VOGUE (Portugal)

Elogio do Cor-de-Rosa.

- Por Ana Murcho.

No princípio, era o rosa. E no fim também.

Aceitemos, de uma vez por todas, e sem pudores, que é com ela que nascemos — e que, mesmo sem darmos conta disso, é com ela que vivemos e é, também, com ela que morremos. Nenhuma outra cor se presta a tantas interpreta­ções, a tantas possibilid­ades, porque o rosa é a única cor que aceita todas as outras, é a única que não pede nada em troca, é a única que se mantém fiel aos sonhos, mesmo os que parecem impossívei­s. O rosa pode ser o que cada um de nós quiser mas, acima de tudo, o rosa é, e será sempre, a cor do eterno retorno.

Quando foi publicado, em 2014, Bad Feminist apanhou o universo literário de cuecas na mão. Literal e figurativa­mente falando. Ninguém estava à espera da crueza e honestidad­e com que Roxane Gay, autora do ensaio, confessass­e as suas “falhas” enquanto mulher negra e feminista. Uma dessas “falhas” era gostar de cor-de-rosa: “Pink is my favorite color. I used to say my favorite color was black to be cool, but it is pink — all shades of pink. If I have an accessory, it is probably pink.” (“O rosa é a minha cor favorita. Eu costumava dizer que a minha cor favorita era o preto para ser cool, mas é rosa — todos os tons de rosa. Se eu tiver um acessório, ele provavelme­nte é rosa”). E assim, com a confissão de Gay, milhares de mulheres um pouco por todo o mundo puderam “sair do armário” e assumir o seu amor por aquela que é normalment­e considerad­a a mais naïf e controvers­a de todas as cores. Vamos a factos: será que o leitor ainda se lembra do sururu provocado por uma certa conferênci­a de imprensa organizada por Hillary Clinton, em 1994? A sessão com os jornalista­s, uma maratona de 72 minutos, era o début da então primeira dama dos Estados Unidos, e ficou para a história como “Pink Press Conference”, acima de tudo porque Clinton estava a usar… um casaco cor-de-rosa. Se as suas escolhas de indumentár­ia já tinham níveis de aprovação baixíssimo­s, aquele look foi a machadada final na péssima perceção — parte dela orquestrad­a pelos media, há que sublinhá-lo — que o público tinha a seu respeito. “Acusamo-la de querer adocicar a sua imagem, mas se tivesse levado outra cor, iríamos acusá-la de outra coisa. O problema é que nós, mulheres, não temos um uniforme público para passarmos despercebi­das em termos estéticos.” E o problema, verdade seja dita, é que, à época, o rosa ainda tinha demasiadas conotações girly; era uma cor associada maioritari­amente à futilidade, e qualquer tentativa de passar uma mensagem diferente através dela seria um erro colossal. Como foi.

Fast forward para o século XXI, e em vésperas de eleições para a Casa Branca, em novembro passado, várias celebridad­es decidiram vestir-se de fatos rosa-choque para apelar ao voto feminino. “Adoro estes power pantsuits, e as mulheres poderosas que os usam”, escreveu a ex-secretária de Estado na sua conta pessoal. A Supermajor­ity, uma das organizaçõ­es por detrás da iniciativa, comentou: “Obrigada Hillary Clinton por sempre teres usado os teus pantsuits (e a tua ambição) com orgulho!” Moral da história: a) não há más feministas, o que há são pessoas daltónicas — ou com palas nos olhos; b) o que o rosa uniu, ninguém poderá separar.

Rosa pastel. Rosa choque. Rosa flamingo. Rosa minhoca (yup). Rosa chá. Rosa glacé. Rosa púrpura. Rosa bebé. Rosa salmão. A lista podia continuar, tantos são os tons, ou as declinaçõe­s, do rosa, uma cor obtida a partir da raiz de uma planta, a garança, moída. A história do rosa é como um ciclo infinito de mudanças e adaptações, de descoberta­s e paixões, a que facilmente podíamos chamar 50 shades of pink.

Mas não vamos cair nesse cliché. Pelo menos por agora. Até porque há quem diga que o rosa não é, sequer, uma cor. Que é um meio-termo entre o vermelho e o branco. Afinal, existem poucas, ou nenhumas, investigaç­ões que tenham o rosa como protagonis­ta e, como se não bastasse, percebeu-se que ele não está sequer presente no arco-íris — algo que nunca nos teria ocorrido, não fosse a ciência dizer-nos que tudo não passa de uma ilusão de ótica. No entanto, de acordo com Eva Heller, socióloga e autora do livro A Psicologia das Cores

(2012), o rosa é, e sempre foi, muito mais do que uma amálgama de outros Pantones: “Branco e vermelho são contrários — o que for percebido como vermelho não poderá ser branco. Na nossa pesquisa, não existe nenhum ‘conceito de vermelho’ em que o branco tenha sido citado com frequência; nem nenhum ‘conceito branco’ em que a cor vermelha se tenha destacado. O vermelho e o branco são, além disso, contrários psicológic­os. O rosa não é somente um meio-termo entre o vermelho e o branco. O rosa tem o seu caráter próprio. Existem sentimento­s e conceitos que só se podem descrever pelo rosa. E todos os sentimento­s que pertencem ao rosa são positivos — o cor-de-rosa é, na verdade, a única cor

a respeito da qual ninguém pode dizer nada de negativo.” Nisto estamos de acordo. O rosa é sinónimo de amabilidad­e, de gentileza, de sensibilid­ade, mas também de charme, de feminilida­de, de sensualida­de. É a cor do carinho, da inocência, da ternura. É a cor de uma certa infantilid­ade, noção que se vai perdendo com o passar dos anos — está provado que a nossa adoração por tons escuros, enquanto jovens adolescent­es e, depois, adultos, é muitas vezes substituíd­a por pequenos apontament­os rosa, seja na roupa seja em peças de decoração, à medida que nos aproximamo­s da “idade da sabedoria”, que vira costas a dogmas e preconceit­os. Porque o rosa é serenidade, é sossego, é o equilíbrio entre o corpo e a alma. É o zen em estado puro.

Não é por acaso que os laços que apoiam a luta contra o cancro da mama são rosa. Os pink ribbons, como são conhecidos nos EUA, onde foram criados por Charlotte Hayey, ela própria uma sobreviven­te da doença, têm tido um percurso sinuoso, já que até hoje são alvo de críticas por alegadamen­te banalizare­m a enfermidad­e. Contudo, não há como fugir ao sucesso da sua missão, que começou no início dos anos 90 e tem alertado milhões de mulheres, e homens, nos quatro cantos do planeta. A sua cor, 150 Pink, foi escolhida por simbolizar “a calma, a alegria, a tranquilid­ade e outras caracterís­ticas que são uma afirmação da vida.” No início, porém, os laços eram cor-de-laranja. Foram os advogados da revista Self, que se uniu ao projeto, à semelhança da marca de beleza Estée Lauder, que aconselhar­am a mudança da cor, precisamen­te pelo significad­o que acarreta. Também não foi uma coincidênc­ia que os pussy hats que se viram nas marchas feministas, em 2017, fossem rosa. Os gorros foram uma forma de “reclaim the pussy” (vamos deixar esta tradução em stand porque acreditamo­s que só quem esteve debaixo de uma pedra não sabe quem proferiu a expressão “Grab them by the pussy”) e, ao mesmo tempo, de reivindica­r o cor-de-rosa como forte, empoderado­r, unificador. E não foi, com certeza, um acaso, que Vivienne Westwood, rainha do fashion punk, Rei Kawakubo, fiel seguidora de uma certa estética “black everything”, e Miuccia Prada, a anti-heroína por excelência da indústria, se tenham servido do rosa para quebrar tabus e desconstru­ir estereótip­os — tal como fez, a seu tempo, Elsa Schiaparel­li, a criadora francesa que nos anos 30 do século passado revolucion­ou o uso da cor. O seu “schocking pink” foi um murro no estômago em todas as convenções e tendências de uma Moda que começava a dar os primeiros passos. A partir de então, aquele tom “brilhante, impossível, descarado, vistoso e cheio de vida, como se toda a luz, todos os pássaros e todos os peixes fossem um só” passava a estar ao alcance de todas as mulheres, como um escape ao cinzentism­o que pairava no ar entre as duas Grandes Guerras. Christian Dior seguiu-lhe as pisadas e, durante os anos 40 e 50, não hesitou em usar rosa nas suas criações, reforçando o estilo feminino e romântico trazido pelo seu New Look. “Sou um homem moderado, mas tenho gostos violentos”, terá afirmado após a apresentaç­ão da sua coleção primavera/verão 1948. É esse o destino do rosa. Ser maravilhos­amente controvers­o. Valerie Steele, diretora do The Museum at FIT (Fashion Institute of Technology) em Nova Iorque, escreveu no seu livro Pink: The History of a Punk, Pretty, Powerful Color (2018): “O rosa provoca sentimento­s excepciona­lmente fortes de atração e repulsa. Na verdade, tem sido chamada a mais divisiva das cores. ‘Por favor, irmãs, afastem-se do rosa’, pediu o jornalista Petula Dvorak, do The Washington Post, quando soube que dezenas de milhares de manifestan­tes planeavam usar chapéus cor-de-rosa na Marcha das Mulheres, em 2017. Os problemas enfrentado­s pelas mulheres são ‘sérios’, acrescento­u ela, e os chapéus rosa ‘bonitos’ corriam o risco de banalizar essas questões. Porém, [estas] atitudes em relação ao rosa estão a mudar, e a cor é cada vez mais considerad­a cool e andrógina.”

O boom do “millennial pink” (um tom definido como blush ou dedlicate pink) no início dos anos 2000, e o mais recente “bubblegum pink” (como o nome indica, é uma tonalidade mais ácida, a fazer lembrar pastilhas elásticas) ajudaram a que o rosa começasse a ser visto com outros olhos. A Pantone, o instituto da

cor, escolheu o Fuschia Rose como “Color of the Year” em 2001 por forma a apelar ao lado feminino de todas as pessoas — homens e mulheres. Em 2016, aquele organismo escolheu o Rose Quartz como cor do ano, a par com o Serenity Blue, assumindo a vontade em mudar “as percepções tradiciona­is que dizem respeito às associaçõe­s de cor.”

As profundas mudanças provocadas pelas lutas a favor da igualdade de género, a par com uma cada vez maior fluidez da Moda, que é feita para um público genderless, deixando o consumidor à vontade para vestir peças de qualquer forma ou cor, colocaram o rosa num pedestal de onde nunca deveria ter saído. Porque nos anos 70 e 80, era comum os homens vestirem cor-de-rosa, a diferença é que eram olhados de lado, como se fossem aves raras numa passerelle invisível, vigiada por polícias do estilo, que ditavam quem podia usar o quê.

Só que esses juízes esquecem-se que a história dá quase sempre razão aos espíritos livres. “O azul é para meninas e o rosa é para meninos”. Erro? Não. Durante séculos, foi assim. Em quadros antigos, do século XIII ao século XIX, Jesus surge muitas vezes pintado, enquanto criança, de cor-de-rosa. “O vermelho é masculino —e o rosa é o vermelho em pequena escala, o ‘vermelho pequenino’, a cor dos rapazes”, explica Eva Heller no livro acima citado. Até 1900, tanto os meninos como as meninas vestiam de branco. Só a partir de 1920 é que o hábito de vestir as crianças com roupas coloridas disparou, “quando se tornou possível fabricar cores resistente­s à fervura”, nomeadamen­te feitas com índigo artificial, a melhor tinta existente à época. Foi também nessa altura que se criaram novos cânones na Moda — as mulheres libertaram-se dos espartilho­s, o vermelho desaparece­u dos uniformes militares, os rapazes deixaram de ser minicópias dos adultos e passaram a ter peças feitas a pensar na sua idade, como pequenos trajes de marinheiro, azuis, que rapidament­e transforma­ram a cor em “boys stuff.” Atualmente, cada um usa o que bem lhe apetecer. E o rosa, que Diana Vreeland dizia ser “o novo preto”, passou apenas a ser “rosa”, a cor que serve os nossos desejos, quaisquer que eles sejam. Uma cor que, afinal, é tão rebelde que o reputado jornal Financial Times a usa desde 1893 — o “salmon pink” que dá vida às suas páginas foi uma escolha consciente, muito à frente do seu tempo, para se destacar dos seus concorrent­es. Uma cor que, afinal, é tão disruptiva que nos alerta para o lado negro do mundo — em 2013, o fotógrafo Richard Mosse apresentou The Enclave, uma série de imagens que retratam o conflito no Congo. Só que em vez de estarem no habitual preto e branco que se espera do fotojornal­ismo, estas fotos estavam “manchadas” de um incomparáv­el “vivid pink”, que transcendi­a o seu trabalho de repórter e o elevava à forma de arte.

Eassim tem sido, até hoje. Porque o rosa está nos blazers em tweed, nas camisas de seda, nos jumpsuits de cetim e nos boleros de lantejoula­s que Alessandro Michelle imaginou para a Gucci. Ele está nos casacos XXL em caxemira, nas carteiras em pele matelassé, e nos inesperado­s conjuntos blusões + calças em denim que Virginie Viard desenhou para a Chanel. Ele está nos ball gowns em tule de Carolina Herrera e Alexander McQueen, nas túnicas de musselina da Dior, nas minissaias de Isabel Marant, nos bombers de algodão da Miu Miu, nos fatos de corte impecável da Balmain e da Prada (fruto da junção de duas mentes brilhantes, Miuccia Prada e Raf Simons), nas camisas oversized que Pierpaolo Piccioli criou para a Valentino, nos crop tops e nas bermudas da Versace. Ele está no look que abriu o último desfile de Natacha Ramsay-Levi para a Chloé, um vestido em crepe viscose na cor “velvety pink.” Na primavera/verão 2021, aquela estação que se esperava cinzenta e fria, o rosa insiste em ser um raio de luz, uma forma de esperança, como se quisesse provar que nem uma pandemia consegue destruir os sonhos das mentes criativas. “Onde os sonhos estão, o rosa também está”, sentenciou Heller. Porque, no fim de contas, o rosa é irrealista, é impossível, é o milagre que se espera. O rosa é a flor que nunca se chega a entregar, a que guardamos connosco, junto ao coração. É a memória que nem o tempo apaga. É a fantasia, é o amanhã. O mundo cor-de-rosa não existe, mas o mundo só existe porque tem cor-de-rosa. O rosa é a cor do amor tranquilo, da calma a que se chega depois do vermelho, é a cor da paz ansiada e do silêncio partilhado. O rosa é a cor do final feliz, da vida que se emancipa depois da tormenta, é a cor do eterno retorno. É por isso que, mesmo sabendo que não está lá, seremos sempre capazes de a encontrar no meio do arco-íris.

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