Quanto custa ser mulher?
Do gender pay gap ao imposto cor-de-rosa, ser mulher num mundo feito por e para homens tem um preço. E a fatura chega-nos todos os meses.
Custa muito. Custa demasiado. Custa muito mais do que ser homem. Por Ana Saldanha.
Uma pessoa que menstrua gastará por volta de 900 euros, apenas em produtos menstruais, ao longo da sua vida fértil. Há vários países em que produtos como pensos higiénicos e tampões são taxados como bens de luxo. Em média, as mulheres usam sete vezes mais produtos de higiene que os homens. Enquanto isso, ganham menos, e ainda pagam uma sobretaxa, que é uma forma legal e normalizada de opressão. É este o preço que pagamos por nascer mulheres. Mas a mulher que vos escreve reconhece o privilégio de poder discorrer sobre este assunto e não fazer parte dos milhões de mulheres que, em todo o mundo, lidam com a escassez de produtos menstruais – problema que se agravou ainda mais com a pandemia. Um relatório da organização
Plan International revelou, em maio do ano passado, que cerca de três quartos dos profissionais de saúde dos 30 países inquiridos relataram escassez de produtos de higiene íntima e 58% mencionou preços elevados e proibitivos. No mesmo mês, a
Aliança Menstrual de Saúde da Índia publicou um estudo que detalhava que cerca de um quarto das mulheres inquiridas, na
Índia e em alguns países africanos, não tiveram acesso a nenhum produto sanitário no início da pandemia. Mas não precisamos de viajar para tão longe. Uma sondagem de 2017, feita também pela Plan International, mostrou que, na Escócia, 10% das adolescentes não conseguiam pagar produtos menstruais e que muitas faltavam à escola por este motivo. Não foi preciso mais: no mesmo ano, a Escócia tornou-se o primeiro país a disponibilizar produtos de higiene íntima de forma gratuita em escolas e universidades e, em novembro do ano passado, o país fez história ao ser o primeiro a tornar gratuitos os produtos de higiene íntima – que passaram a estar disponíveis, com livre acesso, em centros comunitários, associações juvenis e farmácias, para qualquer pessoa que necessite deles. A decisão foi aplaudida e mostrou-se inspiradora para muitos que lhe seguiram as pisadas. No mês passado, foi a vez da cadeia de supermercados Lidl, na Irlanda, passar a disponibilizar gratuitamente os seus produtos menstruais para quem precise deles, depois de um relatório publicado em fevereiro pelo Departamento de Saúde da Irlanda revelar que cerca de 85 mil mulheres e meninas estão em risco de pobreza menstrual, sendo que pessoas em condição de sem-abrigo e com problemas de adição são ainda mais afetadas pelo problema.
"Em junho de 2016 tive a possibilidade de participar numa conferência no Parlamento Europeu que tinha precisamente como título ‘Tax is a Feminist Issue’. Na base do debate estavam muitos estudos que demonstram de forma clara como as políticas fiscais têm um impacto sobre as mulheres, ou melhor, como contribuem para as assimetrias de género e para a situação de pobreza em que muitas mulheres se encontram. A dimensão do género nos impostos é muitas vezes ignorada pelos Estados e um dos exemplos mais claros são os produtos de higiene íntima e as taxas
(pink tax) que não os consideram produtos de primeira necessidade. Foi um momento importante para fazer alguma reflexão sobre aspetos que desconhecia, como é o caso da pink tax, ou seja, este é um tema do qual pouco se fala e passados quase cinco anos continua a ser pouco falado, ainda mais se nos debruçarmos sobre o contexto português. Claro que é importante referir que pelo menos já tem sido feita alguma discussão sobre os orçamentos sensíveis ao género”, conta à Vogue Carla Cerqueira, Investigadora sobre Estudos de Género e Media. Em Portugal, o Bloco de Esquerda apresentou, em maio do ano passado, um projeto que teria como objetivo disponibilizar produtos menstruais de forma gratuita em centros de saúde e escolas, como medida de combate à pobreza menstrual, mas quase um ano depois ainda não existiram avanços neste sentido. “Em Portugal, tampões, pensos higiénicos e copos menstruais, penso que pagam uma taxa de IVA 6%, mas no resto da União Europeia há uma enorme disparidade, o que revela que esta continua a não ser uma temática importante e que marca as agendas. É necessário fazer-se uma campanha internacional que vise consciencializar para esta questão, mostrando que não se trata de uma escolha o uso deste tipo de produtos e que, por isso, deveriam ser isentos do pagamento de IVA para que as mulheres não sejam penalizadas em termos dos encargos fiscais. Podemos dizer que as taxas que são aplicadas aos produtos de higiene feminina e que não os consideram produtos de primeira necessidade acabam por funcionar como formas legalizadas de opressão sobre as mulheres. As mulheres precisam destes produtos e o investimento que têm de fazer neles quotidianamente contribui para que sejam colocadas numa situação de fragilidade económica. Muitas mulheres na Europa ainda têm de pagar 23% de IVA sobre este tipo de produtos e veem, em muitos casos, os seus rendimentos, que muitas vezes são mais baixos, serem taxados ao mesmo nível dos homens. E o mais curioso é que continua a ser um tema sobre o qual não se fala e do qual as pessoas, nomeadamente as mulheres, não têm muita consciência, e isso acontece precisamente porque se trata de algo que é naturalizado”, explica-nos Carla. No que diz respeito à pandemia, a investigadora reforça que as crises não são neutras do ponto de vista de género e que esta, à semelhança de outras, também não atingiu todos de igual forma: “São várias as esferas onde as assimetrias de género são acentuadas. Se as mulheres se encontram numa situação de maior fragilidade económica, acentuada pela pandemia, isso vai refletir-se também na chamada pobreza menstrual, pois os seus recursos são escassos e também não chegam para essa dimensão, para a compra de produtos sem os quais elas não podem passar.” E a pobreza menstrual e as assimetrias económicas estão completamente interligadas com outro problema: o gender pay gap.
“Temos de perceber que este imposto (pink tax) é aplicado a cerca de metade da população, que são mulheres. Ao comprarmos produtos de higiene feminina ou outros que são dirigidos especificamente para as mulheres e de que necessitamos, estamos a pagar mais, colocando-nos numa situação de maior pobreza. Além disso, vários estudos em diversos contextos mostram como as mulheres continuam a receber menos e que as assimetrias de género no mundo laboral continuam a ser evidentes. Elas são penalizadas com estas taxas na aquisição de determinados produtos que são considerados bens de primeira necessidade. Portanto, facilmente percebemos como é que o gender pay gap ea pink tax se podem relacionar, ou seja, todo o panorama que vivemos acaba por acentuar ainda mais as assimetrias económicas entre homens e mulheres”, afirma a especialista.
No entanto, para começar a conversa sobre pobreza menstrual é preciso primeiro começar por falar da própria menstruação, assunto que ainda carrega consigo o peso de ser tabu, algo de que não se fala, que não se mostra, que se quer esconder. “Considero que esta é uma das questões centrais, porque o estigma que persiste leva a que este tema continue na penumbra em diversas esferas. Pontualmente surgem vozes, até mesmo [dentro] do campo político e a nível do Parlamento Europeu, sei que tem sido feito algum trabalho nesse sentido. Contudo, tem ainda tido pouco reflexo em termos das políticas a implementar. Há, no entanto que destacar que algumas ativistas a nível internacional têm promovido campanhas com forte visibilidade pública e conseguido pressionar os governos nesse sentido. Um dos casos que me recordo é o do Reino Unido, mas as mudanças não se fazem de um dia para o outro. Em Portugal, do que conheço não tenho visto propriamente movimentos a mobilizarem-se nesse sentido de forma sistemática, mas há algumas vozes que pontualmente se vão manifestando relativamente à desconstrução do estigma que ainda existe em torno da menstruação, que referem essa necessidade, a da gratuitidade dos produtos. Estou, por exemplo, a lembrar-me da minissérie documental O Meu Sangue, de Tota Alves, que aborda as questões relacionadas com a menstruação e que foi exibida na RTP Play. Além disso, também várias associações feministas começam a colocar nas suas agendas as questões relacionadas com as assimetrias de género a nível fiscal, onde esta questão entra. E também a falarem desta necessidade de se abordar a menstruação de outra forma. Parece que ainda há um longo caminho a percorrer para que este tema ganhe peso na esfera pública e provoque mudanças estruturais”, conclui Carla.
A pobreza menstrual é uma das ramificações da tampon tax, ou imposto do tampão, que por sua vez faz parte da pink tax, ou imposto cor-de-rosa. Relativamente à tampon tax, o nome dado ao imposto cobrado sobre produtos menstruais, as diferenças notam-se de país para país. Em Portugal são 6% – a mesma taxa de IVA aplicada a todos os bens de primeira necessidade como pão, leite, carne e legumes, medicamentos e transportes públicos. Mas na Hungria, por exemplo, a taxa aplicada a pensos higiénicos, tampões e copos menstruais é de 27%, o escalão máximo em vigor no país, tal como os 22% de IVA que as mulheres pagam em Itália ou os 19% que pagam na Alemanha. Já em Espanha, os produtos menstruais são taxados a 10%, que é a taxa intermédia aplicada também a consumo em restaurantes e hotelaria. Isto significa que em todos estes países os produtos de que uma mulher está dependente todos os meses durante cerca de 40 anos da sua vida são considerados bens de luxo. E quanto ao imposto cor-de-rosa, este refere-se à quantia extra cobrada em produtos e serviços semelhantes aos que existem para homens (e que muitas vezes só mudam de cor, para cor-de-rosa, claro, e levam um For Her estampado na embalagem). Em 2015, o Departamento do Consumidor de Nova Iorque lançou o relatório From Cradle to Cane: The
Cost of Being a Female Consumer (Do berço à bengala: o custo de ser uma mulher consumidora), um estudo que investigou os preços de produtos com base no género em categorias como brinquedos, acessórios, roupa de criança, roupa de adulto e produtos de cuidados de higiene e saúde. Entre as conclusões, a investigação revelou que, entre brinquedos semelhantes das mesmas marcas, aqueles que são direcionados para meninas custam mais 7% que os de meninos. As roupas femininas são 8% mais caras e os produtos de beleza são 13% mais caros quando orientados para mulheres. Com 4%, a categoria de produtos com menor diferença de preço foi a roupa de bebé e criança. Em nenhum dos tipos de produto analisados os produtos “masculinos” foram mais caros que os produtos “femininos”. It’s a man's world, claro está, e a mulher ainda paga caro por cá habitar.
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