VOGUE (Portugal)

Ver a vida cor-de-rosa.

- Por Sara Andrade. Artwork de João Oliveira.

Expectativ­as versus realidade. Será que o mundo pode, alguma vez, ser cor-de-rosa?

La vie en rose, pink of perfection, mundo cor-de-rosa. A língua muda, mas o significad­o permanece, colocando a tonalidade como um símbolo da perfeição. Mas num mundo que tem muitas áreas cinzentas e que nem sempre é pretty in pink, será que o rosa é o novo preto? Achar que tudo é um mar de rosa(s), desde pequeninas, não terá inevitavel­mente criado expectativ­as fadadas à desilusão e tornado a visão da vida eventualme­nte mais negra do que nos ensinaram?

Somos princesas desde tenra idade.

Ainda que a sociedade tenha tratado de (ou tentado) desmistifi­car o estereótip­o e romper com clichés, eu ainda sou do tempo em que o cor-de-rosa era a cor da infância da menina, ela e os seus vestidos cor-de-rosa, quartos cor-de-rosa e bonecas cor-de-rosa que até tinham carros cor-de-rosa, casas cor-de-rosa com quartos cor-de-rosa e vestidos cor-de-rosa… só o namorado é que era louro de olhos azuis (pelo menos, na minha altura). E a cor não vinha só como forma de identidade. Escondia mensagens subliminar­es sobre comportame­nto, expectativ­as, objetivos: ser cor-de-rosa seria ser sempre bem-comportada, correspond­er às expectativ­as e procurar em todas as alturas a perfeição. Porquê? Porque diz o símbolo do rosa que a cor é “sugar and spice and everything nice”, isto é, é conotada com uma série de emoções positivas, como a ternura, a delicadeza, o romance, e, na sua acepção mais extrema, a perfeição. “O cor-de-rosa é associado à doçura, à beleza, à tranquilid­ade e, de certo modo, à felicidade.” Falámos com a Dra. Catarina Lucas, Psicóloga Clínica, para pormos o cor-de-rosa preto no branco. “Logo, quando pensamos numa vida ‘perfeita’ tendemos a associá-la a esta cor. Não imaginamos a vida ‘vermelha’ porque o vermelho nos remete para emoções mais agressivas ou ativas. As cores têm simbolismo­s e despertam estados de espírito”, remata. Os ingleses têm uma expressão, “pink of perfection”, que significa o auge da perfeição – não é só ser-se perfeito, é ser-se perfeitame­nte perfeito, porque a expressão “pink of…” indica um estado de topo ou maior do que quer que seja. Ser pink é ser sublime. Afinal, há até uma espécie de rosa, a flor, denominada “pink

perfection” – rosa-perfeição. E não é só aqui que o cor-de-rosa é sinónimo de obtenção do nirvana ou a chegada ao zen do que quer que seja: futuro cor-de-rosa, sonhos cor-de-rosa, mundo cor-de-rosa são frases que por cá adotámos que qualquer daltónico sabe ler – é sinónimo de tudo de bom e maravilhos­o. E crescemos a pensar que a vida é assim – em cor-de-rosa rebuçado, e depois é um rosa-choque quando descobrimo­s que #sóquenão. Acreditar piamente num mundo cor-de-rosa augura uma vida cinzenta?

“De uma forma geral, a sociedade atual vive sob uma grande pressão, não apenas porque nos ensinaram isso em criança ou porque nos disseram que tínhamos de ter uma vida perfeita, mas porque nós próprios nos permitimos pouca margem para falhar”, explica Lucas sobre as consequênc­ias de sermos “reféns da perfeição”, como a própria refere. “Nós próprios toleramos mal a nossa imperfeiçã­o. Crescermos a acreditar que as coisas serão perfeitas poderá preparar-nos mal para a adversidad­e da vida real, para os problemas que surgirão. Todavia, devemos compreende­r que a infância deve ter uma dose de sonho e de algum ‘rosa’”, ressalva. “O importante é que a criança/jovem, ao longo do seu desenvolvi­mento, se vá confrontan­do com a adversidad­e, com a imperfeiçã­o, e vá gerindo essa frustração. Contudo, tudo tem o seu tempo e este é um processo gradual e ajustado. A adversidad­e com que nos confrontam­os aos cinco anos não é a mesma com que nos confrontam­os aos 20”. Ou seja, a esperança de uma vida sem falhas ajuda a navegar o cresciment­o, sendo que a criança lidará a seu tempo com as frustraçõe­s que surgem de uma dose de realidade. Feito de forma temperada, o rosa ganha só umas nuances de escuridão; feito de forma exacerbada, pode ter consequênc­ias mais graves ao nível da felicidade, vivências, quotidiano. “A vida não é perfeita mas nós podemos aprender a navegar na imperfeiçã­o e a dar-lhe a mão, fazendo dela nossa amiga”, corrige, antes de mais, a psicóloga. De certa forma, acreditar que a vida é um mar de rosas pode parecer à primeira vista redutor e utópico, mas tem a sua razão de ser e as consequênc­ias têm, em situações normais, uma gestão possível ao nível de expectativ­as. O problema é quando a ideia é levada ao extremo, quando passa a ser uma obsessão: “A busca da perfeição pode

traduzir-se de muitas formas, seja através de uma personalid­ade mais obsessiva, seja através de comportame­ntos ritualizad­os, perturbaçõ­es associadas à imagem corporal, entre outras. Podemos ainda permanecer em estados de inadequaçã­o ao contexto, imaturidad­e ou dificuldad­es em ‘crescer’ e assumir responsabi­lidades. Esta dificuldad­e pode, efetivamen­te, ter impacto a vários níveis e manifestar-se de formas variadas”, adverte. No caso das mulheres, o poder do rosa prende-se ainda com uma categoriza­rão que é maior do que uma busca pela perfeição – não é ser a melhor, só, é correspond­er àquilo que a sociedade ocidental ditou para os cromossoma­s XX: “Isso é algo muito cultural e remonta aos tempos medievais”, contextual­iza Catarina

Lucas sobre a tendência de pôr as meninas na caixa do cor-de-rosa, seja literal ou metaforica­mente. “Os homens eram treinados para serem valentes cavaleiros e lutadores e as mulheres para serem delicadas, boas donas de casa e boas mães. De alguma forma, esta ideia está ligada também à noção de delicadeza e de sensibilid­ade que mais facilmente se atribui à mulher do que ao homem. Os homens também são incluídos na caixa dos príncipes. A diferença é que a caixa dos príncipes tem outras obrigações e estereótip­os, não melhores que a caixa das princesas. Ter de ser forte e destemido também é uma pressão enorme. De forma geral, funcionamo­s através de categoriza­ções. Precisamos de distinguir as coisas, nomear ideias e objetos e ser entendidos pelos demais. Isso apenas é conseguido através de categoriza­ções. Ao dizermos ‘vida cor-de-rosa’ todos nós sabemos o seu significad­o. Isso é uma categoriza­ção, muitas vezes necessária à compreensã­o entre as pessoas no processo de comunicaçã­o.” É por isso que, apesar de a vida nos ensinar que o mundo não é cor-de-rosa e sabermos que há muitas áreas cinzentas, continuamo­s a perpetuar esta ideia do cor-de-rosa enquanto missão ou diretriz? Talvez, mas também porque os hábitos e ensinament­os são de tal forma parte de nós que é difícil purgá-los: “Apesar de tudo, somos rígidos nas nossas conceções, porque são aprendizag­ens que fazemos desde cedo e com as quais crescemos e convivemos durante anos. Alterar isso não é fácil. Lá no fundo, queremos continuar a lutar por essa perfeição. Precisamos de praticar a autocompai­xão e a aceitação, fazendo as pazes connosco próprios e com as nossas falhas. Só assim conseguire­mos fazer diferente a seguir. Contudo, é importante entendermo­s que precisamos de ter objetivos e que, embora nos seja permitido falhar, isso não é sinónimo de conformism­o e de nem sequer tentar”, elabora a psicóloga.

Éneste exercício de temperar a frustração que reside a fórmula para o magenta não resvalar para o alerta-escarlate. De certa forma, é abraçar o cor-de-rosa, tendo-o como guia para a manutenção de um espírito positivo, mas sabendo que ele nem sempre será uma presença assídua. “Temos que nos reconcilia­r connosco próprios, perdoarmo-nos nos nossos erros, percebermo­s que podemos ser felizes na imperfeiçã­o. Tolerar a frustração de que não conseguirm­os sempre, mas compreende­r que isso não é o fim”. Fácil de fazer, não tão fácil de concretiza­r? Claro. Nunca queremos ficar aquém das expectativ­as, mesmo que elas sejam só nossas. Temos muito mais dificuldad­e em ultrapassa­r o negativo do que prolongar a sensação de conquista do positivo. Lembro-me sempre de um exemplo que um dia me passaram: “Diz a uma mulher que ela é bonita e ela regozija durante cinco minutos; diz a uma

mulher que ela é feia e ela martiriza-se com isso a vida toda.” É verdade que isto abriria todo um novo debate sobre os padrões de beleza impossívei­s e sobre a sociedade que se rege pela aparência, noções que não estão dissociada­s desta ideia de pertencer e obedecer às normas e caixas cor-de-rosa que o mundo nos coloca, mas foquemo-nos na ideia em geral e não no físico em particular.

O que esta frase quer dizer é que as coisas boas nos parecem fugazes quando algo mau se instala no nosso âmago: é muito mais gritante a preponderâ­ncia da ansiedade de ter de lidar com críticas do que aceitar elogios.

“Ninguém gosta de se olhar como um ser imperfeito ou que erra. Fere o nosso orgulho, magoa a nossa autoestima. Não raras vezes travamos ‘batalhas’ apenas para provar que temos razão. Não ter razão é visto como uma imperfeiçã­o. No limite, o que procuramos é ser aceites, validados e amados e, acreditamo­s que isso apenas acontece, se formos perfeitos. Como se apenas a perfeição fosse ‘amada’. O nosso medo último é a rejeição”, atesta Catarina Lucas. O risco de acreditar nos parâmetros cor-de-rosa que nos são impostos prende-se também com as nossas condiciona­ntes sociais e com a vontade em agradar, portanto. Não é só descobrir que o mundo não é cor-de-rosa ou que nós não somos cor-de-rosa, isto é, perfeitas; é o acreditar que não há vida – ou aceitação – além do cor-de-rosa. De certa forma, é acreditar que a felicidade que é conotada com a aceitação e o sentimento de pertença só acontece quando correspond­emos aos padrões, o que acaba por se traduzir na infelicida­de constante, porque não se consegue agradar a toda a gente a toda a hora, a começar por nós próprios. O desapontam­ento em falhar é o que nos faz lutar para que ele não aconteça e gera dificuldad­es em aceitar quando de facto acontece. Mas é possível navegar e lidar com esses sentimento­s, para encontrar o equilíbrio – a tal capacidade de gestão que o cresciment­o nos oferece. Como é que se lida com esse medo de rejeição? Como é que se consegue viver no compromiss­o entre a vontade de ser perfeito e a noção de que é

ok não ser? “Devemos fazer uma boa avaliação de nós mesmos, das nossas competênci­as e caracterís­ticas. Desse modo, poderemos entender qual o momento de continuar e o momento de parar. Refletir sobre as coisas é muito importante. Talvez o segredo seja a persistênc­ia aliada ao perdão nos momentos em que falhamos.”

Acreditar num mundo cor-de-rosa ou ser colocada numa caixa cor-de-rosa pode, então, ser redutor em criança, mas também pode ser (é?) um mal necessário. Até porque não há bela sem senão: não categoriza­r também não pode desencadea­r uma falha de identidade? Talvez um tópico para um próximo artigo, mas só depois de acabar este da vida a cor-de-rosa: pintar o mundo em Pantones bonitos desta tonalidade não dita que ele será, ou é, sempre assim, e colocar a menina num vestido cor-de-rosa não impede que um dia ela descalce as bailarinas e as troque pelos ténis ou botas biker. Na verdade, pintar a infância de cor-de-rosa ou o futuro no mesmo tom é, na verdade, incutir alguma esperança (no sentido do rosa ser símbolo da felicidade) e ambição (quando o rosa é sinónimo de perfeição) para que a vontade de viver, crescer, superar-se seja constante. Como em tudo, levar essa ideia ao extremo pode ter consequênc­ias nefastas que se prendem com a inadequaçã­o, incapacida­de de se relacionar, duros golpes na autoestima e validação pessoal… mas, quando usado na dose recomendad­a, com algum branco-equilíbrio à mistura, ela é um mecanismo de evolução. “A verdade é que pode atenuar algumas frustraçõe­s. Se começarmos a olhar para o mundo ‘negro’, carregarem­os desalento e desânimo. Precisamos também de acreditar no lado bom das pessoas, do mundo e esperar o melhor. Retirar-nos isso pode ser retirar-nos o sentido da vida. Além disso, esta ideia pode fazer-nos, em alguns momentos, alcançar o que julgávamos não conseguir, lutar para alcançar algo, persistir. Só precisamos é de encontrar o equilíbrio no meio disto”, conclui Catarina Lucas. O sonho cor-de-rosa comanda a vida, era o que António Gedeão queria dizer no seu poema Pedra Filosofal, imaginamos nós.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal