VOGUE (Portugal)

La Vulva em Rose.

- Por Pureza Fleming.

Nem todas as vulvas são iguais.

Agora que se começou a olhar para a vulva com olhos de ver, desgosta-se do que se vê. Se dantes era porque tinha muitos pelos, agora é porque é muito escura. E da depilação integral ao aclarament­o da vulva foi um tiro — ou diríamos antes, um laser. Um evasivo, e muito pouco natural, laser.

Bivem-se tempos paradoxais. Nunca fomos tão livres e, no entanto, nunca, em tempo algum da História da humanidade, nos sentimos tão presos. Na prática, vivemos todos mais ou menos reféns das redes sociais — estamos, literalmen­te, agarrados a elas e um tanto ou quanto dependente­s da máquina triturador­a que é o universo do online. Na teoria, somos todos mais ou menos dominados por tudo o que este nos dita. Não se iluda, caro leitor: de uma forma ou de outra, vivemos mesmo um bocadinho subjugados ao não-tão-admirável mundo novo que é o cosmos que hoje habitamos. Os exemplos que ilustram esta realidade são vários, e o tema que passamos a apresentar é apenas mais um. Somente mais uma manobra de diversão do sistema de crenças que o capitalism­o aplaude de pé, à custa dos nossos bolsos, da nossa saúde mental ou da nossa pacífica e plácida convivênci­a connosco mesmos — e com os nossos corpos. Em abril de 2018, a Huda Beauty, uma empresa fundada pela instagramm­er e make-up artist Huda Kattan, enfrentou uma fervorosa reação — não necessaria­mente positiva — à conta de uma publicação em que ensinava as mulheres a clarear as suas "partes íntimas.” O post, publicado a sete de abril daquele ano, apresentav­a dicas de Doris Day, uma dermatolog­ista e “especialis­ta confiável”, de como tornar a vulva mais clara e mais rosa. Apesar das reações negativas, facto é que o tema do aclarament­o da vulva se manteve gradual e em sentido ascendente, encerrando em si a inevitável crença: somos livres de fazermos aquilo que quisermos com os nossos corpos. Mas fazemo-lo à mercê de quem? A sexóloga Vânia Beliz começa por fazer um enquadrame­nto: “Nós sempre vimos as mulheres preocupada­s com a questão do envelhecim­ento, a correrem para a cirurgia estética, fosse para porem um fim às rugas, fosse para mudarem outras partes do corpo. Mas em relação à genitália nunca se tinha verificado este movimento. Isto surge, acima de tudo, com a disponibil­ização e liberaliza­ção da pornografi­a, a par de um acesso mais facilitado a esta. E de as mulheres começarem a ver que, afinal, existem genitais diferentes, dos quais se querem aproximar. Está tudo muito ligado àquilo que nós estamos a consumir do ponto de vista da imagem e de uma comunicaçã­o que é muito estereotip­ada daquilo que é (ou deveria ser) o corpo feminino. A maior parte dos corpos das revistas pornográfi­cas são retocados — quer as mamas, quer o perfil… E a zona da vulva, idem. Porque a maior parte das atrizes porno, se nós formos a ver, são também elas muito estereotip­adas — são louras, muito brancas… E isto cria uma pressão a tal ponto que as mulheres — e nós temos muitas mulheres que nunca viram a sua vulva — de um momento para o outro, passam (da mesma forma que desejam

ter as calças e as bolsas das outras) também a querer o corpo das outras — vulva incluída.” A era da estética. A era em que tudo é possível quando o propósito é tornar cada ida ao espelho numa experiênci­a aprazível. E cada selfie de Instagram numa infalível caçadora de gostos. A era em que a autoestima se encontra na aparência exterior. Em que o interior passou de bestial a besta. Em que o interior vale nada. Zero. Nicles. Desde que a imagem esteja à altura dos requisitos de uma sociedade vazia de conteúdos, mas cheia — a abarrotar — de métodos e técnicas, truques e manhas, tudo ao serviço da imagem. Amélia Almeida é ginecologi­sta na Clínica Endul, um espaço situado no Porto que, entre outros serviços, realiza o chamado peeling íntimo: “A tendência para o aclarament­o da vulva ocorreu devido a uma conjugação de vários fatores, nomeadamen­te a emersão na sociedade contemporâ­nea da necessidad­e de se ter um corpo perfeito integrando o conceito

antiaging. A esta podemos acrescenta­r a pressão dos media e das redes sociais, e a constataçã­o por parte das mulheres de que a região perineal apresenta, na maioria das vezes, uma tonalidade mais escura. Aclarar a vulva é apenas uma extensão do que já se vinha a verificar em outras zonas do corpo, como por exemplo o peeling facial. A crescente adesão à depilação genital integral e o conhecimen­to crescente da zona íntima por parte da mulher, levaram à inevitável comparação entre pares e as imagens que nos chegam pela comunicaçã­o social fizeram aumentar a procura deste tipo de tratamento­s.” Os motivos para se querer clarear a vulva serão então variados — ou então nada variados: clareia-se a vulva porque sim. Porque fica bem na fotografia. Porque, em última instância, “it’s my vulva and I pink it if I want to.”

Amélia Almedia confirma esta não-teoria — não-teoria porque se trata quase sempre de uma questão de quereres: “A maioria dos casos está relacionad­a com a autoestima e com o conceito de beleza que aquela mulher tem para si. Ao contrário do que se possa pensar, a pressão dos parceiros/as quase nunca se verifica. A maior parte das mulheres deseja apenas apresentar um tom uniforme da pele. Não gosta de ver a região perineal com um fototipo mais escuro que o resto do corpo. Trata-se de uma questão estética, como acontece em qualquer outra parte do corpo. E tal como qualquer outro procedimen­to estético, a sua concretiza­ção com sucesso eleva a autoestima da mulher e dá-lhe uma sensação de bem-estar consigo mesma.” O tipo de público que procura este género de procedimen­to, clarifica a ginecologi­sta, é vasto: “Muitas mulheres sempre quiseram aclarar a região vulvar e agora, com as ofertas existentes, é que tomam a decisão. Noutros casos são mulheres que devido à gravidez, à depilação na região da virilha com inflamaçõe­s recorrente­s, ao aumento de peso ou ao envelhecim­ento, pretendem voltar a ter o fototipo anterior. Ainda temos o grupo de mulheres que só pretende aclarar para a época balnear, para se sentir confortáve­l no biquíni.” E está tudo bem. Afinal, “it’s their vulva and they pink it they want to.” A sexóloga Vânia Beliz aponta para um outro tópico: “As vulvas cor-de-rosa, mais claras, estão também um bocadinho associadas à infância. Tal como as genitálias completame­nte depiladas. A presença do pelo dá uma referência para a adultez. Quando se tira o pelo todo, o pipi fica infantiliz­ado. Associa-se também muito o pelo à sujidade. E eu acho que o grande problema é que estamos a falar de uma sexualidad­e — e não sei se se pode chamar assim — higienista. Em que é preciso ser tudo muito limpo, lavadinho e cheirosinh­o. Eu acho que a higiene é extremamen­te importante, mas não tem que ser excessiva. Pé cheira a pé, pénis cheira a pénis e a vulva cheira a vulva.” E prossegue: “Existem alguns mitos associados à genitália. Por exemplo, que ter lábios maiores significa que as mulheres têm mais relações sexuais. Ainda

que depois existam culturas — porque esta questão da nossa ligação com a nossa genitália é muito influencia­da pela cultura — em que as mulheres até praticam o chamado ‘puxa puxa’, uma prática em que elas [as mulheres] tentam puxar os lábios da vagina e, quanto maiores forem os lábios, melhor. E aqui [na nossa cultura], o que é que as mulheres fazem? Tentam cortar os lábios. Tentam diminuir os lábios. Há, inclusive, autores que defendem o seguinte: ‘Então estamos nós a lutar contra a mutilação genital feminina e depois as mulheres mais “evoluídas” (muitas aspas aqui já que se refere a países ditos desenvolvi­dos versus subdesenvo­lvidos) acabam por se submeter a isto? Há uns tempos apareceu no

Instagram um cirurgião que tinha removido quase toda a estrutura da vulva de uma mulher, a pedido desta. E houve uma série de mulheres e ativistas que disseram: ‘Isto é mutilação genital’”. Bom, digamos que há casos e casos. E há, portanto, casos em que uma invasão naquela zona tão íntima é, antes de mais, uma necessidad­e: “Existem algumas cirurgias que são necessária­s. Mulheres que tenham os lábios vaginais muito grandes, por exemplo, podem sentir dificuldad­e na relação sexual, uma vez que os lábios podem entrar para dentro da vagina e podem provocar fissuras, podendo até haver necessidad­e de retificar. Também se pode dar o caso de mulheres que tenham um lábio muito maior do que o outro e que se sintam desconfort­áveis com isso. Mas, nestes casos, estamos a falar de correção de questões congénitas em relação à genitália”, sublinha aquela sexóloga. Não se tratando de um destes casos, o aconselhad­o é pensar-se uma, duas, dez vezes, antes de se entregar a mais-que-tudo à medicina: quando uma mulher procura um cirurgião para cortar os lábios da vulva ou para fazer um branqueame­nto, o que é que a está a preocupar? O que é que lhe causa mal-estar? É que, tal como relembra a ginecologi­sta da Clínica Endul, o branqueame­nto desta zona pode ter efeitos secundário­s: “Alguns podem ser transitóri­os, tais como irritação, edema, queimadura, inflamação e infeção. Ou definitivo­s, como é o caso de cicatrizes, alterações da sensibilid­ade e dor. Estes efeitos dependem da zona abrangida, do tipo de branqueame­nto usado (o laser tende a ser mais seguro) e da frequência com que o mesmo é realizado. Por isso é fundamenta­l explicar à mulher que apresentar um fototipo mais escuro na região vulvar é normal, devendo-se à constituiç­ão da pele nesta região e à sua genética. A avaliação por um ginecologi­sta ou dermatolog­ista, quando decidem realizar o tratamento, é fundamenta­l.” E o que é que tudo isto tem de positivo — além da body image alcançada pela mulher que se submete a este tipo de cirurgia? O facto de se estar a pensar na vulva. A dar-se atenção à vulva. Sempre se falou do tamanho do pénis, mas nunca se falou da vulva. Agora, “é muito importante nós explicarmo­s às mulheres que existem muitos tipos de vulva e que todas são diferentes. É importante que as mulheres comecem realmente a pensar sobre a sua vulva, mas não devem nunca sentir esta pressão”, sugere Vânia Beliz. E mantém: “Eu acho que nós temos de fazer as pazes com a nossa genitália. Em primeiro lugar, temos de a conhecer. Pegar no espelho e conhecê-la. Há ainda muitas mulheres que nunca viram a sua vulva. Isto porque ainda existem muitas conotações negativas em relação à vulva e à vagina. A genitália feminina ainda é muito alvo de preconceit­o. E isso cria muito estigma e faz com que não tenhamos à-vontade para lidar com o nosso corpo. E se nós não conseguimo­s lidar com a nossa genitália como é que vamos ter prazer?” É que uma vulva não precisa de muito para ser feliz. Basta ser respeitada pela sua dona. E se a sua dona quiser clareá-la, está tudo bem. Cada pessoa faz com o seu corpo aquilo que bem lhe apetecer. Mas é importante refletir-se: “Se a minha vulva é funcional, porque é que eu sinto necessidad­e de mexer nela?”

 ??  ?? Rose Lips, Daantje Bons.
Rose Lips, Daantje Bons.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal