Cozinha de Lá sem dar Dó.
Os ingredientes que sabem a música. Por Nuno Miguel Dias.
Música Clássica denota bom gosto. A pop é aveludada no palato. Já o heavy metal terá, porventura, uma textura mais áspera, assim como quando encontramos grumos no puré de batata. Não, não é nestes termos que concluímos que a música e os prazeres do prato podem estar ligados. Há toda uma viagem gastro-musical, de curiosidades históricas a termos técnicos, que urge descobrir. De headphones, por favor.
Não é bem aquele clássico dilema/quebra-cabeças do ovo, da galinha e de quem terá aparecido primeiro (o que, aproveitamos já para resolver, porque os dinossauros apareceram muito antes da galinha e já se reproduziam de forma ovípara). Tudo indica que o homem começou a bater ritmadamente com paus em troncos ocos (o que é tido como o início da criação musical) muito antes de descobrir o fogo. Ou seja, num vislumbre de absoluto futurismo, a pré-história é feita de gente a comer alimentos crus, mas com batuques a dar ambiente. É como ir ao sushi em regime all you can eat, portanto. Na verdade, nem o momento da “descoberta da música” corresponde à formação de uma banda com percussões elaboradas preenchendo uns os contratempos de outros, nem a descoberta do fogo significa que se passou imediatamente à confeção de um entrecôte de mamute fumado sobre puré de inhame e redução de malva branca. Ainda assim, não há dúvida de que a música e a comida estão intimamente ligadas. Afinal, cozinhar é uma arte. E não há nenhuma arte que não possa ser adstrita a outra. Para além dos irritantes lugares-comuns que são como leis de proprietários de estabelecimentos de restauração portugueses (porque é que quase todos os bares de praia têm de passar reggae, todos os lugares para turistas têm de passar “fados” da Mariza e todos os restaurantes ditos “sofisticados” têm de ter jazz daquele em que cada um dos músicos toca para o seu lado e a vocalista se desdobra em demorados “bedumpetátárirubadimbadumbadá” até que nos sintamos ligeiramente nervosos e nem saibamos bem porquê?), há inúmeras situações em que a confeção dos pratos ou a sua degustação são, de facto, indissociáveis da música. É esse vasto leque de possibilidades que se segue.
Sou um privilegiado. Conheço a fundo algumas cozinhas que estão vedadas ao comum mortal. Paradoxalmente, isso aconteceu, o mais das vezes, como mero “osso do ofício.” Chefs que não têm tempo para serem entrevistados durante uma pausada degustação das suas criações, à mesa, com um copo de vinho que eles escolheram para casar bem com uma conversa descontraída (o que, felizmente, também já aconteceu). Não me restou outra hipótese senão andar no seu encalço, com o caderno em punho (o gravador é escusado num dos mais barulhentos meios de trabalho do universo), caneta a hieroglifar as respostas entrecortadas com os clássicos “Essas bochechas já estão?” ou “Os legumes é para sair que eu não tenho a noite toda”, floreados com alhos, bugalhos e outras coisas que rimam com Seat Arona. Estou, pois, numa posição confortabilíssima, que me foi dada por anos de observação in loco, para afirmar que ser
chef é como ser um maestro, comparação que apenas varia na medida em que as orquestras podem ser de maior ou menor dimensão, não sendo essa que vai ditar a qualidade do seu condutor. Porque também um maestro não vai ser melhor porque um dia conduz a complexa Cavalgada das Valquírias, de Wilhelm Richard Wagner, e no outro passa
ao minimalismo do Coro à Boca Fechada da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, esse belíssimo momento da música clássica que se reduz ao que o nome indica acompanhado de uns quantos violinos em pizzicato (cordas puxadas com os dedos) e mais umas tantas flautas transversais, em andamento
adagio, uma espécie de less is more que, se é para traçar um paralelismo entre a música e a comida, teríamos de optar por um bacalhau com grão encimado por rodelas de ovo cozido, cebola crua cortada em cubos muito pequenos, salsa espalhada por cima e um verdíssimo fio de azeite de colheita privada. Nesse caso, o vinagre seria aquela parte em que uma das violinistas se engana e troca o fá sustenido pelo ré menor e o público (ou o degustador) franzem os olhos até aparecerem rugas que não supúnhamos existirem (e não, não é uma questão de gosto). Aprofundemos, pois, esta dicotomia chef/maestro traçando a paridade entre cozinha/orquestra.
Na ótica do espectador, ou seja, de frente para o grupo de músicos que forma uma orquestra, e por uma questão de acústica (que diverge hoje e em muito daquela que havia nas igrejas, cuja nave central obedecia a regras que permitiam uma genial propagação do som, e mediante as quais foram criadas as mais belas obras sacras, exemplo máximo em Antonio Vivaldi – não se quedem nas Quatro Estações e oiçam, por amor daquele a quem é dedicada, a área Eja
Mater, Fons Amoris, da obra Stabat Mater), a orquestra é organizada em “leque”. O maestro fica na sua base, ao centro, manejando a sua batuta (que funciona como o prolongamento do braço para que todos os músicos a possam ver e que agora é de plástico, mas antigamente era um arco de violino, tal como as colheres eram de pau antes dos ditames da ASAE). Depois deste, ainda na base do tal “leque”, a secção de cordas. À esquerda, os agudos, ou seja, os primeiros e segundos violinos (trinta e um no total), sendo que imediatamente ao lado do maestro está o spalla (ou concertino), o último instrumentista a entrar antes do condutor e responsável pela afinação de todos os que compõem a orquestra (ou seja, é o subchefe) e, mais alta que todos, a harpa. À direita, os graves com as suas doze violas, doze violoncelos e oito contrabaixos. Um “degrau” acima, ao centro (ficando assim entre as cordas), a secção de madeiras. À esquerda os mais agudos (flauta transversal e flautim) e à direita os mais graves (oboés, corne-inglês, clarinete, clarone – ou clarinete baixo –, fagote e contrafagote). Depois destes, com uma pequena extensão à direita para os gravíssimos trombone e tuba, a secção de metais, com as suas trompas e trompetes. A mais
cimeira das secções é a percussão (tímpanos, marimbas, xilofone, sinos, tamboriles e pandeirolas). Deram por falta do saxofone (seja o sopranino, o soprano, o alto, o tenor, o barítono ou o baixo)? Pois é, não estamos a falar de uma banda filarmónica, mas sim de uma orquestra clássica, são coisas bem diferentes, assim como numa cozinha de um restaurante gourmet dificilmente haverá uma Bimby (que me perdoem os saxofonistas que venham a ler isto, mas sei que, invariavelmente, são todos grandes eruditos em jazz, por isso não vejo onde possa estar a ofensa).
Acoisa não é muito diferente numa cozinha. Há postos que são ocupados por quem domina “o serviço” a que esse posto é dedicado. É o chamado “Sistema de Brigada” criado por Auguste Escoffier para agilizar e simplificar o trabalho nas cozinhas de hotéis. O chef idealiza o menu, que pode ser sazonal ou diário. Em função deste, é o responsável por coordenar muito para além da feitura dos pratos. Controla a despensa e as compras. Nem sempre cozinha ou repara erros da equipa (principalmente quando a cozinha já está “afinada”), mas supervisiona o trabalho. O sous chef (ou subchefe, mas aqui optaremos pelos termos técnicos da alta cozinha francesa) substitui o chef quando este está ausente. Para além disso, controla a chegada dos alimentos e o seu devido acondicionamento, é responsável pela higiene do local de trabalho e pela preparação de tudo o que antecede o início das atividades diárias, sendo ele que abre e fecha a cozinha todos os dias. O chef sauté é o responsável pelos pratos salteados e os seus molhos, o que é diferente do chef saucier, que é só responsável pelos molhos (sejam os base ou seus derivados), fundos e sopas. O poissonier trata dos peixes, de os “amanhar” e, claro, da sua confeção e dos seus molhos.
O rôtisseur é responsável pelos assados e alguns molhos que deles dependam. É uma posição que pode ser combinada com o posto dos grelhados ou mesmo frituras, se destas depender a finalização dos assados. O grillardin só trata dos grelhados e o friturier de todas as produções fritas. Já o entremetier é o responsável pelos vegetais, limpa-palatos quentes, sopas, pasta e outras massas e ainda os ovos (num sistema de brigada tradicional, as sopas são feitas pelo potager e os vegetais pelo legumier). O tournant é o tradicionalmente chamado “pau para toda a obra”, ou seja, está onde o chef decide na altura que lhe convém. O garde-manger é o responsável pelos pratos frios, das saladas aos limpa-palatos, passando pelos patês. O boucher trata dos cortes de todas as carnes e o pâtisser é o confeiteiro, responsável por todos os doces e sobremesas, que normalmente trabalha afastado de todos os outros. O aboyeur é o responsável pela receção dos pedidos e por “os cantar” para a cozinha. É o último a ver o prato antes de ir à mesa se essa operação não estiver a ser realizada pelo chef ou sous chef.O commis é o aprendiz. Trabalha para todos os responsáveis de cada estação para aprender as suas funções e é diferente do plounger, que é o ajudante e responsável pela limpeza dos utensílios e da cozinha em geral, retirando dela o lixo. É de um sistema como este (ou minimamente parecido) que saem as mais fabulosas sinfonias para o palato. Mas isto de relacionar a música, essa arte sem a qual não conseguimos viver, e a confeção da comida, essa arte sem a qual não sobrevivemos, dá pano para mangas.
Gioachino Rossini (ou Joaquim Avermelhado, em tradução livre) nasceu em Pesaro, na costa do Mar Adriático, no seio de uma família de músicos, no ano de 1792. Aos seis anos já tocava na banda do pai (que também era inspetor de matadouros, pelo que desconfio que já naquele tempo a música não era sustento muito fiável) e, já dominando o cravo, ingressou com 14 anos no liceu musical da cidade para estudar violoncelo. Depois de receber um prémio pelo Conservatório de Bolonha (cidade onde era conhecido no meio como “Il Tedeschino” – O Alemãozinho –, devido à sua admiração por Mozart e Haydn), a sua primeira ópera, La Cambiale di Matrimonio, é produzida em Veneza. Seguiram-se mais trinta e oito, entre elas a famosíssima O Barbeiro de Sevilha, até anunciar, com apenas 37 anos, que a sua carreira na música estava terminada para se dedicar… isso mesmo: à cozinha. Imortalizou a receita de Tornedos Rossini (lê-se tornedó, a ponta posterior do lombo de vitela), que foi criada em sua homenagem pelo próprio Marie-Antoine Carême (o chef dos reis e o rei dos chefs, responsável pela criação da Haute Cuisine Française) e que hoje é tido como um dos pratos mais icónicos da Cozinha Francesa (Rossini morreu em Paris em 1868), no qual entram as pequenas peças de carne fritas em manteiga, encimadas por uma fatia de foie gras, cobertas com molho de vinho da Madeira e decorado
com lascas de trufa. Diz quem sabe, que é o mesmo que dizer “deixou escrito quem com ele privou”, que Rossini era bem-humorado, com uma piadola sempre pronta. Uma das mais famosas é: “Só chorei três vezes na minha vida. Na estreia da minha primeira ópera, ao ouvir o meu conterrâneo Niccoló Paganini ao violino e quando uma cesta com um peru recheado caiu do meu barco, a caminho de um piquenique”, o que dá para imaginar o quão chegado a um petisco era o senhor, para além dos retratos que o ilustram anafadamente. O tal Paganini, pelo violino de quem Rossini chorou, era seu companheiro de comezainas. Uma das suas criações, ravióli genovês com ragu, foi por ele manuscrita e é hoje um dos documentos mais valiosos da Biblioteca do Congresso norte-americano. O que faz lá em vez de em Itália? O mesmo que faz Mac&Cheese nos restaurantes “italianos” de Nova Iorque.
Vicenzo Bellini, outro compositor italiano consagrado pelas suas óperas La Sonnambula, Norma e I Puritani, cozinhou, certo dia, uma massa com tomates frescos, berinjela e manjericão para o realizador de cinema
Nino Mortoglio. Este gostou tanto que, no fim da pratada de hidratos ao serão (porque a dieta Paleo ainda não estava em voga) gritou “É uma Norma”, invocando a obra-prima do compositor agora colocado na posição de chef. Ainda hoje esse prato é conhecido como Pasta alla Norma. Enrico Caruso, o tenor mais famoso de sempre, também tem um prato batizado com o seu nome. Salsa Caruso, uma receita tradicional uruguaia, passou a ser mundialmente conhecida como Sauce Caruso desde que, nas digressões na América do Sul, o cantor exigia que essa mistura cremosa de cebola, presunto, queijo, nozes e cogumelos fosse colocada sobre as suas massas. Mas para que não se ache que só de italianos vive esta dicotomia “A Música/Comer o Comer”, partamos para um polaco que se radicou em Paris, o excelentíssimo Frédéric Chopin, que tinha como prato favorito o zrazy polaco, uma espécie de bifes enrolados e recheados de ovos e vegetais. Como tinha grande dificuldade em encontrá-lo na capital francesa, mais dada à gastronomia local, só frequentando a casa do médico Johann Malfatti (outra vez os italianos), que conseguia reproduzir o tradicional prato, conseguiu apaziguar o seu palato. Prova disso é a correspondência que trocava com os seus amigos polacos, onde curava mais sobre esses serões do que sobre música propriamente dita. Já o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart era um conhecido devorador de croquetes de fígado com chucrute, típicos da região de Salzburgo. Eric Satie, consagrado pianista francês, só comia alimentos brancos: arroz, nabos, queijo e até ossos picados. Igor Stravinsky, por seu lado, frequentava os cafés com um boião de mel à tiracolo, com o qual adoçava o seu chá.
Se quisermos abordar esta temática de uma forma mais contemporânea, é só perguntar aos organizadores de concertos e festivais de verão quais as mais extravagantes exigências dos músicos de hoje. Os Korn, por exemplo, pedem quatro garrafas de sumo orgânico de vinagre de maçã com canela, uma cesta de pães orgânicos, pasta de amendoim e geleia de morango, húmus, pão integral de canela com passas, cesta de frutas orgânicas e legumes, gengibre para sumos, dois pacotes de rebentos biológicos, dois pacotes de bombons de chocolate e uma máquina centrifugadora para sumos. Já os Stereophonics exigem, para durante o dia, 24 garrafas de água de nascentes britânicas (Brecon ou Highlad Springs), Orangina, águas vitaminadas, 12 garrafas de cerveja Budvar Czech, vinho Pinot Grigio de gama alta, bolachas de arroz, granola e muesli, queijo Cottage, abacates para salada, húmus e wasabi e, ao jantar, um bar de massas, outro de saladas e sorvetes para sobremesa. Lady Gaga solicita frango assado e queijo que não feda; os Bon Jovi canja de galinha caseira; Shakira precisa, sempre, de uma cesta de fruta que tem de ter, exatamente, três mangas, três papaias do Havai, seis bananas e três pêssegos; os Rolling Stones só pretendem duas pessoas bem vestidas para servir comida, não importa qual; Adele quer mel não-orgânico e Beyoncé peito, pernas e asas de frango muito condimentadas. Para mim, é ligeiramente preocupante que a música dependa de tantas exigências alimentares. Talvez por isso nenhum dos acima mencionados faça parte das minhas escolhas. Sou mais da equipa de Alex Kapranos, vocalista dos Franz Ferdinand, autor de um livro intitulado Sound Bites, onde relata com uma paixão exacerbada por tudo o que de mais delicioso provou em digressão com a banda. Ou seja, a sua única exigência é descobrir. Permitir apaixonar-se por sabores que desconhecia. É claro que Portugal ocupa ali uma posição importantíssima. Mas não é por isso. É por tudo o resto. Esta gente com um toque de Anthony Bourdain, com papilas gustativas ávidas por tudo o que é novo e as histórias que o envolvem, são música para os meus ouvidos.l