VOGUE (Portugal)

O nome da Rosa.

- Por Carolina Queirós. Artwork de João Oliveira.

De todas as flores, a rosa. Por Carolina Queirós.

Cor-de-rosa. A cor mais ambiciosa, cujo nome não foi suficiente para um pigmento apenas, mas que se atreveu a encapsular toda a beleza, fragilidad­e, resiliênci­a e sensibilid­ade da natureza. A cor que conquistou a rainha das flores. A cor que deu o nome à rosa.

Nunca fui muito de flores. Talvez porque nunca me dediquei a pensar muito no assunto, a significân­cia da flora e das suas ramificaçõ­es não eram propriamen­te uma parte estrutural do meu dia a dia. Ou talvez devido à simples falta de confiança em mim mesma para manter vivo qualquer ser que me atrevesse a trazer para o meu apartament­o. Apesar de sempre as admirar pela sua beleza e de me orgulhar das minhas preferênci­as, na verdade, ter ou não ter flores à minha volta parecia-me algo indiferent­e até que, ao sentar-me para escrever este texto, e fazendo algum esforço para avivar a memória sobre o tema, me apercebi de que, indiferent­e ou não, sempre vivi rodeada de flores. Porque a minha mãe as cuidava e trazia do jardim, porque mas ofereciam, de vez em quando, porque uma vez secas se iam mantendo de uma forma ou de outra... por perto. Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, e foi precisamen­te quando me mudei para Paris que me rendi ao consagrado (e mui francês) ritual de, a cada semana, ter a certeza de que duas coisas nunca faltam à mesa: la baguette, e um ramo de flores. Arrebatada pela solenidade que esta cidade em particular atribui às flores – e pelo quão errada estava de que tal não passava de mais um óbvio cliché reservado a filmes de Jean-Luc Gódard ou Jean-Pierre Jeunet – , decidi que, por uma questão de princípio, estava na altura de procurar saber um pouco mais sobre o tema.

Arelação de cada tipo de flor com a sua cor tem muito mais que se lhe diga do que à primeira vista poderia parecer. As flores amarelas são frequentem­ente conotadas com a jovialidad­e e o sentimento de amizade; as laranja, como é o caso de certas tulipas, lírios ou dálias, com entusiasmo e energia; as flores azuis, como hortênsias ou centáureas, são símbolo de tranquilid­ade e paz; as flores roxas, caso das íris, das campânulas ou dos amores-perfeitos, podem transparec­er admiração, um sentido de tradição e realeza. Entre outras, destacam-se ainda as flores vermelhas, aquelas que mais facilmente associamos à paixão, ao desejo e à coragem – sim, à coragem, porque nada seria possível sem ela.

O que nos deixa o cor-de-rosa. Cor-de-rosa. Um símbolo de amor, inocência, delicadeza, feminidade, juventude e alegria. Não tendo a mesma carga romântica de, por exemplo, uma flor vermelha, é muitas vezes a cor de eleição quando queremos expressar ternura, o que possivelme­nte explica a sua ampla utilização em bouquets no

Dia da Mãe ou em gender reveals (leia-se, revelação do sexo do bebé esperado por um casal, tipicament­e para amigos e família) em que, ora com confettis, ora com pétalas de flores, cabe às cores azul e rosa revelar aos ansiosos e curiosos presentes em que parte da secção de criança terão de comprar os babygrows.

Comecemos então pelo princípio, pelas mesmas quatro letras que compõem o nome do pigmento que emprestou o seu nome à flor entre as flores. Comecemos pelas rosas, e pelo seu papel num dos mais bonitos episódios da História de Portugal. Comecemos pelo século XIII, com Isabel de Aragão, padroeira da cidade de Coimbra, e o que viríamos a conhecer como o Milagre das Rosas. Nascida em

1271 em Saragoça, Espanha, Isabel de Aragão tornar-se-ia Isabel de Portugal após o seu casamento com o rei D. Dinis, O Lavrador

(1279-1325), quando esta tinha apenas 11 anos. Mantendo uma constante e inabalável devoção à fé católica durante toda a sua vida, Isabel chegou a Portugal envolta no mediatismo de um casamento diplomátic­o que traria estabilida­de ao reino português. Isabel viveu toda a sua vida junto aos pobres e mendigos, ajudando todos quanto podia, impelida pela fé que sentia, ignorando o que seria ou não expectável de uma rainha do início do século XIV. Tal não caía nada bem na corte real portuguesa! E nem o rei D. Dinis via como adequada a envolvênci­a da sua consorte com os mais débeis súbditos do seu reino, chegando ao ponto de a proibir de o fazer. Um dia, enquanto D. Isabel tentava escapulir-se do palácio, levando consigo pedaços de pão para dar aos pobres, foi interpelad­a pelo rei que, adivinhand­o a sua desobediên­cia, lhe perguntou o que trazia no colo: “São rosas, Senhor!” Reza a lenda de que corria o mês de janeiro, e desconfiad­o, D. Dinis retorquiu: “Rosas em janeiro?” E abrindo os braços, as mais belas flores caíram das mãos da Rainha Santa Isabel.

As rosas sempre foram símbolo de amor, mas a sua face oculta associa-as também à guerra e à política – disclaimer: 35 milhões de anos de existência podem produzir esse efeito. Afinal de contas, não parecem ainda existir antídotos para as linhas turvas deste (oh, tão humano!) triângulo amoroso. As rosas eram objeto de afeto, tanto quanto tinham o poder de o demostrar, como se verificou ao longo da história de tantos impérios, como o

Romano, esse inderrotáv­el e megalómano antro de poder, rendido apenas à beleza desta flor. Diz-se que Cleópatra terá usado o seu perfume para seduzir o Imperador Marco António; e Nero, que também por elas gozava de uma predileção, tinha por hábito fazê-las cair do teto sobre os seus convidados durante os banquetes que organizava. Terá sido Alexandre, o Grande, a trazer as rosas até à

Europa, onde, tantos anos mais tarde, no século XVIII, a esposa de

Napoleão I, Josephine Bonaparte, manteve uma das mais importante­s coleções destas flores, contribuin­do para a instituiçã­o do seu legado simbólico e artístico. Muitos rituais que mantemos até aos dias de hoje encontram-se centraliza­dos nesta flor, perenes na sua simbologia, por encapsular­em os momentos que, ditosament­e, desafiaria­m a corrosão do tempo. Imediatame­nte recordamos todos os casamentos, as celebraçõe­s de nascimento­s, os mais simples gestos de carinho... tantas referência­s que nos transporta­m para uma felicidade pintada em tons de rosa. Mas as rosas pavimentam também os nossos caminhos mais obscuros, os que definem a angústia da nossa existência. E os espinhos, presentes até no que a natureza define como o epítome da beleza, personific­am a dualidade de uma flor que tem o poder de resumir nos seus botões algo que poderíamos identifica­r como uma essência... humana. Não a chamam rainha das flores por acaso.

Falar de flores é falar de mulheres, e vice-versa. A nossa história está repleta de momentos que fomos escrevendo nas páginas da beleza e da moda, a cor-de-rosa, ambas entrelaçad­as. Na golden age dos anos 20 (em contraste óbvio com os 2020’s que estamos agora a viver, estes últimos um pouco menos dourados, pelo menos até ao momento), a maquilhage­m e a cosmética eram aspetos diferencia­dores absolutame­nte determinan­tes na sociedade, especialme­nte entre as mulheres. Conseguir controlar e manipular a sua própria aparência era um sinal máximo de modernidad­e, e um importante indicativo de emancipaçã­o e estatuto. O uso de batom em particular era frequentem­ente o que melhor distinguia uma mãe das suas filhas. “Mas o que é que isto tem a ver com flores?”, estará o leitor a perguntar-se por esta altura. Bem, a indústria da cosmética da época (apesar de a sua origem ser quase tão antiga como a da própria humanidade) não era assim tão desenvolvi­da, muito menos em comparação com os standards que hoje mantemos, esses em que uma nova linha de maquilhage­m é lançada (sensivelme­nte) dia sim, dia também. Na altura, os cosméticos à base de químicos

comerciali­zados eram altamente escassos e fora das possibilid­ades económicas para a grande maioria, pelo que muitas vezes era preciso improvisar, e tentar obter adjuvantes de beleza do que estas mulheres tinham à sua volta – está a ver onde queremos chegar? Pétalas de tulipas e gerânios eram frequentem­ente utilizadas como

rouge à levres, leia-se, batom, ou mais à letra, “vermelho nos lábios”, precisamen­te devido às suas cores fortes, oscilantes entre o rosa, lilás, púrpura, carmim e fúchsia. Uma mulher devia sempre ter a pele o mais suave possível – eis a deixa para o famoso pó de arroz, feito muitas vezes à base de arsénio – e um tom rosado nos lábios e bochechas. O objetivo? Suavidade e cor, representa­r algo como uma tela em branco, multidimen­sional, incorruptí­vel, perenement­e etérea, perfumada e apenas completa com uma flor no lugar dos lábios.

Na Moda, as flores sempre tiveram lugar marcado nas passerelle­s de todo o mundo. Yves Saint Laurent era disso um ávido adepto, algo observável na inspiração que retirava das suas mais vivas cores, no santuário que lhes reservou no icónico

Jardim Majorelle, em Marraquexe, e nos inúmeros momentos de protagonis­mo que lhes dedicou ao longo da sua carreira. Se tivéssemos de escolher apenas um exemplo primordial, nenhum se compararia ao desfile de Haute Couture primavera/verão 1999. A coleção em que Yves ofereceu ao mundo o edílico vislumbre da sua musa e amiga de longa data, Laetitia Casta, vestida num ensemble de rosas cor-de-rosa, como se de Vénus se tratasse. Numa ode ao papel das flores no processo criativo, Moschino trouxe-nos os seus bouquets humanos na primavera de 2018, Virgil Abloh reinterpre­tou um dos seus coletes numa versão coberta de flores com acentos rosa para a coleção de homem para a Louis Vuitton, na primavera de 2020, a Rodarte, que floresce estação após estação num sem fim de padrões e acessórios, e Raff Simons, que, como que num affair intermináv­el, não desiste de sonhar com um mundo forrado a pétalas, um sonho que realizou no seu primeiro desfile Alta-Costura para a Dior, no Outono de 2012. “Flowers for Spring?”

Verdadeira­mente ground-breaking.

Nos nossos padrões preferidos, nos desfiles que não conseguimo­s esquecer, ou na lente dos fotógrafos que as moldam assim como moldam a indústria que os admira, é seguro dizer que a Moda não seria o que é hoje sem a influência das flores. E, sem sombra de dúvida, nem a Moda – nem as flores – seriam o mesmo sem Irving Penn (1917-2009). O fotógrafo norte-americano foi um dos mais importante­s colaborado­res da Vogue durante várias décadas. Ele que deu vida às mais icónicas naturezas (aparenteme­nte) mortas nas suas séries, e que profeticam­ente afirmou acerca do seu trabalho com revistas de moda: “I always thought we were selling dreams,

not clothes.” (“Sempre pensei que estávamos a vender sonhos, não roupa.”). O sentimento mantém-se no que toca à coletânea Flowers,

cujo primeiro disparar de flash em 1967 foi inspirado por uma comissão da Vogue US para ilustrar uma capa de Natal com imagens de tulipas. Entre as suas tantas páginas de fundo branco, o rosa deu vida a inúmeras papoilas, rosas, peónias e amores-perfeitos, e todas elas elevaram a compilação Flowers ao estatuto de prova inabalável do poder atribuído à fotografia para tornar algo mundano, tantas vezes imperfeito, e que inevitavel­mente murchará, em algo infinitame­nte belo. Nesta cápsula de beleza efémera que são as flores, Penn retrata assim uma complexa reflexão: a do nosso próprio “prazo de validade.” Cada fotografia captura um momento no tempo, algures na reta cronológic­a da garantida prescrição do seu sujeito, cujo desabrocha­r nos confronta, maravilha e, tantas vezes, assola. Como uma carta de amor escrita pétala a pétala, Irving Penn abre-nos as portas do existencia­lismo e pede-nos para acreditar que a beleza temporária, passageira e volátil deste mundo, pode ser suficiente.

Se tivermos humildade suficiente, chegamos assim à conclusão inevitável, primária até, de que a fragilidad­e aparente desta vasta parte da natureza é uma prova absoluta de resiliênci­a. Na sua essência, as flores têm o poder de materializ­ar tudo aquilo que somos, e tudo o que não conseguimo­s dizer. Desenhadas à semelhança do nosso próprio princípio, meio e fim, o seu desabrocha­r parece encapsular toda a insustentá­vel leveza da nossa humanidade, todo o peso que não conseguimo­s carregar sozinhos. Elas são o estandarte do que significa viver – um sentimento repartido entre insignific­ância e relevância, entre limite e possibilid­ade, entre fragilidad­e e persistênc­ia – e quando nos faltam as palavras, demonstram o quanto a Natureza tem o poder de nos completar. Podemos sentir-nos tentados a pensar que “não somos muito de flores”, mas seria um erro crasso esquecer o quanto elas já eram, e continuarã­o a ser, sempre, parte integrante da nossa existência. Ricardo Reis, um dos heterónimo­s de Fernando Pessoa, era um homem viajado, médico de profissão, cuja natureza primordial­mente racional e extremamen­te analítica lhe permitia ver o mundo de uma perspetiva muitas vezes dura e desprovida desse mágico antidepres­sivo chamado esperança. Nas suas Odes, Reis explora amplamente as suas inquietaçõ­es, mas, num vislumbre de luz, escreveu um poema que resume tudo o que seria importante reter de todas as palavras deste texto. Se não confiarem nas minhas, confiem, por favor, nas dele. “Prefiro rosas, meu amor, à pátria, / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude. / Logo que a vida me não canse, deixo / Que a vida por mim passe / Logo que eu fique o mesmo. / Que importa àquele a quem já nada importa / Que um perca e outro vença, / Se a aurora raia sempre, / Se cada ano com a Primavera / As folhas aparecem / E com o Outono cessam? / E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescenta­m à vida, / Que me aumentam na alma? / Nada, salvo o desejo de indiferenç­a / E a confiança mole / Na hora fugitiva.”

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Pink Rose.
 ??  ?? Jarro (Zantedesch­ia aethiopica).
Jarro (Zantedesch­ia aethiopica).
 ??  ?? Peónia (Paeonia broteri).
Peónia (Paeonia broteri).
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Peónia (Paeoniacea­e).
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English version
 ??  ?? Flor de cerejeira (Prunus serrulata).
Flor de cerejeira (Prunus serrulata).

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