Não é pink, é nude
Marshmallows, algodão-doce, ruibarbo, a polpa da goiaba, cogumelos pink oyster, é tudo muito lindo quando visto de uma perspetiva mais fotográfica que saborosa. Porque poesia gastronómica é aquela salsicha que espreita, ruborizada, por uma brecha do repolho que a envolve numa confort food que só poderia passar pela cabeça de um povo tão criativo como o nosso.
Écomo em muitos livros que li. Por muito negro que seja o enredo, há sempre passagens que o adoçam. Por outras palavras, por muito negro que o mundo seja, há sempre formas de o ver mais cor-de-rosa. Lembro-me, por exemplo, do Jaws, romance de Peter Benchley que me obriguei a ler no inglês original para tentar perceber com mais profundidade (sim, o “profundidade” foi um termo propositado) que raio tinha apaixonado tanto Steven Spielberg a ponto de ter realizado um filme que me levou a preferir piscina durante, pelo menos, dois verões, a praia. Afinal, o realizador foi contratado por dois produtores que se apaixonaram pelo livro. Que cura, em extensos parágrafos, sobre temas que o filme não nos deixa adivinhar: a luta interior travada por Ellen Brody, respeitada esposa de Martin Brody, chefe da polícia de Amity, quando colocada perante o ímpeto de consumar desejos antigos com Hooper, o biólogo que vem ajudar na captura do grande tubarão branco, que havia sido seu colega de liceu; a comum frustração das mulheres balzaquianas quando se deparam com a possibilidade de uma alternativa às suas relações desgastadas pelo tempo e pela acomodação; a problemática do poder local dos lugares de veraneio, para quem os ganhos económicos que advêm do turismo são muitas vezes mais importantes que o bem-estar das comunidades locais (temática pela qual eu, como margem-sulista, nutro alguma simpatia). Serve isto para explicar que, durante uma das páginas mais negras da história contemporânea portuguesa, que foi a Ditadura Salazarista, houve poucas coisas que deixaram saudades. Mas houve. E, como mero aparte, refira-se que é esse um dos principais problemas que enfrentamos nos dias de hoje: pessoas que confundem um tempo em que as suas preocupações eram nulas (como andarem descalças porque não havia dinheiro para sapatos), porque eram crianças e o mundo era, claro está, mais cor-de-rosa, ou seja, pessoas que confundem pura nostalgia com política e/ou economia. Uma delas é, para quem é mais atento aos detalhes do design, o mobiliário que ocupava a esmagadora maioria das nossas repartições públicas. Vinha todo de uma fábrica de Sacavém, a Olaio. Eram peças incrivelmente bonitas e com uma qualidade tão indiscutível que hoje são, no mercado
vintage, caríssimas. Por sorte (ou insistência internáutica) encontrei online um móvel em relativo bom estado de conservação e tão barato que não deixava dúvidas acerca do desconhecimento do seu proprietário em relação ao que tinha em mãos. Foi amor à primeira vista e, como qualquer homem apaixonado, fui buscar a peça no próprio dia, que era uma sexta-feira à noite, num esconso recanto da serra de Sintra. No sábado de manhã parti para um trabalho em Leixões, onde fui o chato que mostrou a todos os colegas a incrível peça de mobiliário, cor de cedro, zero riscos, não contendo o meu entusiasmado em ser um feliz proprietário de um aparador Olaio. Quando cheguei a casa no domingo à noite, estafado, entro na sala e estaco. Abro muito os olhos. Acho que a boca também. Perante a visão, balbuciei, a custo, a óbvia pergunta: “Porque é que o meu móvel está cor-de-rosa”? Para ouvir, num tom temperado, mas indignadíssimo: “Isto não é cor-de-rosa. É nude.”
Tenho uma amiga (minha – porque reservo-me o direito de incorrer nos pleonasmos que bem me apetecer) que dizia que preferia morenos. Até aqui, nada de extraordinário. A razão alegada é que tem uma certa piada: “Com branquinhos e loirinhos, às vezes baixa-se-lhes as cuecas e deparas-te com um marshmallow. E eu não gosto de marshmallows.” Eu também não, assumo. Mas um moço como eu que, num jantar de amigos, quando toda a gente parte para a sobremesa, opta por mais uma chamuça, um croquete com
mostarda, até uma sopinha para “arrematar”, não é exemplo. Não sou, de forma alguma, perdido por doces. Reconheço a serventia de um Pastel de Tentúgal, a relevância de um Dom Rodrigo, a virtude de uma fatia de Pão de Rala e a amplitude sensorial que advém de uma dentada num Abade de Priscos. Em suma, sou um defensor acérrimo da Doçaria Lusa no geral e da Conventual em particular. Daí a fazer os quilómetros que faço por um Leitão à Bairrada, um Cozido de Grão em Moreanes (Restaurante O Alentejo) ou uma Açorda de Perdiz em Entradas (Restaurante A Cavalariça), vai a diferença que comummente se imagina entre um marshmallow nórdico e um cajado senegalês, passo o exagero.
NÃO HÁ NADA MAIS COR-DE-ROSINHA, PELOS E PESTANAS LOIRAS INCLUÍDOS, QUE UM PORCO. SIM, EU SEI. TAMBÉM HÁ POUCAS COISAS MAIS ADORÁVEIS E FOFINHAS QUE UM LEITÃO. OU UM
PORCO ADULTO, DIGA-SE. SÃO TAMBÉM ELES DOTADOS DE UMA INTELIGÊNCIA INVULGAR, O QUE SE CALHAR NÃO É BOM REFERIR QUANDO, DE SEGUIDA, NOS DIRIGIREMOS A ELES COMO MERA COMIDA.
No que toca à sacrossanta doçaria de pacote, que vai mais avante que as candy bars e normalmente vem em saquinhos multicoloridos, nem lhe toco. Há ali uma textura que só poderia agradar ao humano se fôssemos uma espécie de ave que regurgita o alimento antes de o dar às crias ou um ruminante que reserva o manjar na pança, passa-o para o barrete onde é comprimido e só depois regressa à boca para ser mastigado antes de seguir para o folhoso e, seguidamente, para a coalheira. As gomas, por exemplo, são basicamente feitas de patinhas. De porco, de vaca, de borrego, do que houver. É gelatina pura, portanto. Não contem comigo para terem matéria prima. Comerei chispalhadas, pezinhos de coentrada e mão de vaca com grão até que nem uma extremidade sobre. Depois, claro, há o tal do marshmallow… Criado por volta do ano de 2.000 a.C. no Antigo Egipto, com recurso a apenas dois ingredientes, mel e seiva de malva branca (Althaea officinalis, a tal que os portugueses usam, desde tempo imemoriais, infusionada, para o tratamento de treçolhos e hemorróidas, que em inglês tem o nome de marsh-mallow, “malva dos pântanos”, em tradução livre), só foi apresentado ao Ocidente por doceiros franceses, que substituíram a tal seiva por gelatina, no século XIX. A sua produção artesanal sobreviveu até àquele dia de 1948 em que Alex Doumak decidiu adir-lhe a extrusão, ou seja, um processo que consiste na cozedura dos ingredientes a 115ºC e a passagem da massa resultante por tubos onde lhe é injetado ar. A coloração escolhida foi o cor-de-rosa e os puristas não lhe permitem outra. Analisando a coisa de uma forma sociológica, diz-se amiúde que o rosa é a cor dos millennials. E, se dúvidas houvesse, reparai nas expressões dos jovens adultos que, nas feiras de agosto deste nosso Portugal, acorrem à banca do algodão-doce como pombos à Praça da Figueira. Ou o fascínio com o ruibarbo desde que o Master
Chef Austrália bateu recordes de audiência. Ou os gins servidos em balões gigantes com incómodos grãos de pimenta-rosa a flutuar (que nem é uma pimenta do género botânico
Piper, como todas as outras, mas sim o fruto da aroeira – Schinus molle). Ou a ascenção (e o inegável aumento de qualidade) do vinho rosé nos últimos anos. Ou o preço praticado pelo sal rosa dos Himalaias, obtido a partir de trabalho escravo para gáudio do Ocidente.
Aqui somos gourmands. Por isso curaremos apenas sobre dois verdadeiros pilares da lusitaneidade estomacal que são naturalmente cor-de-rosinhas. Um vive no mar e o outro onde calhar. Vamos ao primeiro. Que por acaso é um dos animais mais inteligentes do planeta. Percebe-o quem pratica mergulho e o observa, num exercício de incontornável curiosidade mútua. Compreende-o quem o pesca para seu sustento (e se está caro, o bicho). E sabe-o quem é fiel seguidor dos documentários do reino animal. Este por certo já passou por filmagens laboratoriais nas quais se conclui que o polvo é capaz de resolver problemas, até matemáticos. Ou já pousou os olhos (e o resto dos sentidos) no documentário nomeado para um Emmy, A Sabedoria do Polvo (My Octopus Teacher), disponível na Netflix, esse absoluto game changer, não na linha de um Cowspiracy
(que já converteu milhares de carnívoros inveterados em vegans dos mais convictos e combativos) mas numa outra, muito mais profunda e preenchedora. O polvo é, de facto, um animal fascinante. De tal forma que faz inequivocamente parte de um imaginário humano que vai de lendas e ilustrações eróticas japonesas (sim, dessa forma que estão a pensar) à criação dos mais fantásticos seres extraterrestres do cinema. E tudo isto vai tão mais além da sua incrível capacidade de camuflagem (o termo exato é homocromia), tanto na coloração como na forma e textura que, só por si, daria um livro. Que por acaso
já existe e chama-se The Soul of an Octopus. E explora, com recurso a um discurso de jornalismo imersivo, o complexo mundo emocional e físico do cefalópode, através da observação do seu autor, que desafia a conceção dos cientistas mais retrógrados, concluindo que esta é uma criatura complexa, inteligente e até espirituosa.
Para nós, portugueses, só há um problema: o polvo é uma das coisas mais saborosas que o mar oferece. E nós tratamos disso como ninguém. Se os gregos e italianos batem com ele nas amuradas junto ao mar para amolecer os seus tecidos e permitir assim que fique menos rijo, nós damos-lhe dez minutos na panela de pressão (ou 20, num tacho normal), com uma cebola, uma folha de louro e um cravo-cabecinha. Se os galegos o cortam em fatias finíssimas, nós banhamo-lo em azeite e chamamos-lhe “à lagareiro”, opção obrigatória em qualquer restaurante com prato do dia. Se os japoneses encimam com ele um naco de arroz e lhe chamam sushi, nós achamos que o arroz (agulha) deve ficar malandrinho, com uma soberba coloração cor-de-rosa e salpicado de coentros já depois do lume desligado. Depois há, claro, a sapiência dos habitantes da Ria Formosa, que o confecionam da forma mais divinal: o Polvo Abafado é cozido num tacho de barro tapado e sem pinga de água, cozendo na própria humidade que gera durante a cozedura. No fundo, o português endeusa de tal forma este cefalópode que, em muitas regiões, lhe dá o lugar de honra na ceia natalícia. Mas há um outro “alimento cor-de-rosa” que endeusamos ainda mais…
Ladies and Gentlemen, we give you the good old reco. Não há nada mais cor-de-rosinha, pelos e pestanas loiras incluídos, que um porco. Sim, eu sei. Também há poucas coisas mais adoráveis e fofinhas que um leitão. Ou um porco adulto, diga-se. São também eles dotados de uma inteligência invulgar, o que se calhar não é bom referir quando, de seguida, nos dirigiremos a eles como mera comida. Talvez por isso ainda façamos aqui algumas referências culturais. Sendo o porco um dos animais mais dadivosos para o consumo de carne (para além de poder ser totalmente consumido, pele e extremidades incluídas, uma porca chega a parir uma dúzia de leitões), o que era, desde tempos imemoriais, garante de sustento, houve quem lhe prestasse culto. Nas Beiras (Figueira de Castelo Rodrigo, por exemplo), não são raras as esculturas graníticas de porcos com pequenos orifícios no dorso, onde segundo arqueólogos e historiadores se colocariam velas para cerimónias que honravam o animal e os seus préstimos alimentares. Quando os romanos conquistaram finalmente o último reduto da Península Ibérica, constituído pelas irredutíveis tribos lusitanas de Viriato, o feito foi celebrado com a cunhagem de uma moeda onde duas vestais expulsavam, com archotes, dois javalis de uma caverna. Os súbditos de César (e outros imperadores) comparavam os lusitanos à força, garra e robustez daquele que é uma verdadeira força da natureza (o javali é o único animal do mundo que se partir um osso aguarda deitado que os músculos o tornem a colocar no devido lugar). O lugar sagrado para os lusitanos ainda pode ser visitado, nas proximidades do Alandroal. Está reduzido a um pequeno (mas alto) rochedo no cimo do qual houve, um dia, uma estátua do Endovélico, representado como um porco, a quem prestavam culto. Muitos séculos mais tarde, foram também os porcos que nos permitiram recuperar o território conquistado pelos mouros. Bastava montar um cerco e pendurar na única fonte de água potável (normalmente um poço), um ou dois presuntos (o porco é um animal impuro para os muçulmanos e tocar na sua carne é o equivalente ao que os católicos intitulam de pecado) para que a rendição se desse (a não ser que houvesse muitas alfaces para comer, como no caso do cerco de Lisboa). Posto isto, e antes de partir para o mui cor-de-rosa fiambre, resta-nos ainda referir que, para uma consciência mais tranquila aquando da mastigação, o porco é o animal mais dignificado depois de morto, porque nada é desperdiçado. E refira-se que não é a nível global. Os portugueses incluem, na sua gastronomia, tanto um nobre lombo ou uma generosa pá com osso no forno como não dispensam um focinho numa feijoada, uma cabeça inteira no fumeiro ou um naco de pele na grelha (coirato) nas roulottes de um jogo de futebol. Mas lembro-me bem de um episódio de um famoso programa do Travel Channel em que alguns viajantes (vindos da terra dos hambúrgueres e onde a única forma de comer peixe é panado) que, em alguns episódios, chegaram a comer marmota assada num saco constituído pela sua própria pele (pelo incluído) e tripas de outros mamíferos sem qualquer higienização, estiveram pela primeira vez à beira do vómito com… saladinha de orelha servida num restaurante espanhol! Mesmo que eu colocasse a hipótese (bastante plausível, refira-se) de isso não poder acontecer se tivessem provado uma saladinha de orelha de um restaurante português, há coisas que, não me deixando propriamente roxo de indignação, ruborizam-me as faces num cor-de-rosa um ou dois tons acima do natural.