Ver a vida cor-de-rosa.
Expectativas versus realidade. Será que o mundo pode, alguma vez, ser cor-de-rosa?
La vie en rose, pink of perfection, mundo cor-de-rosa. A língua muda, mas o significado permanece, colocando a tonalidade como um símbolo da perfeição. Mas num mundo que tem muitas áreas cinzentas e que nem sempre é pretty in pink, será que o rosa é o novo preto? Achar que tudo é um mar de rosa(s), desde pequeninas, não terá inevitavelmente criado expectativas fadadas à desilusão e tornado a visão da vida eventualmente mais negra do que nos ensinaram?
Somos princesas desde tenra idade.
Ainda que a sociedade tenha tratado de (ou tentado) desmistificar o estereótipo e romper com clichés, eu ainda sou do tempo em que o cor-de-rosa era a cor da infância da menina, ela e os seus vestidos cor-de-rosa, quartos cor-de-rosa e bonecas cor-de-rosa que até tinham carros cor-de-rosa, casas cor-de-rosa com quartos cor-de-rosa e vestidos cor-de-rosa… só o namorado é que era louro de olhos azuis (pelo menos, na minha altura). E a cor não vinha só como forma de identidade. Escondia mensagens subliminares sobre comportamento, expectativas, objetivos: ser cor-de-rosa seria ser sempre bem-comportada, corresponder às expectativas e procurar em todas as alturas a perfeição. Porquê? Porque diz o símbolo do rosa que a cor é “sugar and spice and everything nice”, isto é, é conotada com uma série de emoções positivas, como a ternura, a delicadeza, o romance, e, na sua acepção mais extrema, a perfeição. “O cor-de-rosa é associado à doçura, à beleza, à tranquilidade e, de certo modo, à felicidade.” Falámos com a Dra. Catarina Lucas, Psicóloga Clínica, para pormos o cor-de-rosa preto no branco. “Logo, quando pensamos numa vida ‘perfeita’ tendemos a associá-la a esta cor. Não imaginamos a vida ‘vermelha’ porque o vermelho nos remete para emoções mais agressivas ou ativas. As cores têm simbolismos e despertam estados de espírito”, remata. Os ingleses têm uma expressão, “pink of perfection”, que significa o auge da perfeição – não é só ser-se perfeito, é ser-se perfeitamente perfeito, porque a expressão “pink of…” indica um estado de topo ou maior do que quer que seja. Ser pink é ser sublime. Afinal, há até uma espécie de rosa, a flor, denominada “pink
perfection” – rosa-perfeição. E não é só aqui que o cor-de-rosa é sinónimo de obtenção do nirvana ou a chegada ao zen do que quer que seja: futuro cor-de-rosa, sonhos cor-de-rosa, mundo cor-de-rosa são frases que por cá adotámos que qualquer daltónico sabe ler – é sinónimo de tudo de bom e maravilhoso. E crescemos a pensar que a vida é assim – em cor-de-rosa rebuçado, e depois é um rosa-choque quando descobrimos que #sóquenão. Acreditar piamente num mundo cor-de-rosa augura uma vida cinzenta?
“De uma forma geral, a sociedade atual vive sob uma grande pressão, não apenas porque nos ensinaram isso em criança ou porque nos disseram que tínhamos de ter uma vida perfeita, mas porque nós próprios nos permitimos pouca margem para falhar”, explica Lucas sobre as consequências de sermos “reféns da perfeição”, como a própria refere. “Nós próprios toleramos mal a nossa imperfeição. Crescermos a acreditar que as coisas serão perfeitas poderá preparar-nos mal para a adversidade da vida real, para os problemas que surgirão. Todavia, devemos compreender que a infância deve ter uma dose de sonho e de algum ‘rosa’”, ressalva. “O importante é que a criança/jovem, ao longo do seu desenvolvimento, se vá confrontando com a adversidade, com a imperfeição, e vá gerindo essa frustração. Contudo, tudo tem o seu tempo e este é um processo gradual e ajustado. A adversidade com que nos confrontamos aos cinco anos não é a mesma com que nos confrontamos aos 20”. Ou seja, a esperança de uma vida sem falhas ajuda a navegar o crescimento, sendo que a criança lidará a seu tempo com as frustrações que surgem de uma dose de realidade. Feito de forma temperada, o rosa ganha só umas nuances de escuridão; feito de forma exacerbada, pode ter consequências mais graves ao nível da felicidade, vivências, quotidiano. “A vida não é perfeita mas nós podemos aprender a navegar na imperfeição e a dar-lhe a mão, fazendo dela nossa amiga”, corrige, antes de mais, a psicóloga. De certa forma, acreditar que a vida é um mar de rosas pode parecer à primeira vista redutor e utópico, mas tem a sua razão de ser e as consequências têm, em situações normais, uma gestão possível ao nível de expectativas. O problema é quando a ideia é levada ao extremo, quando passa a ser uma obsessão: “A busca da perfeição pode
traduzir-se de muitas formas, seja através de uma personalidade mais obsessiva, seja através de comportamentos ritualizados, perturbações associadas à imagem corporal, entre outras. Podemos ainda permanecer em estados de inadequação ao contexto, imaturidade ou dificuldades em ‘crescer’ e assumir responsabilidades. Esta dificuldade pode, efetivamente, ter impacto a vários níveis e manifestar-se de formas variadas”, adverte. No caso das mulheres, o poder do rosa prende-se ainda com uma categorizarão que é maior do que uma busca pela perfeição – não é ser a melhor, só, é corresponder àquilo que a sociedade ocidental ditou para os cromossomas XX: “Isso é algo muito cultural e remonta aos tempos medievais”, contextualiza Catarina
Lucas sobre a tendência de pôr as meninas na caixa do cor-de-rosa, seja literal ou metaforicamente. “Os homens eram treinados para serem valentes cavaleiros e lutadores e as mulheres para serem delicadas, boas donas de casa e boas mães. De alguma forma, esta ideia está ligada também à noção de delicadeza e de sensibilidade que mais facilmente se atribui à mulher do que ao homem. Os homens também são incluídos na caixa dos príncipes. A diferença é que a caixa dos príncipes tem outras obrigações e estereótipos, não melhores que a caixa das princesas. Ter de ser forte e destemido também é uma pressão enorme. De forma geral, funcionamos através de categorizações. Precisamos de distinguir as coisas, nomear ideias e objetos e ser entendidos pelos demais. Isso apenas é conseguido através de categorizações. Ao dizermos ‘vida cor-de-rosa’ todos nós sabemos o seu significado. Isso é uma categorização, muitas vezes necessária à compreensão entre as pessoas no processo de comunicação.” É por isso que, apesar de a vida nos ensinar que o mundo não é cor-de-rosa e sabermos que há muitas áreas cinzentas, continuamos a perpetuar esta ideia do cor-de-rosa enquanto missão ou diretriz? Talvez, mas também porque os hábitos e ensinamentos são de tal forma parte de nós que é difícil purgá-los: “Apesar de tudo, somos rígidos nas nossas conceções, porque são aprendizagens que fazemos desde cedo e com as quais crescemos e convivemos durante anos. Alterar isso não é fácil. Lá no fundo, queremos continuar a lutar por essa perfeição. Precisamos de praticar a autocompaixão e a aceitação, fazendo as pazes connosco próprios e com as nossas falhas. Só assim conseguiremos fazer diferente a seguir. Contudo, é importante entendermos que precisamos de ter objetivos e que, embora nos seja permitido falhar, isso não é sinónimo de conformismo e de nem sequer tentar”, elabora a psicóloga.
Éneste exercício de temperar a frustração que reside a fórmula para o magenta não resvalar para o alerta-escarlate. De certa forma, é abraçar o cor-de-rosa, tendo-o como guia para a manutenção de um espírito positivo, mas sabendo que ele nem sempre será uma presença assídua. “Temos que nos reconciliar connosco próprios, perdoarmo-nos nos nossos erros, percebermos que podemos ser felizes na imperfeição. Tolerar a frustração de que não conseguirmos sempre, mas compreender que isso não é o fim”. Fácil de fazer, não tão fácil de concretizar? Claro. Nunca queremos ficar aquém das expectativas, mesmo que elas sejam só nossas. Temos muito mais dificuldade em ultrapassar o negativo do que prolongar a sensação de conquista do positivo. Lembro-me sempre de um exemplo que um dia me passaram: “Diz a uma mulher que ela é bonita e ela regozija durante cinco minutos; diz a uma
mulher que ela é feia e ela martiriza-se com isso a vida toda.” É verdade que isto abriria todo um novo debate sobre os padrões de beleza impossíveis e sobre a sociedade que se rege pela aparência, noções que não estão dissociadas desta ideia de pertencer e obedecer às normas e caixas cor-de-rosa que o mundo nos coloca, mas foquemo-nos na ideia em geral e não no físico em particular.
O que esta frase quer dizer é que as coisas boas nos parecem fugazes quando algo mau se instala no nosso âmago: é muito mais gritante a preponderância da ansiedade de ter de lidar com críticas do que aceitar elogios.
“Ninguém gosta de se olhar como um ser imperfeito ou que erra. Fere o nosso orgulho, magoa a nossa autoestima. Não raras vezes travamos ‘batalhas’ apenas para provar que temos razão. Não ter razão é visto como uma imperfeição. No limite, o que procuramos é ser aceites, validados e amados e, acreditamos que isso apenas acontece, se formos perfeitos. Como se apenas a perfeição fosse ‘amada’. O nosso medo último é a rejeição”, atesta Catarina Lucas. O risco de acreditar nos parâmetros cor-de-rosa que nos são impostos prende-se também com as nossas condicionantes sociais e com a vontade em agradar, portanto. Não é só descobrir que o mundo não é cor-de-rosa ou que nós não somos cor-de-rosa, isto é, perfeitas; é o acreditar que não há vida – ou aceitação – além do cor-de-rosa. De certa forma, é acreditar que a felicidade que é conotada com a aceitação e o sentimento de pertença só acontece quando correspondemos aos padrões, o que acaba por se traduzir na infelicidade constante, porque não se consegue agradar a toda a gente a toda a hora, a começar por nós próprios. O desapontamento em falhar é o que nos faz lutar para que ele não aconteça e gera dificuldades em aceitar quando de facto acontece. Mas é possível navegar e lidar com esses sentimentos, para encontrar o equilíbrio – a tal capacidade de gestão que o crescimento nos oferece. Como é que se lida com esse medo de rejeição? Como é que se consegue viver no compromisso entre a vontade de ser perfeito e a noção de que é
ok não ser? “Devemos fazer uma boa avaliação de nós mesmos, das nossas competências e características. Desse modo, poderemos entender qual o momento de continuar e o momento de parar. Refletir sobre as coisas é muito importante. Talvez o segredo seja a persistência aliada ao perdão nos momentos em que falhamos.”
Acreditar num mundo cor-de-rosa ou ser colocada numa caixa cor-de-rosa pode, então, ser redutor em criança, mas também pode ser (é?) um mal necessário. Até porque não há bela sem senão: não categorizar também não pode desencadear uma falha de identidade? Talvez um tópico para um próximo artigo, mas só depois de acabar este da vida a cor-de-rosa: pintar o mundo em Pantones bonitos desta tonalidade não dita que ele será, ou é, sempre assim, e colocar a menina num vestido cor-de-rosa não impede que um dia ela descalce as bailarinas e as troque pelos ténis ou botas biker. Na verdade, pintar a infância de cor-de-rosa ou o futuro no mesmo tom é, na verdade, incutir alguma esperança (no sentido do rosa ser símbolo da felicidade) e ambição (quando o rosa é sinónimo de perfeição) para que a vontade de viver, crescer, superar-se seja constante. Como em tudo, levar essa ideia ao extremo pode ter consequências nefastas que se prendem com a inadequação, incapacidade de se relacionar, duros golpes na autoestima e validação pessoal… mas, quando usado na dose recomendada, com algum branco-equilíbrio à mistura, ela é um mecanismo de evolução. “A verdade é que pode atenuar algumas frustrações. Se começarmos a olhar para o mundo ‘negro’, carregaremos desalento e desânimo. Precisamos também de acreditar no lado bom das pessoas, do mundo e esperar o melhor. Retirar-nos isso pode ser retirar-nos o sentido da vida. Além disso, esta ideia pode fazer-nos, em alguns momentos, alcançar o que julgávamos não conseguir, lutar para alcançar algo, persistir. Só precisamos é de encontrar o equilíbrio no meio disto”, conclui Catarina Lucas. O sonho cor-de-rosa comanda a vida, era o que António Gedeão queria dizer no seu poema Pedra Filosofal, imaginamos nós.