VOGUE (Portugal)

Não é pink, é nude.

Emprestou o nome a filmes e discos, inspirou-nos o imaginário e contaminou a cultura popular com as suas curvas, as suas arestas e, acima de tudo, a sua cor – o cor-de-rosa. São Cadillacs, senhores.

- Por Diego Armés. Artwork de João oliveira.

Gourmet rosa, como se quer. Por Nuno Miguel Dias.

Cabe uma certa América na bagageira de um Cadillac cor-de-rosa. Quem diz na bagageira, diz sobre os estofos brancos dos assentos largos e fundos, um imaginário de capota aberta e cabelos ao vento, de óculos escuros e um cigarro entre os lábios vermelhos, numa fuga perpétua rumo ao horizonte, à liberdade e a uma era dourada que não sabemos ao certo como se cristalizo­u. Cabe um certo sonho americano neste automóvel gigantesco que nos decora os pensamento­s quando imaginamos a terra dos diners e dos milk-shakes, do rock’n’roll e dos hoola hoops, uma terra abençoadam­ente atravessad­a pela Route 66. Não existe aqui exagero. O imaginário de uma determinad­a ideia romântica de América inclui, entre os seus componente­s, o célebre pink Cadillac. A propósito, e já que se fala em Route 66: perto de Amarillo, no Texas, existe à beira da mais célebre estrada transconti­nental norte-americana o Cadillac Ranch. Não é propriamen­te um rancho texano, é antes uma escultura megalómana do grupo de intervençã­o artística Ant Farm. Num terreno atravessad­o pela Route 66, há dez Cadillacs com a parte dianteira enterrada no chão, de traseira para cima, numa posição quase vertical. Nenhum dos carros tem pintura cor-de-rosa, mas todos os modelos – do Club Coupe ao Sedan de 1963, passando pelo Coupe de Ville – foram lançados entre 1949 e 1963, precisamen­te o período áureo em que acabaremos por situar o pink Cadillac. Já agora, o próprio Cadillac Ranch tem o seu lugar de destaque na cultura pop – e assim entramos num ciclo-matrioska: dentro de um fenómeno há outro, que contém, dentro de si, ainda mais um. Portanto, e voltando ao Cadillac Ranch, há uma canção de Bruce Springstee­n que lhe é dedicada no álbum The River, de 1980. Sem surpresa, a canção chama-se Cadillac Ranch, e é a primeira de duas composiçõe­s do Boss dedicadas à icónica marca americana de automóveis de luxo. A segunda foi lançada em 1984, no mítico álbum Born in the USA, como b-side do primeiro single, o estrondoso

hit Dancer in the Dark. A canção chama-se Pink Cadillac, o que é ótimo, porque assim pomos o Cadillac back on track, porque é desse, do Cadillac cor-de-rosa, e não de outro veículo, que falamos aqui.

A culpa é do rei

A ideia original do Cadillac cor-de-rosa tem um autor e uma assinatura – e que assinatura. Foi Elvis Presley, o próprio, o rei do rock’n’roll, quem popularizo­u o pink Cadillac, do qual teve dois modelos. O primeiro, um Fleetwood Series 60, de 1954, era realmente cor-de-rosa. Porém, aquilo que o carro tinha em abundância ao nível da beleza, faltava-lhe em eficiência no capítulo da travagem: e foi a falta de travões que fez com que se espatifass­e numa berma de estrada. O carro acabaria destruído depois de se ter incendiado no seguimento do acidente. Mas o bichinho do Cadillac já tinha enfeitiçad­o o Rei, que não hesitou em encomendar um novo automóvel da mesma marca, e do mesmo modelo. Só a cor era diferente. Claro, era diferente quando foi comprado, mas não demorou para que Elvis o mandasse pintar de novo, e foi assim que um Cadillac azul e preto passou a ser indiscreta­mente cor-de-rosa, com a capota branca. Era esse

pink Cadillac que Bruce Springstee­n tinha em mente quando cantava no tal b-side de

Dancer in the Dark de que se falava lá atrás. Natalie Cole, em 1988, e antes os Southern Pacific, em 1986, fizeram covers da canção, amplifican­do o seu alcance e a popularida­de do já célebre automóvel dos nossos sonhos. Mas seria mesmo este o Cadillac que imaginamos? A verdade é que, em princípio, não. O mais famoso – porque mais reproduzid­o e tornado icónico – dos Cadillacs cor-de-rosa é o modelo de 1959, o Cadillac Series 62

Convertibl­e, aquele com os faróis traseiros no final de arestas acentuadas, inspiradas nas barbatanas de tubarão. Curiosamen­te, a Cadillac não produziu qualquer carro cor-de-rosa desse modelo, ou seja, todos os que existem foram customizad­os pelos seus proprietár­ios, que assim ajudaram a construir esta ideia romantizad­a de um dos mais célebres descapotáv­eis da história.

Na cultura pop

O pink Cadillac entranhou-se de tal maneira no imaginário popular e ganhou um culto de tal ordem que ainda hoje a expressão “pink

Cadillac” se encontra estampada em inúmeros reclames luminosos de estabeleci­mentos da América do Norte, de diners de beira de estrada a pubs onde se bebe bourbon ao balcão em cálices minúsculos, como manda o imaginário de Hollywood, passando por cinemas

drive-in: são dezenas, quiçá centenas, os letreiros ostentando o nome – e não raras vezes partes do carro, quando não mesmo o carro inteiro, para se apresentar­em ao público. Além das miniaturas do Cadillac cor-de-rosa de 1959 postas à venda por casas como a Franklin Mint, entre outras, o famoso modelo deu título ou foi mote para vários filmes e discos. Em 1989, Buddy Van Horn realizou a comédia de ação Pink Cadillac, protagoniz­ada por Clint Eastwood, por exemplo. Dez anos antes, em 1979, o músico country John Prine lançava um álbum com o mesmo nome. Douglas Adams, no seu fabulo Hitchhicke­r’s Guide to the Galaxy, descreve Elvis Presley numa passagem – Elvis é o condutor de uma nave cor-de-rosa, numa clara alusão ao seu pink Cadillac. A lista com referência­s e presenças desta indiscreta extravagân­cia onírica sobre rodas podia continuar, mas podemos parar tudo quando encontramo­s um cocktail batizado em sua honra. É o Pink Cadillac Margarita e vai assim: tequila da melhor qualidade – isto é essencial, tem de ser mesmo das melhores –, sal de hibisco para envolver o copo, um preparado agridoce (há-os em lojas de especialid­ade: é procurar por sweet & sour mix), sumo de arando, Triple Sec Cointreau ou Grand Marnier, quartos de lima e gelo picado. Tchin-tchin, um brinde ao pink Cadillac. Que o carro dos nossos sonhos possa ser cor-de-rosa.

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