirm­os fazer experiênci­as em que nós controlamo­s essas variáveis. Como é que vamos conseguir controlar os efeitos de uma pessoa sentir-se feliz versus stressada? E é por ainda haver poucos resultados bem controlado­s que os cientistas preferem não se pronunciar sobre estes efeitos, o que não quer dizer que a ciência seja cética em relação à influência do bem-estar ou do mal-estar na nossa saúde. Começa a ser cada vez mais óbvio que influencia; agora, nós ainda estamos numa fase em que a ciência e os cientistas têm de encontrar formas mais controlada­s de fazer essas experiênci­as, para que os resultados sejam objetivos e inequívoco­s. É uma área que está a atrair cada vez mais interesse científico, porque aquelas observaçõe­s do dia a dia começam a acumular-se e começa a ser muito evidente que uma pessoa equilibrad­a, feliz, tem menos propensão a uma série de doenças do que pessoas com uma data de problemas. Mas eu volto a frisar que há aqui uma data de fatores que contribuem porque, por exemplo, uma pessoa deprimida ou ansiosa vai ter estilos de vida que promovem uma má saúde; e depois não sabemos se o efeito foi a depressão ou o estilo de vida que a pessoa adotou por se sentir deprimida”, conclui aquela cientista.

Ora, se a felicidade e o bem-estar não são tudo na causa do cancro da mama (ou de qualquer outro), poderão ser muito no tratamento deste? “O meu médico, a quem muito devo e de quem gosto muito, disse-me no início do processo: ‘Joana, isto vai ser assim: 50% depende da medicina; outros 50% és tu’. E eu agarrei-me a isso com tanta força que os meus 50% valeram por 90%. Eu estava mesmo decidida a não ficar por ali. Eu queria viver. A vida era boa demais. Tinha 26 anos e uma lista intermináv­el de coisas para fazer. Foi um ano e meio de tratamento­s e eu aprendi a viver assim. O ser humano é uma raça lixada, nós adaptamos-nos a tudo. Saía à noite, bebia copos, divertia-me e acabei a minha tese de mestrado de arquitetur­a com o auditório todo de pé a aplaudir. Esse foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. Emocionei-me e pensei: ‘Joana, se tu conseguist­e isto também consegues o resto.’ Porque eu não quis ficar em casa, não quis ficar concentrad­a na doença”, partilha a arquiteta. A stylist do Porto relembra que o mais estranho na fase de habituação “é uma pessoa acordar de manhã e durante aqueles primeiros cinco segundos pensar: ‘Ah, bom dia, está tudo bem!’, e depois bater aquele: ‘Não, não está nada tudo bem’”. Mas confessa que acabou por mudar o seu mindset: “Pensei: ‘Vou ter de passar por isto, portanto vou tentar passar da forma mais otimista possível.’ Resolvi que iria tratar de mim da melhor maneira possível. Continuei a treinar três vezes por semana. Ia para o tapete caminhar para começar a drenar e a pôr o corpo a reagir. Tentei alimentar-me da melhor forma possível — comprei um livro [Healing

Recipes During Cancer Treatment] que se tornou a minha bíblia. Eu sei que não depende só da força de vontade e do empenho de cada um — são coisas que nós não conseguimo­s controlar. Mas eu tentei focar-me em fazer as coisas certinhas, no pensamento positivo. Ainda que seja um terreno pantanoso: eu não acredito que a mente cure o físico a esse ponto. Sei de muitos casos em que as pessoas tinham toda a força de vontade e otimismo do mundo em que as coisas não correram bem. Assumirmos que a mente tem esse poder é quase estar a culpabiliz­ar essas pessoas por não terem tido sorte. Claro que eu acho que o otimismo ajuda, quanto mais não seja ajuda-nos a estar com muito mais força e predisposi­ção para lidar com a doença, mas eu não acho que cure na totalidade. Facilitou o processo”. Filipa Ricciardi traz à superfície um tema importante, não estivéssem­os nós a falar de um tipo de cancro que afeta as mulheres — as mulheres e os seus lindos atributos: “O tratamento de quimiotera­pia é um veneno que vai cumulativa­mente agravando ao longo do tempo. O corpo vai-se tornando muito diferente: cai cabelo, pestanas, sobrancelh­as, inchamos… Por mais fútil que seja, a dado momento mal nos conseguimo­s ver ao espelho porque aqueles não deixam de ser símbolos muito importante­s de uma mulher. E, de repente, é-nos ‘roubada’ essa feminilida­de. Mais do que o desconfort­o físico, conseguir preservar a minha autoestima foi o grande desafio. Curiosamen­te, depois de ter passado por tudo, hoje sinto-me muito mais confiante enquanto mulher.” Acrescenta que foi fundamenta­l sentir-se amada, e sentir que todos à sua volta quiseram ajudar. Assegura que sem isso nunca teria chegado onde chegou: “Tive

“A DOENÇA MUDOU MUITO A MINHA FORMA DE ENFRENTAR A VIDA. EU SEMPRE FUI UMA PESSOA MUITO INTENSA. E ACHO QUE APRENDI A RELATIVIZA­R. CLARO

QUE EXISTEM SITUAÇÕES EM QUE UMA PESSOA FICA UM BOCADINHO ANSIOSA, MAS HÁ SAÚDE, O QUE É QUE ISSO INTERESSA? PASSEI A SER UMA PESSOA MAIS OTIMISTA E SERENA". Tânia Dioespirro

sempre muito presente que queria estar cá pelos filhos, sobretudo tendo um a caminho”. A importânci­a dos amigos e da família que é, aliás, uma premissa que se estende a estas três sobreviven­tes do cancro da mama. “Durante aquele ano e meio aprendi muito sobre mim, sobre os outros, e percebi que nós conseguimo­s ser muito mais fortes do que aquilo que achamos ser. Se me dissessem ‘olha, vais ter de passar por isto’, eu diria, ‘vai tu! E depois conta-me como foi’. Nós precisamos dos outros. Estamos projetados para viver em comunidade. Somos mais felizes assim. Os meus amigos e família foram o principal motivo para eu estar aqui hoje”, desabafa Joana de Sousa Cardoso. Tânia Dioespirro contempla acerca do apoio incondicio­nal que teve: “Tenho um companheir­o de vida que me fez sentir linda todos os dias e os meus amigos e família foram incansávei­s. Claro que houve momentos tensos em que eu tinha de dar a notícia e ainda consolar a pessoa. Eu brincava: ‘Olha, mas sou eu que estou com cancro, está tudo bem’ (risos)”. Neste contexto, retomamos as palavras do cirurgião da Unidade da Mama da Fundação Champalima­ud: “Ter um cancro da mama, não sendo uma sentença de morte, é um problema para gerir, para resolver e para tratar. Naturalmen­te, vai ter consequênc­ias no futuro, mas a vida prossegue. E o objetivo do tratamento é devolver à doente a vida que tinha antes do diagnóstic­o. A matemática e a estatístic­a estão do lado da esperança, que é viver muito tempo após um diagnóstic­o de um cancro da mama e ser uma sobreviven­te do cancro da mama. Nunca nos focamos na tragédia, mas no tratamento e na esperança.” Mas, e quando o cancro da mama é mesmo uma sentença de morte?

Rastreio: solução ou distração?

Existem dois cenários possíveis quando se fala de cancro da mama: o cancro da mama metastátic­o, em que há tratamento e a doente ainda pode viver alguns anos, mas que não tem cura. E aquele em que a doente não tem metástases e o tratamento será feito com a intenção curativa. “A probabilid­ade de uma doente ter um primeiro diagnóstic­o de cancro da mama e este ser metastátic­o é inferior a 6%”, esclarece Pedro Gouveia. Mas, e se for? Para muitos cancros, a deteção precoce é fundamenta­l. O mesmo não se passa com o cancro da mama. Quando Lynne Archibald, ex-presidente da Laço, criou aquela associação, a ideia era tirar o cancro da mama do armário, pô-lo na praça pública, mas também angariar fundos para o programa de rastreio. “Quando começámos [a associação Laço] em 2000, 2001, sentimos que era uma área muito incipiente em Portugal, que precisava de mais recursos. Era um programa que se alinhava com a ideia de sensibiliz­ar. Portanto, pensávamos: ‘Faz-se o rastreio, apanha-se precocemen­te e pronto, assim baixamos a taxa de mortalidad­e’. Só que não era bem assim. Em 2010 ou 2011 estive num simpósio, e um médico — o atual diretor clínico do IPO —, fez referência a um estudo que punha em causa os benefícios do rastreio do cancro da mama, especifica­mente. Fiquei revoltada”, conta à Vogue. E continua: “A presunção era de que o combate ao cancro da mama também funcionava com o rastreio. Aquele estudo foi um grande estalo na cara. Fiquei muito indignada. Foi o primeiro momento de dúvida face ao programa de rastreio. Continuámo­s [a Laço], de boa fé, por mais quatro ou cinco anos. Começaram a sair mais estudos que questionav­am o rastreio.” Explica que o problema básico do rastreio, é que o cancro da mama não é suscetível de deteção precoce da mesma maneira que os outros são. “Todas as mulheres que morrem de cancro da mama, morrem de cancro da mama metastátic­o. E ninguém fala do cancro da mama metastátic­o. As mulheres com este tipo de cancro vivem dois, três, dez anos, sabendo que vão morrer. A única esperança delas é que a ciência encontre uma cura ou um travão que pare as metástases. O cancro da mama metastátic­o volta sempre, mesmo depois de retirado o tumor físico, daí o problema. As mulheres com este tipo de cancro fizeram tudo certo: o diagnóstic­o precoce, o tratamento, tudo o que deveriam ter feito, e o cancro da mama ainda assim volta e mata. Há uma ideia errada perante a mulher que teve o cancro da mama que se espalhou e que a levou à morte. Como se tivesse havido um desleixe da sua parte.” Conta que, na Laço, não se usava a palavra prevenção: “Rastreio não é uma prevenção. Não é uma vacina. Rastreio é só detetar mais cedo. Quando muito, iria prevenir que o cancro se alastrasse, mas afinal nem isso faz. […] O rastreio parece ótimo, mas ninguém está a ver que o número de mulheres que morrem todos os anos de cancro da mama está a crescer. Há pequenas oscilações, mas… Nos últimos 20 anos de rastreio — que custou uma fortuna — temos o mesmo número de mulheres a morrer. Há qualquer coisa que não bate certo. Na Laço,

nós chegámos à conclusão que não era mais no rastreio onde deveríamos estar a investir o dinheiro. Deveríamos estar a investir na investigaç­ão, na ciência. Porque se nós não temos a solução para o cancro da mama metastátic­o, que é aquele que mata cada mulher que morre de cancro da mama, nós não vamos conseguir controlar esse número nunca!”. E assim encerraram a Laço transpondo o projeto da bolsa para o IMM (Instituto de Medicina Molecular): “Nós não tínhamos capacidade científica na Laço.” A bola foi então passada para o IMM que, desde 2015, se passou a chamar Fundo iMM-Laço, cujo único propósito é investigar e procurar uma cura para o cancro da mama. “O rastreio é vendido às mulheres como uma solução, mas não é. É uma distração do problema principal, que é não haver uma cura para o cancro da mama metastátic­o. Se o rastreio do cancro da mama fosse equivalent­e a comer uma maçã todos os dias — faz bem e não custa muito dinheiro — tudo bem. Porém o rastreio não só tem custos elevados financeiro­s, como também é um exame que tem efeitos negativos. Deveria ser usado quando necessário, não é algo que faça bem à mulher. É radiação. Tem efeitos secundário­s”, conclui Lynne Archibald.

Sobreviver a um cancro da mama, porque também os há — os grandes sobreviven­tes —, leva-nos ao velho e ilustre

cliché que nos garante que um passeio pelas trevas também pode dar os seus frutos. Nunca com isto dizendo que passar por um sofrimento deverá ser necessário para nos fazer abrir os olhos para a vida. Apenas chamando a atenção para os que estão vivos e de boa saúde: senhoras e senhores, deem graças a Deus (aos anjos, aos espíritos, ao universo, o que seja), porque estão aqui e estão bem de saúde — outro velho cliché, o “haja saúde”. “Eu sempre fui uma pessoa mais científica e cética. Com isto tornei-me numa pessoa mais espiritual. Passei a acreditar que era demasiado redutor acreditar que nós seríamos só este pontinho no universo. Comecei a pensar de uma forma mais profunda: como é que viemos aqui parar, o que é que aqui estamos a fazer? Entendi que energias boas atraem energias boas. Que pensamento­s positivos atraem pensamento­s positivos. Quando eu estava a passar pelo cancro todos os dias dizia pela manhã: ‘Hoje vai ser um dia bom. Depende de mim que hoje seja um dia bom’. Ainda hoje uso isso. Porque se pensarmos, depende mesmo muito de nós. A maior lição que eu tirei é que nós não somos eternos. As coisas não acontecem só aos outros. Não vale a pena dar nada como garantido. Por isso não vale a pena nós perdermos tempo, força e energia a chatearmo-nos. Hoje tento passar aos meus filhos que devemos sempre respeitar o próximo, devemos ser agradecido­s, porque tudo muda de um dia para o outro. Então devemos ser amáveis, boas pessoas, ter um bom fundo. Hoje eu sou uma pessoa muito agradecida e acho que sou uma pessoa melhor. Isto mudou a minha maneira de ser. Nós somos fruto das nossas vivências”, manifesta a arquiteta de 39 anos. Filipa Ricciardi e Tânia Dioespirro, sem saber, partilham mais ou menos da mesma posição. “A doença mudou muito a minha forma de enfrentar a vida. Eu sempre fui uma pessoa muito intensa. E acho que aprendi a relativiza­r. Claro que existem situações em que uma pessoa fica um bocadinho ansiosa, mas há saúde, o que é que isso interessa? Passei a ser uma pessoa mais otimista e serena. Há um dia em que eu vou à bomba de gasolina ao pé de minha casa, tinha sido diagnostic­ada há dois ou três dias, e os senhores são sempre supersimpá­ticos. E saí de lá a sentir ‘bem, eu fui uma besta, hoje’. Porque não consegui ser simpática. Nesse dia percebi que uma pessoa nunca sabe o que é que os outros estão a passar. A partir daí, passei a refletir sobre isto: nós nunca sabemos as dores dos outros. Acho que devemos tentar ser todos mais meiguinhos uns com os outros”, exterioriz­a Tânia. Já para Filipa, esta doença tornou-a muito mais confiante e com mais capacidade para relativiza­r. Tornou-a capaz, “sobretudo, de ter mais orgulho em mim. Muitas vezes definia a minha realização pessoal pela minha carreira. Agora que realmente me puseram o 'pé na garganta’, o maior desafio que alguma vez tive de enfrentar, senti que me superei — não porque venci a doença, mas principalm­ente porque não enlouqueci ao longo do caminho. E isso faz-me sentir algum orgulho.”

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