Last night a DJ could not save our life.
Podem ficar com as joias, o carro e a casa, mas não fiquem com as festas. Por Pureza Fleming.
Parece que foi ontem, mas já se passaram quase dois anos desde que a pandemia nos roubou festas, festivais, clubes e pistas de dança. À falta de melhor, dança-se ao som do streaming, em frente ao computador e de costas voltadas para a vida. No caminho fica o diálogo com o DJ. A troca, em tempo real, entre a cabine e a pista, onde a magia acontece.
Quantas vezes é que um DJ já nos salvou a vida? Nos tirou da sina do nine-to-five? Da chata existência proporcionada por uma má semana? Ou apenas, por um breve momento, nos arrastou para a pista para dançar “como se não houvesse amanhã”? Se quem canta seus males espanta, quem dança espanta tudo o que houver para espantar — entre um movimento de braços e outro, não há quem se chegue perto. Dançar desenfreadamente na escuridão de um clube é libertador. Perder a cabeça, o norte (o sul, o este, o oeste) nos confins de um festival é do mais saudável que há. De acordo com um artigo publicado em 2018 na edição americana da revista Rolling Stone, “nos últimos anos, os clubes, as raves e os festivais de música eletrónica à volta do mundo passaram a ser cada vez mais frequentados.” O mesmo texto mencionava o IMS Business Report, um estudo acerca de como é que a indústria da Electronic Dance Music (EDM) se movimenta, anualmente. Este certificava que os eventos com música e DJ teriam aumentado consideravelmente em 2018, ao mesmo tempo que demonstrava que “a cultura dos festivais ainda vive”. Ou vivia, antes da pandemia. Já no último report, comdata de 2020, o valor global desta indústria teria apresentado uma queda de 56%. O que não é de estranhar: afinal, o conceito de festa, e de tudo o que a mesma implica, morreu na praia com a COVID-19. E se este é um quadro agonizante para aqueles que dançam, o que dizer daqueles que nos dão — ou davam — música? “Penso que em Portugal, nos últimos anos pré-pandemia, seguíamos em velocidade de cruzeiro. O mercado local não cresceu, os sinais positivos que víamos aqui e ali tinham a ver com o turismo. Habituámo-nos a ver muito público estrangeiro nos nossos festivais e clubes ao longo do ano. E ainda bem, trouxeram nova energia e cor às nossas pistas. Depois, desligaram-nos o interruptor. Silêncio, escuridão e incerteza. O impacto é devastador. Artistas e DJ, clubes e festivais, agências e promotoras a sobreviverem em apneia, numa longa espera. Muitos já desistiram. Uns vendem os discos e instrumentos, outros fecharam portas ou emagreceram as equipas.” As palavras são de Rui Vargas, DJ, director musical do Lux e radialista. Para Mariana Barosa, mais conhecida pelo público como DJ Mary B, co-fundadora e co-gerente do espaço lisboeta Collect (com o também DJ João Maria e o terceiro sócio, Bernardo Girão), o cenário dos últimos tempos não está a ser menos desolador: “Estamos há 15 meses sem clubes e bares, não há festivais, festas ou eventos. Trabalhamos para criar momentos que juntam pessoas de uma forma totalmente descontraída! Está a ser e será duro para muita gente, para muitos negócios, artistas e profissionais dos setores da noite, dos eventos e dos audiovisuais. E outras actividades ligadas [à área] estão a passar por grandes dificuldades.” Abriu a Collect em julho de 2019, oito meses antes
de a pandemia rebentar. “Contávamos com um grande fluxo de estrangeiros, além das pessoas mais ligadas à indústria da música e que visitavam a nossa loja de discos e assistiam aos nossos programas de rádio ao vivo. O Cais do Sodré é um forte ponto de animação noturna e as restrições de horários ou a limitação de lugares fazem agora uma grande diferença na facturação.” A Collect, que tem como pilar a música eletrónica, é além de restaurante e bar, uma loja de discos, uma rádio online e uma editora. “O conceito da Collect vive da oportunidade de ser um lugar, como o próprio nome indica, que junta pessoas, cria momentos de partilha entre artistas, proporciona encontros com amigos e desconhecidos, sempre com a música presente”, aponta Mariana. Mas a música eletrónica não vive apenas no circuito fechado dos clubes. Felizmente para quem não é fã de espaços fechados. Para esses, existem os festivais ao ar livre. E depois há o Boom Festival: motivo de orgulho nacional e que está, lado a lado com o festival norte-americano Burning Man, entre os três melhores do mundo. “O Boom é um festival de transformação humana e de regeneração ambiental que visa o desenvolvimento de consciência artística, de abertura à cultura, com muito foco na consciência ambiental e que, acima de tudo, acredita no poder agregador e transformador da música eletrónica. Ou seja, é um festival que nasceu da música eletrónica, mas que hoje é muito mais do que isso”, específica Artur Mendes, membro da organização do Boom. Este festival, que acontece de dois em dois anos, deveria ter tido a sua última edição em 2020. Já foi adiado duas vezes. “Estávamos a caminhar a passos largos para uma edição muito positiva, em 2020, portanto o festival vai ter de se readaptar. Vai ter de ser diferente, mas nunca pior. Aliás, vai ter de ser melhor ainda. Mesmo que os meios e os recursos tenham de ser diferentes”. Refere ainda as óbvias consequências a nível financeiro, uma vez que estão “proibidos de fazer alguma coisa há já dois anos — não entra nada e está sempre a sair.” Além disso, explica que tomaram a decisão de “não despedir ninguém e de continuar a ter uma equipa a funcionar, o que, obviamente, resulta em fortes consequências ao nível financeiro”.
O dancefloor não morreu. Viva o dancefloor.
“Not everyone understands house music, It's a spiritual thing, a body thing, a soul thing”. Ora aqui está uma frase que dispensa apresentações para quem tem as antenas ligadas à música eletrónica. Porém, não é só a música house que é difícil de definir, mas todos os estilos da eletrónica: do techno ao trance, do electro ao drum and bass, sem esquecer o acid house ou o minimal. Antes de mais, a música electrónica é algo que se sente: no corpo, na alma, no espírito. Foi isso que nos tentou dizer Eddie Amador com a frase acima citada, no tema House Music (1998), o mesmo que pôs pistas de dança pelo mundo fora aos pulos de euforia. Nem toda a gente entende a house music — e está tudo bem. O que fica realmente difícil de compreender é como chegar a este nível espiritual sem a dança que acontece, literalmente, entre o DJ e o seu público? “O streaming é uma fraca aproximação daquilo que um DJ é e faz”, garante Rui Vargas. E prossegue: “Porque falta uma parte fundamental: as pessoas, a pista. É desse diálogo, dessa troca em tempo real entre a cabine e a pista que acontece magia, que se criam momentos e noites inesquecíveis. Poderá gostar-se da música que alguém esteja a tocar num streaming, pode até ser um objecto visual interessante, mas nada faz vibrar como uma experiência no sítio certo, no escuro de uma pista de dança.” Na opinião de Mary B, o modo streaming tem coisas boas e outras menos boas: “Podemos atingir mais pessoas, permite que o nosso trabalho chegue
além fronteiras sem termos de sair do nosso lugar. De qualquer forma, a interação possível é bem menor. É muito difícil substituir a presença física, o contacto, a comunicação que surge quando podemos estar fisicamente perto do nosso público”, alega. Artur Mendes definiria “o movimento da música eletrónica, em todos os seus géneros, como um elemento de agregação de pessoas de diversos backgrounds sob a forma mais inclusiva, democrática e abrangente de definição musical, que é a pista de dança. Seja num clube, seja em festivais, seja ao ar livre.” Logo, música eletrónica sem pista de dança não é a mesma coisa. “Nós estamos a assistir em direto à ‘vídeo gamificação’ da experiência da pista de dança e dos festivais. Já existiam fenómenos de acontecimentos virtuais, já existia o streaming de DJ. No entanto este era, muitas vezes, em locais com pessoas. O que está a acontecer com esta ‘vídeo gamificação’ é a ausência da experiência social. E eu acho que aí reside um dos grandes problemas: as pessoas que normalmente se encontravam numa pista de dança não vão conseguir encontrar-se fisicamente numa Zoom Party. E para pessoas com problemas de identidade, por exemplo, ou de socialização, ou simplesmente para pessoas que gostam de ser extremamente extravagantes ao fim-de-semana e que têm a sua vida normal e esquematizada durante a semana, a falta destes lugares de escape, onde ninguém as julga, é um problema grande. Não sei até que ponto é que isto poderá ser estudado ao nível da autoestima, ou daquilo que é o capital criativo que, por norma, nasce a partir destes ambientes altamente inclusivos. Temos de fazer o mais depressa possível o regresso ao tipo de ambientes onde a
“O STREAMING É UMA FRACA APROXIMAÇÃO DAQUILO QUE UM DJ É E FAZ. PORQUE FALTA UMA PARTE FUNDAMENTAL: AS PESSOAS, A PISTA. É DESSE DIÁLOGO, DESSA TROCA EM TEMPO REAL ENTRE A CABINE E A PISTA QUE ACONTECE MAGIA, QUE SE CRIAM MOMENTOS E NOITES INESQUECÍVEIS." Rui Vargas
pista de dança esteja presente. Essa experiência, a energia de uma pista de dança, é impossível consegui-la com pessoas sentadas à mesa”, conclui. Para Artur (e para todos os aficionados do Boom que aguardam ansiosamente por agosto de 2022), tudo será possível desde que haja uma adaptação às diretrizes no que respeita à saúde pública. Sublinha, porém, que a organização do festival já estabeleceu dois critérios: não haver distanciamento físico e não haver obrigatoriedade no uso de máscara. “Acreditamos que se as coisas estiverem mais estáveis mundialmente conseguiremos retomar o festival como ele era, com as pessoas próximas umas das outras. Provavelmente terão de existir mais alguns protocolos de testagem, de limpeza, e mais medidas preventivas de saúde pública. Mas eu acho que qualquer festival minimamente organizado já tem isso dentro dos seus protocolos. Nós lidamos com pessoas do mundo inteiro, temos muitos protocolos de saúde pública já estabelecidos, portanto é só uma questão de reforçar esses pontos”. Já o director musical do Lux, Rui Vargas, crê que tudo será uma questão de tempo para reconquistar a confiança: “Somos um bicho social e a celebração da música em comunhão é uma parte importante na vida de muita gente. Tenho confirmado isso mesmo durante estes tempos. Pessoas a quem aquilo que fazemos faz falta. Quando chegar a imunidade de grupo espero (e anseio) um boom da cena. A mola está comprimida há muito tempo. Acontecerá primeiro em pistas ao ar livre, mas acredito que até ao final do ano estaremos a dançar em clubes […] Difícil dizer como vai ser o Lux desconhecendo as regras em que será possível funcionar. Mas há uma certeza: uma redobrada atenção ao talento criativo nacional”. A DJ Mary B considera que, quando houver ordem de soltura, a música electrónica será uma das áreas que mais irá vingar: “O nosso país é um tesouro, com o clima perfeito, a segurança, a nossa história, a cultura, a variedade de lugares incríveis! Temos tudo para acreditar que vamos conseguir superar este grande abalo que a pandemia nos fez passar”. E nós lá estaremos, no dancefloor, para o confirmar. E para que o DJ volte a salvar a nossa vida, como nos bons velhos tempos.l