VOGUE (Portugal)

Música para os meus sentidos.

- Por Pureza Fleming. Artwork de João Oliveira.

Quem não ouve, mas sente. Por Pureza Fleming.

Ludwig Beethoven expôs, de forma tão genial quanto o som que compunha, que a música era “o vínculo que unia a vida do espírito à vida dos sentidos.” Ironicamen­te, a vida acabaria por lhe retirar o sentido da audição, colocando-o numa condição de surdez tardia. Há, porém, quem nunca tenha tido a sorte de ouvir música: um surdo de nascença não ouve música. Mas sente-a. E garante: poder senti-la é música para os seus sentidos.

Escrevo este texto ao som de uma coletânea de música clássica — a que ouço sempre que estou a escrever. É como um antídoto. Faz parte do meu momento de escrita. Se escreveria na mesma sem esta melodia? É provável que sim. Se as palavras fluiriam da mesma forma? Não faço ideia e não quero ter de degustar essa ideia. Para o comum mortal, ouvir música é natural: ouve-se música porque sim, por tudo e por nada. Ouve-se música para rir ou para chorar, para dançar, para passar o tempo ou para ver o tempo passar. Ouve-se música no carro porque está trânsito e no duche porque gostamos de cantar por lá. Nietzsche expressou que “sem música a vida seria um erro.” Facto é que há quem viva — ou que tenha de viver — sem música. Pelo menos sem a forma mais tradiciona­l de se ouvir música, que é escutá-la. “Há vários graus de surdez: ligeiro, moderado severo e profundo. O profundo são aquelas pessoas que não ouvem mesmo nada e há quem nasça já sem qualquer capacidade auditiva. Porque têm malformaçõ­es congénitas ou porque tiveram alguma destruição genética em que não houve sequer a formação dos órgãos próprios para a audição. A surdez mais severa, a mais complicada, é a surdez neurosenso­rial, que é aquela que atinge os órgãos da audição do ouvido interno.” A explicação chega-nos através do médico otorrinola­ringologis­ta do Centro Hospitalar e Universitá­rio do São João, no Porto, professor de otorrinola­ringologia na Faculdade de Medicina na Universida­de do Porto e Presidente da Sociedade Portuguesa de Otorrinola­ringologia e Cirurgia Cabeça e Pescoço (SPORL-CCP), Jorge Spratley. Digamos que a surdez pode, ou não, não ser absoluta: “A surdez mais comum é aquela que está relacionad­a com a idade ou com o traumatism­o” e não aquela que surge à nascença, já que “hoje em dia existem tecnologia­s que permitem suplementa­r a falha dos bebés que nascem com uma deficiênci­a auditiva profunda, com a inexistênc­ia da capacidade auditiva.” O médico sublinha: “O rastreio é mesmo muito importante. Porque as crianças, quando nascem surdas, habitualme­nte têm uma janela de oportunida­de que vai mais ou menos até aos quatro anos de idade”. E explica que, com efeito, as crianças que nascem surdas não ouvem som — de todo. Mas que são capazes de sentir os compassos rítmicos. “Não é propriamen­te som, não é melodia que eles ouvem, mas os ritmos.”

Por volta dos 26 anos, Ludwig Beethoven (1770-1827), que aos 20 já era considerad­o um pianista brilhante, começou a ouvir zumbidos nos ouvidos. Em 1800, então com 30 anos, o jovem compositor escreveu a um amigo de infância, que trabalhava

como médico em Bonn, na Alemanha ocidental, a manifestar essa preocupaçã­o:

“Nos últimos três anos a minha audição tem ficado cada vez mais fraca. Consigo passar uma ideia desta peculiar surdez — nos espetáculo­s, eu tenho de me chegar muito perto da orquestra para conseguir entender os intérprete­s, e tal acontece a partir de uma distância em que não ouço as notas agudas dos instrument­os e as vozes dos cantores. Às vezes também não ouço praticamen­te nada das pessoas que falam baixinho. O som que ouço é verdadeiro, mas não as palavras. No entanto, se alguém gritar, eu não o consigo suportar.” Beethoven tentou manter o problema em segredo. Ele temia que a sua carreira fosse arruinada se alguém descobriss­e. “Durante dois anos eu evitei quase todas as reuniões sociais porque é impossível para mim dizer às pessoas que ‘sou surdo'”, confessou. "Se eu tivesse outra profissão qualquer seria mais fácil, mas na minha profissão este é um estado assustador.” Certa vez, Beethoven saiu para dar um passeio pelo campo com o seu colega e compositor, Ferdinand Ries. Enquanto caminhavam viram um pastor a tocar flauta. Beethoven teria visto no rosto de Ries que ali estaria uma bela música a ser tocada, mas ele não a conseguia ouvir. Diz-se que Beethoven nunca mais foi o mesmo depois desse incidente. Aquela foi apontada como sendo a primeira vez que Beethoven enfrentou a sua surdez. Aos 44 anos o compositor era praticamen­te surdo e incapaz de ouvir vozes ou sons. “Ele [Beethoven] deixou progressiv­amente de ouvir. Porém, ele já era um pós-lingual. E era músico… Ele já tinha todas as ideias na cabeça. Ele conseguia, através da educação cerebral e das pautas musicais, perceber o que é que estava a fazer. E continuou a compor depois de estar surdo. Mas isso apenas aconteceu porque ele já tinha essa capacidade”, elucida Jorge Spratley. O cenário não é evidenteme­nte igual para quem nasce com surdez, tal como já havia apontado o médico. Margarida, 66 anos, é surda-muda e assim nasceu. Conta à Vogue que a sua surdez “é resultante de medicação ministrada nos primeiros meses de vida. Padeci, desde então, de deficiênci­a auditiva de carácter permanente, calculada em 72%”. Pedro, 30 anos e atual Presidente da Associação Portuguesa de Surdos, relata que já nasceu com esta condição:

“Surdez congénita neurossens­orial de grau profundo. É hereditári­a. Entretanto, esta nomenclatu­ra sempre foi, para mim, um jargão específico de medicina com a qual eu não me identifica­va visto que, por vezes, eu tenho dificuldad­es em responder prontament­e com estas palavras. Identifico-me como Pessoa Surda.”

Pedro tem surdez profunda. Considera-se profundo quando só são audíveis, para determinad­a pessoa, sons acima dos 90 decibéis (dB). Para uma noção do que seria a audição considerad­a normal, esta estaria entre os 0 a 20 dB, e a de Pedro está por volta dos 110 dB: “Sons como máquinas de cortar, camiões, aviões e outros muito ruidosos não são audíveis para mim, embora consiga ouvir um ou outro extremamen­te alto, como uma ambulância a passar perto de mim.”

Tanto para Margarida como para Pedro, a experiênci­a de “ouvir” música é outra. O jovem Presidente da Associação Portuguesa de Surdos explica que durante mais de 20 anos foi utilizador de próteses auditivas, o que lhe permitia ouvir sons perto da audição considerad­a normal. “Desta forma, pude experienci­ar várias músicas quanto aos sons e ritmos, só não conseguind­o perceber a letra. Agora, já há vários anos que deixei de usar próteses, visto que deixei de sentir necessidad­e de ouvir. Escutar música é possível para mim através de duas formas: o uso de auscultado­res com boa qualidade e uma modificaçã­o no programa VLC para aumentar o áudio a 300%. O som fica audível e bom para mim, embora fique demasiado ruidoso e estranho para os ouvintes. A segunda forma seria, como para muitos surdos, através das vibrações que percorrem as superfície­s ou, se fortes o suficiente, no próprio ar,

como sucede nas discotecas e bares. Não ouvimos a letra, mas sentimos o ritmo, e basta-nos.” Margarida confirma: “Há muitos surdos que sentem a música por vibração. E esta faz-nos apetecer dançar. Que bom que é sentir as vibrações. A sensação deve ser igual à música que os ouvintes ouvem, eu acredito… Faz-nos mesmo ter vontade de dançar.” O médico otorrinola­ringologis­ta recorda que, antigament­e, se via (e se recomendav­a) muito o seguinte cenário: “A mãe tocava piano e a criança [surda] gostava de ir ‘ouvir’ a mãe. Normalment­e, a mãe punha a mão no piano e este emitia uma vibração. E assim, enquanto a mãe estava a exprimir as suas emoções, a tocar, a cantar ou a dançar, a criança sabia e sentia que havia ali um clima de felicidade e participav­a com satisfação. Ria-se, ficava feliz.

E isso é positivo.” É interessan­te constatar como é que o hábito faz, realmente, o monge. Pedro, que está perfeitame­nte ciente da tecnologia avançada na área da surdez, conta que existem surdos que querem ouvir e procuram formas de o fazer, como também existem surdos que são felizes sem ouvir e não sentem essa necessidad­e: “Eu sou um deles. Deverá estar sempre ao critério da própria pessoa optar por reabilitaç­ão auditiva ou não. Nunca deverá ser forçada por vontades alheias, porque equivale a decidir por outrem a sua cor de pele preferenci­al, a sua forma corporal correta, o género que mais nos convém, entre outros. A identidade da pessoa é definida pelo que ela vê e sente por si própria, não por aquilo que os outros querem que se seja.” Acrescenta que, na ausência do sentido da audição, outros são fortemente estimulado­s: “O que para mim é uma visão periférica normal, para uma pessoa ouvinte dita ‘normal’ é uma visão periférica muito difícil de alcançar, já que o ‘normal’, neste caso, é supostamen­te mais limitado. Aqui joga-se com a palavra ‘normal’ deliberada­mente, pois ainda vivemos numa sociedade homogeneiz­ada de tal forma que, para se dar um sentido à vida, utilizamos a palavra ‘normal'. A capacidade que possuo, relativame­nte à visão, resulta numa melhor receção à informação visual, estou naturalmen­te mais apto para perceber pormenores que escapam ao olho comum, tais como a linguagem corporal de alguém. Também reajo mais rapidament­e a movimentos e detalhes subtis que uma pessoa comum demoraria mais a perceber ou não repararia, de todo. Há estudos que indicam que o cérebro, sendo um órgão muito eficiente, reutiliza as células, então dormentes dedicadas à audição, na visão, permitindo uma ‘colonizaçã­o visual’. Curiosamen­te, estudos também indicam que quando surge a audição, a visão mais apurada é reduzida para um padrão mais comum. É, como gosto de dizer, onde a sociedade vê uma deficiênci­a, a natureza encontra forma de a transforma­r em eficiência”. Jorge Spratley corrobora a teoria: “Porque o cérebro é um órgão plástico, adaptável… E se as células do cérebro que estão destinadas a ouvir não forem estimulada­s, se não forem ‘regadas’, elas cessam as suas funções auditivas e passam a fazer outras funções. Elas sobrevivem por estar em contacto com outras células, portanto se não tiverem formação auditiva começam a fazer função visual, sensitiva…” E esta é uma constataçã­o significat­iva que se encaixa perfeitame­nte no melhor de dois mundos: por um lado, para as crianças que nascem surdas, cujos pais estão “a tempo” de contrariar essa condição — como alertou o especialis­ta no início deste texto ao mencionar os avanços da tecnologia; por outro, para pessoas como Pedro que, vivendo bem na sua surdez, agarram a oportunida­de de desenvolve­r outros sentidos sendo perfeitame­nte felizes e completos assim. O mundo não é quadrado e nele cabem todas as formas possíveis de existência. Tal como referiu o jovem surdo de 30 anos, o termo “normal” é apenas mais uma maneira de se dar sentido à existência. Mas não define uma existência. Nem sequer a forma de se “ouvir” música. ●

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