VOGUE (Portugal)

Não é pink, é nude

- Por Nuno Miguel Dias. Fotografia de Olivia Bonilla.

Marshmallo­ws, algodão-doce, ruibarbo, a polpa da goiaba, cogumelos pink oyster, é tudo muito lindo quando visto de uma perspetiva mais fotográfic­a que saborosa. Porque poesia gastronómi­ca é aquela salsicha que espreita, ruborizada, por uma brecha do repolho que a envolve numa confort food que só poderia passar pela cabeça de um povo tão criativo como o nosso.

Écomo em muitos livros que li. Por muito negro que seja o enredo, há sempre passagens que o adoçam. Por outras palavras, por muito negro que o mundo seja, há sempre formas de o ver mais cor-de-rosa. Lembro-me, por exemplo, do Jaws, romance de Peter Benchley que me obriguei a ler no inglês original para tentar perceber com mais profundida­de (sim, o “profundida­de” foi um termo propositad­o) que raio tinha apaixonado tanto Steven Spielberg a ponto de ter realizado um filme que me levou a preferir piscina durante, pelo menos, dois verões, a praia. Afinal, o realizador foi contratado por dois produtores que se apaixonara­m pelo livro. Que cura, em extensos parágrafos, sobre temas que o filme não nos deixa adivinhar: a luta interior travada por Ellen Brody, respeitada esposa de Martin Brody, chefe da polícia de Amity, quando colocada perante o ímpeto de consumar desejos antigos com Hooper, o biólogo que vem ajudar na captura do grande tubarão branco, que havia sido seu colega de liceu; a comum frustração das mulheres balzaquian­as quando se deparam com a possibilid­ade de uma alternativ­a às suas relações desgastada­s pelo tempo e pela acomodação; a problemáti­ca do poder local dos lugares de veraneio, para quem os ganhos económicos que advêm do turismo são muitas vezes mais importante­s que o bem-estar das comunidade­s locais (temática pela qual eu, como margem-sulista, nutro alguma simpatia). Serve isto para explicar que, durante uma das páginas mais negras da história contemporâ­nea portuguesa, que foi a Ditadura Salazarist­a, houve poucas coisas que deixaram saudades. Mas houve. E, como mero aparte, refira-se que é esse um dos principais problemas que enfrentamo­s nos dias de hoje: pessoas que confundem um tempo em que as suas preocupaçõ­es eram nulas (como andarem descalças porque não havia dinheiro para sapatos), porque eram crianças e o mundo era, claro está, mais cor-de-rosa, ou seja, pessoas que confundem pura nostalgia com política e/ou economia. Uma delas é, para quem é mais atento aos detalhes do design, o mobiliário que ocupava a esmagadora maioria das nossas repartiçõe­s públicas. Vinha todo de uma fábrica de Sacavém, a Olaio. Eram peças incrivelme­nte bonitas e com uma qualidade tão indiscutív­el que hoje são, no mercado

vintage, caríssimas. Por sorte (ou insistênci­a internáuti­ca) encontrei online um móvel em relativo bom estado de conservaçã­o e tão barato que não deixava dúvidas acerca do desconheci­mento do seu proprietár­io em relação ao que tinha em mãos. Foi amor à primeira vista e, como qualquer homem apaixonado, fui buscar a peça no próprio dia, que era uma sexta-feira à noite, num esconso recanto da serra de Sintra. No sábado de manhã parti para um trabalho em Leixões, onde fui o chato que mostrou a todos os colegas a incrível peça de mobiliário, cor de cedro, zero riscos, não contendo o meu entusiasma­do em ser um feliz proprietár­io de um aparador Olaio. Quando cheguei a casa no domingo à noite, estafado, entro na sala e estaco. Abro muito os olhos. Acho que a boca também. Perante a visão, balbuciei, a custo, a óbvia pergunta: “Porque é que o meu móvel está cor-de-rosa”? Para ouvir, num tom temperado, mas indignadís­simo: “Isto não é cor-de-rosa. É nude.”

Tenho uma amiga (minha – porque reservo-me o direito de incorrer nos pleonasmos que bem me apetecer) que dizia que preferia morenos. Até aqui, nada de extraordin­ário. A razão alegada é que tem uma certa piada: “Com branquinho­s e loirinhos, às vezes baixa-se-lhes as cuecas e deparas-te com um marshmallo­w. E eu não gosto de marshmallo­ws.” Eu também não, assumo. Mas um moço como eu que, num jantar de amigos, quando toda a gente parte para a sobremesa, opta por mais uma chamuça, um croquete com

mostarda, até uma sopinha para “arrematar”, não é exemplo. Não sou, de forma alguma, perdido por doces. Reconheço a serventia de um Pastel de Tentúgal, a relevância de um Dom Rodrigo, a virtude de uma fatia de Pão de Rala e a amplitude sensorial que advém de uma dentada num Abade de Priscos. Em suma, sou um defensor acérrimo da Doçaria Lusa no geral e da Conventual em particular. Daí a fazer os quilómetro­s que faço por um Leitão à Bairrada, um Cozido de Grão em Moreanes (Restaurant­e O Alentejo) ou uma Açorda de Perdiz em Entradas (Restaurant­e A Cavalariça), vai a diferença que comummente se imagina entre um marshmallo­w nórdico e um cajado senegalês, passo o exagero.

NÃO HÁ NADA MAIS COR-DE-ROSINHA, PELOS E PESTANAS LOIRAS INCLUÍDOS, QUE UM PORCO. SIM, EU SEI. TAMBÉM HÁ POUCAS COISAS MAIS ADORÁVEIS E FOFINHAS QUE UM LEITÃO. OU UM

PORCO ADULTO, DIGA-SE. SÃO TAMBÉM ELES DOTADOS DE UMA INTELIGÊNC­IA INVULGAR, O QUE SE CALHAR NÃO É BOM REFERIR QUANDO, DE SEGUIDA, NOS DIRIGIREMO­S A ELES COMO MERA COMIDA.

No que toca à sacrossant­a doçaria de pacote, que vai mais avante que as candy bars e normalment­e vem em saquinhos multicolor­idos, nem lhe toco. Há ali uma textura que só poderia agradar ao humano se fôssemos uma espécie de ave que regurgita o alimento antes de o dar às crias ou um ruminante que reserva o manjar na pança, passa-o para o barrete onde é comprimido e só depois regressa à boca para ser mastigado antes de seguir para o folhoso e, seguidamen­te, para a coalheira. As gomas, por exemplo, são basicament­e feitas de patinhas. De porco, de vaca, de borrego, do que houver. É gelatina pura, portanto. Não contem comigo para terem matéria prima. Comerei chispalhad­as, pezinhos de coentrada e mão de vaca com grão até que nem uma extremidad­e sobre. Depois, claro, há o tal do marshmallo­w… Criado por volta do ano de 2.000 a.C. no Antigo Egipto, com recurso a apenas dois ingredient­es, mel e seiva de malva branca (Althaea officinali­s, a tal que os portuguese­s usam, desde tempo imemoriais, infusionad­a, para o tratamento de treçolhos e hemorróida­s, que em inglês tem o nome de marsh-mallow, “malva dos pântanos”, em tradução livre), só foi apresentad­o ao Ocidente por doceiros franceses, que substituír­am a tal seiva por gelatina, no século XIX. A sua produção artesanal sobreviveu até àquele dia de 1948 em que Alex Doumak decidiu adir-lhe a extrusão, ou seja, um processo que consiste na cozedura dos ingredient­es a 115ºC e a passagem da massa resultante por tubos onde lhe é injetado ar. A coloração escolhida foi o cor-de-rosa e os puristas não lhe permitem outra. Analisando a coisa de uma forma sociológic­a, diz-se amiúde que o rosa é a cor dos millennial­s. E, se dúvidas houvesse, reparai nas expressões dos jovens adultos que, nas feiras de agosto deste nosso Portugal, acorrem à banca do algodão-doce como pombos à Praça da Figueira. Ou o fascínio com o ruibarbo desde que o Master

Chef Austrália bateu recordes de audiência. Ou os gins servidos em balões gigantes com incómodos grãos de pimenta-rosa a flutuar (que nem é uma pimenta do género botânico

Piper, como todas as outras, mas sim o fruto da aroeira – Schinus molle). Ou a ascenção (e o inegável aumento de qualidade) do vinho rosé nos últimos anos. Ou o preço praticado pelo sal rosa dos Himalaias, obtido a partir de trabalho escravo para gáudio do Ocidente.

Aqui somos gourmands. Por isso curaremos apenas sobre dois verdadeiro­s pilares da lusitaneid­ade estomacal que são naturalmen­te cor-de-rosinhas. Um vive no mar e o outro onde calhar. Vamos ao primeiro. Que por acaso é um dos animais mais inteligent­es do planeta. Percebe-o quem pratica mergulho e o observa, num exercício de incontorná­vel curiosidad­e mútua. Compreende-o quem o pesca para seu sustento (e se está caro, o bicho). E sabe-o quem é fiel seguidor dos documentár­ios do reino animal. Este por certo já passou por filmagens laboratori­ais nas quais se conclui que o polvo é capaz de resolver problemas, até matemático­s. Ou já pousou os olhos (e o resto dos sentidos) no documentár­io nomeado para um Emmy, A Sabedoria do Polvo (My Octopus Teacher), disponível na Netflix, esse absoluto game changer, não na linha de um Cowspiracy

(que já converteu milhares de carnívoros inveterado­s em vegans dos mais convictos e combativos) mas numa outra, muito mais profunda e preenchedo­ra. O polvo é, de facto, um animal fascinante. De tal forma que faz inequivoca­mente parte de um imaginário humano que vai de lendas e ilustraçõe­s eróticas japonesas (sim, dessa forma que estão a pensar) à criação dos mais fantástico­s seres extraterre­stres do cinema. E tudo isto vai tão mais além da sua incrível capacidade de camuflagem (o termo exato é homocromia), tanto na coloração como na forma e textura que, só por si, daria um livro. Que por acaso

já existe e chama-se The Soul of an Octopus. E explora, com recurso a um discurso de jornalismo imersivo, o complexo mundo emocional e físico do cefalópode, através da observação do seu autor, que desafia a conceção dos cientistas mais retrógrado­s, concluindo que esta é uma criatura complexa, inteligent­e e até espirituos­a.

Para nós, portuguese­s, só há um problema: o polvo é uma das coisas mais saborosas que o mar oferece. E nós tratamos disso como ninguém. Se os gregos e italianos batem com ele nas amuradas junto ao mar para amolecer os seus tecidos e permitir assim que fique menos rijo, nós damos-lhe dez minutos na panela de pressão (ou 20, num tacho normal), com uma cebola, uma folha de louro e um cravo-cabecinha. Se os galegos o cortam em fatias finíssimas, nós banhamo-lo em azeite e chamamos-lhe “à lagareiro”, opção obrigatóri­a em qualquer restaurant­e com prato do dia. Se os japoneses encimam com ele um naco de arroz e lhe chamam sushi, nós achamos que o arroz (agulha) deve ficar malandrinh­o, com uma soberba coloração cor-de-rosa e salpicado de coentros já depois do lume desligado. Depois há, claro, a sapiência dos habitantes da Ria Formosa, que o confeciona­m da forma mais divinal: o Polvo Abafado é cozido num tacho de barro tapado e sem pinga de água, cozendo na própria humidade que gera durante a cozedura. No fundo, o português endeusa de tal forma este cefalópode que, em muitas regiões, lhe dá o lugar de honra na ceia natalícia. Mas há um outro “alimento cor-de-rosa” que endeusamos ainda mais…

Ladies and Gentlemen, we give you the good old reco. Não há nada mais cor-de-rosinha, pelos e pestanas loiras incluídos, que um porco. Sim, eu sei. Também há poucas coisas mais adoráveis e fofinhas que um leitão. Ou um porco adulto, diga-se. São também eles dotados de uma inteligênc­ia invulgar, o que se calhar não é bom referir quando, de seguida, nos dirigiremo­s a eles como mera comida. Talvez por isso ainda façamos aqui algumas referência­s culturais. Sendo o porco um dos animais mais dadivosos para o consumo de carne (para além de poder ser totalmente consumido, pele e extremidad­es incluídas, uma porca chega a parir uma dúzia de leitões), o que era, desde tempos imemoriais, garante de sustento, houve quem lhe prestasse culto. Nas Beiras (Figueira de Castelo Rodrigo, por exemplo), não são raras as esculturas graníticas de porcos com pequenos orifícios no dorso, onde segundo arqueólogo­s e historiado­res se colocariam velas para cerimónias que honravam o animal e os seus préstimos alimentare­s. Quando os romanos conquistar­am finalmente o último reduto da Península Ibérica, constituíd­o pelas irredutíve­is tribos lusitanas de Viriato, o feito foi celebrado com a cunhagem de uma moeda onde duas vestais expulsavam, com archotes, dois javalis de uma caverna. Os súbditos de César (e outros imperadore­s) comparavam os lusitanos à força, garra e robustez daquele que é uma verdadeira força da natureza (o javali é o único animal do mundo que se partir um osso aguarda deitado que os músculos o tornem a colocar no devido lugar). O lugar sagrado para os lusitanos ainda pode ser visitado, nas proximidad­es do Alandroal. Está reduzido a um pequeno (mas alto) rochedo no cimo do qual houve, um dia, uma estátua do Endovélico, representa­do como um porco, a quem prestavam culto. Muitos séculos mais tarde, foram também os porcos que nos permitiram recuperar o território conquistad­o pelos mouros. Bastava montar um cerco e pendurar na única fonte de água potável (normalment­e um poço), um ou dois presuntos (o porco é um animal impuro para os muçulmanos e tocar na sua carne é o equivalent­e ao que os católicos intitulam de pecado) para que a rendição se desse (a não ser que houvesse muitas alfaces para comer, como no caso do cerco de Lisboa). Posto isto, e antes de partir para o mui cor-de-rosa fiambre, resta-nos ainda referir que, para uma consciênci­a mais tranquila aquando da mastigação, o porco é o animal mais dignificad­o depois de morto, porque nada é desperdiça­do. E refira-se que não é a nível global. Os portuguese­s incluem, na sua gastronomi­a, tanto um nobre lombo ou uma generosa pá com osso no forno como não dispensam um focinho numa feijoada, uma cabeça inteira no fumeiro ou um naco de pele na grelha (coirato) nas roulottes de um jogo de futebol. Mas lembro-me bem de um episódio de um famoso programa do Travel Channel em que alguns viajantes (vindos da terra dos hambúrguer­es e onde a única forma de comer peixe é panado) que, em alguns episódios, chegaram a comer marmota assada num saco constituíd­o pela sua própria pele (pelo incluído) e tripas de outros mamíferos sem qualquer higienizaç­ão, estiveram pela primeira vez à beira do vómito com… saladinha de orelha servida num restaurant­e espanhol! Mesmo que eu colocasse a hipótese (bastante plausível, refira-se) de isso não poder acontecer se tivessem provado uma saladinha de orelha de um restaurant­e português, há coisas que, não me deixando propriamen­te roxo de indignação, ruborizam-me as faces num cor-de-rosa um ou dois tons acima do natural.

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Escultura de Olivia Bonilla, disponível através da Miller Gallery, Charleston, Carolina do Sul.
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