VOGUE (Portugal)

Rui Matos,

Jornalista

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Não me lembro da última vez que me desafiaram a partilhar algo tão pessoal. Ainda que hoje se partilhe tudo e mais um par de botas, dizer em viva voz a música da nossa vida é, de longe, a coisa mais pessoal que podemos partilhar – pelo menos no meu caso. Mas já que estou disposto a dar a mão à palmatória no que à vulnerabil­idade diz respeito, aqui vai. Pensei durante uma semana qual seria a música da minha. Não cheguei a conclusão nenhuma. No entanto, fiquei indeciso entre duas músicas, das 147 que tenho guardadas como “favoritas” na minha conta de Spotify. A primeira I Want You To Love Me, da inigualáve­l Fiona Apple. É recente, tem pouco mais de um ano, mas é, com toda a certeza, a música que mais ouvi nos últimos meses. “And when I go / All my particles disband and disperse / And I’ll be back in the pulse”, atira Fiona de forma assertiva. Estes versos, em particular, são uma verdadeira declaração poética, onde a cantora admite não ter medo da própria morte. Assim como a norte-americana, acredito que quando a vida aqui na Terra tiver um fim vamos fazer parte de outro mundo, uma vez que as nossas moléculas voltam à natureza para constituir outros seres. A segunda, num oposto a este esoterismo Appliano, está Madrugada Sem Sono, de Gisela João, uma música carregada de tristeza, mágoa e sofrimento. Por outras palavras, um fado tradiciona­lmente português, com solos de guitarra portuguesa que arrepiam. “Andei dum corpo a outro corpo / Só p’ra me esquecer de ti” e “De madrugada sem sono / Sem luz, nem amor, nem lei / Mordi os brancos lençóis / Tive saudades, chorei.” Estes versos são a representa­ção mais clara de uns tenros 25 anos, este meio termo chato com questões que não mais acabam, com infortúnio­s amorosos que podem fazer mossa, com idealizaçõ­es megalómana­s. Quando pensei no fim da inocência, pensei que seria algo ao estilo “o Pai Natal afinal não existe”, mas é mais aterrador, é intenso e não é bonito. Deixei de fora músicas que ouço vezes e vezes sem conta num loop compulsivo, mas estas duas músicas são, hoje, as músicas da minha vida. Amanhã, isso são outros quinhentos.

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