VOGUE (Portugal)

O Som do Silêncio.

Quando não existe o mais pequeno ruído. Quando o barulho das palavras é ocupado pela calma e pelo sossego. É nesse momento ausente que dois amantes, agora afastados, conseguem dialogar. “Não és tu, sou eu, não és tu, sou eu.” Fomos nós.

- Por Ana Murcho e Miguel Cristovinh­o.

Quando não há barulho, dois examantes confessam-se. Por Ana Murcho e Miguel Cristovinh­o.

Este silêncio que nos quebra é o ruído que vai da minha alma à tua alma. É um caminho longo, gigante, é um caminho sem fim. “Talvez nos encontremo­s a meio.” Não. Não nos vamos encontrar a meio. Perdemo-nos algures, num momento em que as palavras ainda faziam sentido, num instante em que os pássaros ainda cantavam para nós. Eu ouvia, tu ouvias, era uma melodia só nossa, inaudível por todos os outros. Éramos tolos e felizes, gabávamo-nos de ter uma banda sonora que mais ninguém podia escutar, íamos ser tudo o que nunca ninguém tinha sido. O quê? Nem nós sabíamos. “Quero-te tanto.” Era essa a nossa moeda de troca. “Quero-te tanto”, e as roupas caíam no chão, como se a tua pele só respirasse em contacto com a minha pele. A partir daí era uma névoa, um clarão de mil cores, uma esquizofre­nia de sentidos. Depois decidimos largar essa voracidade que nos tinha sido concedida pelos deuses, e começámos a esmiuçar o sentido de cada gesto, a cadência de cada frase. Usámos e abusámos do “eu”, trucidámos e humilhámos o “tu”, esquecemo-nos de insistir no “nós”. Foram demasiadas palavras para tão pouco alfabeto. Este silêncio que nos quebra é o sussurro que vai da minha dor à tua descrença, da minha saudade ao teu desalento, da minha esperança ao teu rancor. Já não conseguimo­s ver a mesma luz, já não sabemos tatear a escuridão, já não somos capazes de acreditar que existimos como um só. Agora eu percorro estes corredores vazios e o barulho que me entra, coração adentro, é a tormenta de todas as coisas que não fizemos juntos. Vou à tua procura, e és pó. Vou à minha procura, e sou cinza. No passado fomos o sol e a lua, fomos o céu azul que se funde com o mar revolto, fomos a vida e a morte. Agora não existimos. E escrever isto, preto no branco, é um misto de melancolia e calma, por finalmente te aceitar, assim, ao longe, como uma canção que nunca tem fim. Num universo paralelo existes para todo o sempre — existimos para todo o sempre — e não há nada que nos estorve a vontade ou o desejo. Somos eternament­e possíveis, somos átomos que não se destroem nem daqui a mil anos, somos a soma de todos os silêncios do mundo — os que não soubemos aproveitar e estes, que agora nos pesam, como pedras. E que nos ensinam a ver para além de nós próprios. Não fosse a ausência de som, a tua ausência, e nunca seria capaz de assumir que não soube ouvir-te, que não soube escutar-te, que não soube prestar atenção à melodia que trazias entre os lábios. Podia ser carinho, podia ser paixão, podia ser ternura, e não soube ouvi-los, ocupada que estava a resolver o espalhafat­o que se foi criando entre o meu ego e a minha réstia de empatia. Fiz contigo o que faço com as cartas que me chegam pelo correio. Arrumo-as numa gaveta até decidir o que fazer com elas. Achei que tinha tempo. Fui egoísta, encarnei a minha natureza humana no seu pior. “Temos tempo.” É esse o erro dos que se julgam protegidos por um amor maior. Este silêncio que nos quebra é o estrondo de não te ver mais, de não te saber mais, de não te tocar mais. És tu de um lado e eu do outro, separados por muros de betão, deixando que as nossas mãos se juntem a outras mãos. É o fim. É o princípio. É, sobretudo, o fim. É contemplar a passagem dos dias e das noites num loop intermináv­el de medo e ansiedade, de tristeza e arrependim­ento, de angústia e aflição. Mas é também a paz de te saber mais forte, mais sábio, mais inteiro. Juntos seríamos uma combustão impossível de controlar, uma algazarra de anseios sem fim à vista, uma luta incomensur­ável por um amor que não tem existência neste mundo. Tudo isto ficou no ar, perdido, infinitame­nte perdido, como as estrelas que dançam à noite sem ninguém ver. Eu, que nunca acreditei noutras galáxias, imagino-nos assim. Num sopro de ar, no meio do silêncio. A música que agora não ouço é o que me permite chegar a ti. O murmúrio dos meus pensamento­s, das minhas lembranças, as sirenes imaginária­s que me acordam de madrugada, na crença de que estás ao meu lado, é o que me faz acreditar que um dia fomos uma história digna de ser contada. Porque o barulho entre a minha ilusão e a tua mágoa são inultrapas­sáveis. Já não há silêncio que lhes cure a ferida. Por mais que te escreva, por mais que te queira, por mais que te ame, não há sossego que nos valha. Estamos condenados a uma distância que nunca conseguire­mos percorrer. Uma distância que não se mede em quilómetro­s, mas em silêncios capazes de rasgar as asas dos anjos. Estamos condenados a um abismo. Um abismo lindo, povoado de todas as coisas possíveis. Lá em baixo não se ouvirá nada, nem a brisa do vento. Apenas se adivinhará o vestígio do teu olhar e do meu olhar, num minuto que só termina quando o nosso barulho, finalmente, se unir.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal