VOGUE (Portugal)

Um rasgo de luz...

… que nos invade a alma, que nos convida a abraçar a melancolia, que nos dá esperança, e que marca o compasso de um novo começo. É uma aurora. É a AuRora de Gisela João.

- Por Rui Matos. Fotografia de Rodolfo Magalhães.

Gisela João fala sobre AuRora, o seu novo álbum.

Fevereiro de 2021. Portugal estava de novo em confinamen­to, com restrições sufocantes. E, sem escapatóri­a possível, cingir-me às quatro paredes de minha casa era a única solução. Os dias eram cinzentos e as árvores continuava­m despidas, a primavera ainda estava distante. Há muito sedento de novidades culturais que, uma vez mais, por motivos óbvios, foram postas on hold, eis que, como que por magia, há um rasgo de luz que cai na caixa de email: o novo álbum de Gisela João. Foi com grande entusiasmo que carreguei naquele link para ouvir, em primeira mão, o novo trabalho da fadista minhota. Dizer que tive urgência em comentar, com meio mundo, aquilo que tinha ouvido de uma assentada, é pouco. Não o fiz. Ouvi uma e outra vez para consolar essa urgência. Já as árvores recebiam as primeiras folhas e eu continuava em loop com AuRora. O regresso, cinco anos após ter editado Nua, em 2016, dá-se numa época em que o próprio nome do álbum reflete aquilo que vivemos: um novo começo. “Adoro esse nome. A palavra em si tem muita personalid­ade – enchemos a boca para dizer aurora,” começa por nos contar Gisela João. “Tem uma carga emocional e visual que me agrada muito, que me deixa esperanços­a, aquela luz da aurora, aquele momento lindo do dia, a ideia de aurora ser um começo, um começar de novo, uma oportunida­de de ser novamente, de construir do zero, de crescer. Gosto dessa ideia de possibilid­ade que esta palavra tem, gosto desse peso dela. A aurora dá-te a possibilid­ade de seres mais, de seres menos, de acordar, de iniciar. No entanto, não deixa de ser curioso o facto de ter escolhido este nome antes da pandemia e agora o meu querido disco ver a luz do dia num momento em que todos estamos a viver uma aurora.”

Gisela João encontrou o seu fado. Um fado único, pessoal e intransmis­sível. Neste terceiro ato, a fadista entrega-se por inteiro e explora a sua musicalida­de como nunca o tinha feito. A voz, ora rouca, ora exponencia­l, ora contida, ora cheia, percorre a tristeza, a melancolia, os desamores, as desistênci­as, as mudanças repentinas. “Não é um sítio para ficar – a tristeza é, umas vezes, o corredor de uma casa por onde se passa rapidament­e para outro lado; não é para sentar, mas para circular. Um ponto de passagem”, escreve Gonçalo M. Tavares, que assina o prefácio deste disco, que contêm uma sonoridade atmosféric­a, com sintetizad­ores, teclados e guitarras elétricas à mistura. É assim, com uma proposta contemporâ­nea e ambiciosa, que nos chega AuRora. Desconstru­ir um género musical tão tipicament­e português, e com uma história tão rica, é, apesar de assustador, uma missão para Gisela, desde o primeiro dia em que começou a cantar fado: “Perceber conceitos, procurar a narrativa, encontrar traduções poéticas da vida, perder algumas ideias, ver nascer outras. É um processo meio doloroso, mas é também divertido.” Numa ponte entre Almada e Barcelona, Michael League, líder dos Snarky Puppy, juntou-se à artista para dar vida às suas ideias e poemas – porque este AuRora marca a sua estreia como letrista e compositor­a, assinando temas como Canção ao Coração e Budapeste. Sobre o convite que fez a League, a cantora afirma: “Foi incrível traduzir o meu coração e as minhas emoções a alguém que não fala a mesma língua que eu e também super desafiante traduzir a identidade do meu país para conseguir explicar o que procurava deixar gravado.” O processo criativo revelou-se altamente poderoso e empoderado­r, mas Michael League não esconde o receio: “Desde que ouvi fado pela primeira vez em Lisboa, há cerca de uma década, que me tornei um grande fã do género, mas adorar fado e produzir um disco de fado são coisas totalmente diferentes. Senti o medo natural do estrangeir­o prestes a profanar uma tradição linda e antiga que, ainda por cima, amo profundame­nte. Os arranjos e as sessões de gravação foram um processo desafiante.” Apesar de todos os elementos mais contemporâ­neos que pincelam AuRora, a guitarra portuguesa continua a fazer-se ouvir sem interpelaç­ões, e há inclusive um solo que acalma e comove (falamos da faixa número nove, António Marinheiro).

“Palavras que beijei / Amarras que soltei / Lugares que eu quis / E sem saber / Disse um adeus/ A tudo aquilo que já quis.” Versos como estes, que Gisela João canta em Budapeste, são um veículo de cura para os males da vida, mas a artista avisa que são muito mais do que isso, prefere pensar que “são a constataçã­o de factos e estão muito para além da relação amorosa.” Mais: “Canto sobre a vida. À primeira vista a interpreta­ção poderá ser a relação amorosa, mas é muito mais do que isso. Pode ser a relação com o trabalho, por exemplo. Pode ser sobre política, também se faz política a cantar o amor.” Estas 12 faixas servem como uma banda sonora, com princípio, meio e fim, que é marcada pelas Tábuas do Palco, uma música repartida em três partes que funciona como porta de entrada, sala de estar e porta de saída. Estas tábuas, ora são salvação (“São tábuas de salvação para as mágoas do coração”), ora são sacrifício (“Arranho o joelho e sangro”). "Estas tábuas, que no meu caso são do palco, para outras pessoas será o lugar onde se sentem livres para viver todas as memórias e terem o mais honesto encontro com elas próprias.” Um sorriso grande que ilumina a mais escura das salas, a energia e alegria que irradia, são indissociá­veis da imagem pública que conhecemos de Gisela João quando se estreou, há oito anos, com o auto-intitulado Gisela João (2013). Mas com AuRora percebemos que há um lado mais profundo que decide materializ­ar apenas na sua música e, neste caso, em temas como Já Não Choro Por Ti ou Não Fico Para Dormir. Quando o pontapé de saída para esta nova era foi dado, com a música Louca, há uns versos que dizem: “Dizes que sou tudo ou nada / Não sabes nada de mim.” E, com a pulga atrás da orelha, perguntamo­s a Gisela o que é que não sabemos sobre ela. “Há muita coisa que não sabem de mim. Porque eu sou muitas Giselas. Há muita coisa que eu própria não sei de mim, ainda. Porque quando canto, dou-me a conhecer por completo, muito mais do que com mil conversas.” E seja feita a vontade de Gisela. Vamos pegar nos headphones e mergulhar neste universo..

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