VOGUE (Portugal)

It's my t-shirt, and I'll wear it if I want to.

- Por Ana Murcho. Artwork de Mariana Matos.

Usar ou não usar, eis a questão.

Houve um tempo em que usar t-shirts de bandas de rock era um não-assunto. Qualquer pessoa o podia fazer – do fã incondicio­nal que esperava, ansiosamen­te, por um concerto do grupo em questão para comprar a peça, encarada como “merchandis­ing oficial”, à senhora de Mancelos, que tropeçava “na camisola” numa feira quinzenal em Vila Meã. O primeiro vestia-a por amor; a segunda, por necessidad­e e/ou casualidad­e. Esse tempo já não existe. Mas devia, argumentam­os nós.

Quero ser o tipo de idiota que vê um puto da moda com uma

t-shirt vintage dos Metallica e insiste para que ele seja capaz de cantar pelo menos uma música de Ride The Lightning.” Foi assim que, em abril de 2018, a cantora St. Vincent mostrou o seu desagrado contra “a moda” de usar t-shirts de bandas cujo reportório (alegadamen­te) não conhecemos. Nem todos levaram o desabafo tão a sério. Graças a Deus. Os Metallica, um dos grupos mais visados pela dita “moda”, respondera­m-lhe da seguinte forma: “Dá-lhes um desconto se eles não sabem a letra de Escape.”

É isso, St. Vincent, dá-lhes um desconto. A eles, e a ti. É que nem todos “os putos da moda” eram nascidos quando Ride The Lightning foi editado, em 1984. E isso não significa que não possam, efetivamen­te, conhecer o álbum de trás para a frente. Eu não era nascida quando Frank Sinatra lançou Strangers In The Night, em 1966, e, no entanto, conheço os dois lados do vinil de cor e salteado. E agora, St. Vincent, como é que sais deste imbróglio? Não sais. Porque não há saída possível. O teu argumento é o mesmo que usam muitos pseudointe­lectuais (isto vai-me sair caro...) que pensam que “as suas bandas” só a eles pertencem, e que todos os outros, os que estão de fora, são uma espécie de ralé, que não tem direito a pertencer à trupe. “Quem é que tu achas que és para vestir uma t-shirt dos Ramones?” ou “Qual é a tua música preferida dos Iron Maiden, ó tu que te achas tão cool?”, eis duas perguntas ao melhor estilo bully para interpelar qualquer transeunte mais distraído – que por acaso até sabe que os Ramones podem até não ter inventado o punk rock, mas foram, com toda a certeza, uma das mais importante­s bandas de punk rock de sempre, e que, por acaso, já ouviu mais do que uma vez The Number of The Beast, só que prefere Powerslave.

Ou então não. Ou então alguém decidiu comprar uma t-shirt dos AC/DC porque lhe apeteceu. Porque gostou da estética. Porque a achou “gira.” Foi precisamen­te isso que nos disse José Santana, diretor da GQ e creative art director das capas da Vogue. “Uma pessoa compra a t-shirt pelo design, pela estética, não pela música. Até podes comprar um álbum de uma banda que gostas muito e detestas a capa, porque ali a música é que interessa. Na t-shirt é ao contrário. E o que é pior, usar uma t-shirt de um grupo que não conhecemos, ou de que não gostamos particular­mente, ou usar uma t-shirt de um grupo que adoramos... mas cujo design detestamos? Há uma t-shirt dos Led Zeppelin que adoro, e os Led Zeppelin, para mim, nunca foram ‘wow’, mas adoro a estética dessa t-shirt. Acho que uma t-shirt é uma coisa que é comprada pelo design, é indiferent­e se a pessoa conhece ou não o grupo. Acho que até pode trazer a curiosidad­e de

vir a conhecê-lo, na verdade. Hoje em dia, com a Internet, em três segundos a pessoa vai à procura. Se se afeiçoou a uma t-shirt pode pensar ‘deixa lá ver o que é que estes tipos faziam’. De resto, aquelas pessoas radicais que acham que uma pessoa para usar uma t-shirt tem de conhecer o grupo... é ridículo. Por exemplo, o logo dos The Rolling Stones: é considerad­o um dos melhores logos de sempre, mesmo em termos de grafismo, porque transmite muito bem a ideia. Tu podes adorar o logo e não gostares da banda, e podes andar com uma t-shirt porque adoras o logo... mas não adoras a banda. É uma

t-shirt! Há pessoas que andam com t-shirts da Marilyn Monroe e do James Dean e se calhar nunca viram nenhum filme deles.” Portanto, enquanto designer, não o incomoda? Ou melhor, não o choca? “Choca-me as pessoas ficarem chocadas com isso! É estar a pôr uma intelectua­lidade numa coisa que não tem de a ter. É como querer ser de uma elite, do género ‘estas t-shirts só podem ser usadas por apreciador­es...’ É ridículo.” Durante anos, as malfadadas t-shirts de bandas rock foram vendidas, sem ninguém dar por elas, em feiras e mercados de segunda mão. Só quando as marcas de fast fashion se apoderaram delas, nos últimos anos, é que o celeuma se deu. Porque passou a ser “proibido usar” algo do qual não se soubesse tudo e mais algum par de botas. “Sabes quem é o Johnny Ramone? Não? Então para que é que tens isso vestido?” Simples: “Porque está à venda em dezenas de sítios. E porque, imagina tu, os meus olhos cruzaram-se com aquela t-shirt e nunca mais fui a mesma pessoa desde então (inserir emoji que encolhe os ombros, caso exista). “Isto era uma questão que se podia colocar, talvez, num extremo, se fosse uma t-shirt que tem uma mensagem política. E, aí sim, se calhar é estúpido usar uma coisa que tem uma mensagem com a qual não concordamo­s. Agora numa t-shirt de banda é patético. Para já, não deixa de ser sempre uma homenagem à banda, porque gostaste da sua estética”, reforça José Santana.

Foi o que pensei quando, há uns anos, caí no erro de comprar uma t-shirt de um grupo cujo nome não será mencionado, porque, de acordo com uma colega de trabalho, não estava “capacitada” para a usar. Talvez não estivesse. As paredes do meu quarto de adolescent­e não estavam forradas com posters do dito grupo, no meu walkman não passavam, em loop, as suas canções, mas a sua estética, damn, a sua estética era do caraças – em minha defesa, conhecia meia dúzia de canções do tal grupo; não era a fã eufórica que estaria na primeira fila caso dessem um concerto, mas saberia distinguir a voz do seu vocalista, caso a ouvisse. E foi exatamente por apreciar essa estética, esse mood, que comprei a t-shirt. Maldição. O comentário que me foi dirigido, algures entre o “tenho pena de ti” e o “nem que uses essa t-shirt mil anos serás fixe, como eu sou” fez com que, idiota, enfiasse a t-shirt numa gaveta, envergonha­da com a minha falta de “coolness”, como se tivesse cometido um perjúrio. Até que percebi que, à beira de fazer 40 anos (e que tivesse 20!) não tenho de pedir licença a ninguém para vestir o que bem me apetecer.

“ISTO ERA UMA QUESTÃO QUE SE PODIA COLOCAR, TALVEZ, NUM EXTREMO, SE FOSSE UMA T-SHIRT QUE TEM UMA MENSAGEM POLÍTICA. E, AÍ SIM, SE CALHAR É ESTÚPIDO USAR UMA COISA QUE TEM UMA MENSAGEM COM A QUAL NÃO CONCORDAMO­S. AGORA NUMA T-SHIRT DE BANDA É PATÉTICO. PARA JÁ, NÃO DEIXA DE SER SEMPRE UMA HOMENAGEM À BANDA, PORQUE GOSTASTE DA SUA ESTÉTICA.” José Santana

Isso inclui t-shirts de bandas que não estão na minha playlist e, se for o caso, t-shirts de artistas que jamais irão estar – porque se um dia o Emanuel lançar uma t-shirt com um design do caraças, não terei qualquer pudor em gastar dinheiro com ela. E em usá-la. Voilà!

São apenas t-shirts, pessoas! Não façam disto um debate em torno dos direitos das renas ou dos elefantes! Se realmente quisermos demonstrar as nossas convicções políticas, fazemo-lo de outras formas, nomeadamen­te através do direito ao voto. Duvido que a minha graphic designer tenha pensado, hoje de manhã, se deveria sair à rua com uma t-shirt roxa onde se lê “Human Creature”. Será que ela queria fazer uma declaração de intenções? Será que queria dizer que é um ser humano? Será que (tcharam!) gostou da t-shirt, e pronto? É bem possível que sim. Aliás, é só possível que sim.

Sorry, St. Vincent.

Há quem não pense assim, claro. E essas vozes também devem ser ouvidas. Mike, vamos chamar-lhe assim, tem 17 anos e é um adepto fervoroso da causa “queimem o pessoal que usa t-shirts de bandas que não conhece.” Mike, no entanto, tem argumentos que merecem a nossa atenção, quanto mais não seja porque Mike tem 17 anos, e deveria ser o primeiro a advogar a liberdade a rodos. E, no entanto... “É um desrespeit­o estar a andar com uma marca e não saber o que aquilo é. Porque à partida, quando eu uso [t-shirts de bandas] significa ‘eu ouço, eu gosto disto, eu represento isto, eu apoio o que este projeto faz’. Se eu encontrar uma pessoa na rua e ela estiver a usar uma t-shirt de uma banda eu vou assumir que ela sabe o que é que é. E é um bocado mau [quando não sabe] e já aconteceu eu referir isso, e as pessoas ‘ah, não sei’. E é um bocado triste, porque é desapontan­te, porque queria falar daquilo com a pessoa, mas a pessoa não faz ideia. E depois é um bocado a coisa de desrespeit­ar. Nem precisa de gostar. Uma coisa nem é gostar da banda, ao menos que saiba o que é que é, está a usar uma peça de roupa, se não gosta da música mas gosta, sei lá, do

design, ao menos que saiba o que é que é, porque depois não está a fazer uma figura de urso quando alguém lhe pergunta o que é que é aquilo.” Mas podemos usar a t-shirt, em algum momento, desde que nos informemos previament­e sobre o grupo? “Pode, mas não é a audiência daquela banda.” Não somos? Hum... “Eu não uso t-shirts de bandas das quais não conheça, pelo menos, cinco músicas. No mínimo. Mas isso é uma coisa pessoal. E é uma piada que se faz. Agora andam aí imensas miúdas e miúdos com t-shirts de bandas, mas eles não fazem ideia o que é aquilo. Não fazem ideia. E é tão chato. É só irritante.” Ok, Mike. Só desta vez, porque sabes que te adoro: concordamo­s em discordar. A tia Ana vai continuar as suas

t-shirts “de bandas que não conhece.” Com muito orgulho.

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