Just like a Rolling Stone.
Ou melhor, da vibração. É que o poder da vibração das ondas sonoras em elementos naturais, como a areia ou a água, pode provocar padrões geométricos de uma simetria tal que a expressão “good vibes only” ganha uma dimensão totalmente nova.
Esta moda é rock and roll.
Fotografia de Branislav Simoncik.
Styling de Jan Kralicek.
Não estamos a fazer nenhum spoiler se lhe dissermos que o som e a vibração são dois conceitos interligados – afinal, já todos tivemos de correr atrás daquela mini-coluna que teimava em escapulir-se quando estava no volume máximo, ou daquele copo de água que alguém deixou à boca de uma aparelhagem (bem) sonora, prestes a partir-se. Mas talvez nunca se tenha apercebido que essas mesmas vibrações não são completamente desorganizadas. Juntar a frequência certa ao elemento certo – como a areia – é fazer um casamento de geometria capaz de fazer inveja a qualquer mandala. O efeito não é tão hipnotizante descrito, como testemunhado com os próprios olhos, mas isso não impede que este texto vá tentar fazer-se ouvir da melhor maneira. Primeiro que tudo, é preciso perceber o que é o som, para depois compreender essa capacidade de influenciar os elementos. De forma simplista, o som traduz-se na propagação de uma frente de compressão mecânica ou onda mecânica. Resulta da vibração transmitida através da propagação a partir de uma fonte sonora para um detetor ou recetor de som e, para isso acontecer, é preciso que entre a fonte e o detetor/recetor existam meios materiais (sólidos, líquidos ou gasosos) para ser percebido – por isso é que o som não se propaga no espaço, uma vez que não se propaga no vazio. A vibração de uma fonte sonora causa uma onda, e esse movimento ondulatório propaga-se em todas as direções através de ondas invisíveis: as ondas sonoras ou acústicas. Essa sequência de ondas sonoras, ou ondas de deslocamento, densidade e pressão, que se propagam pelos meios compreensíveis, descreve o que é o som.
“Podemos compreender o que é o som vendo o que acontece quando uma pedra cai na superfície da água e gera uma ondulação que se propaga ao longo da superfície”, começa por explicar Rui Dilão, Professor de Física Matemática e Sistemas Dinâmicos no Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. “Quando falamos, abrimos e fechamos a boca de forma continuada, causando alterações na densidade do ar e produzindo uma onda sonora. Os nossos tímpanos são membranas vibrantes muito finas que sentem as variações da densidade do ar e transmitem essa informação ao nosso cérebro”, elucida, alertando-nos, da forma mais sucinta e compreensível possível, para esta ideia da propagação entre a fonte sonora e o recetor, acrescentando que “a propagação do som é um fenómeno relacionado com a natureza atómica da matéria e com os choques entre as moléculas de um gás ou fluido.” Falando da influência do som em elementos, “o fogo, a água e a terra são fluidos constituídos por partículas móveis, pelo que os choques das moléculas de ar com as moléculas desses fluidos podem induzir a propagação da onda sonora no seu interior. Como no interior da água as ondas sonoras amortecem rapidamente, para comunicar através da água ou de outros fluidos as ondas sonoras têm de ser suficientemente intensas. Neste caso, podem-se observar fenómenos relacionados com o efeito dos choques das moléculas dos fluidos. As ondas sonoras geradas pelos sismos são devidas a movimentações extremamente intensas que ocorrem no interior da Terra”, exemplifica. E concretiza: “Por exemplo, a sonoluminescência é a produção de luz através do som. Neste efeito, gera-se uma onda sonora que força uma bolha de gás no interior de um fluido a expandir-se e a contrair-se, emitindo um raio de luz.”
Porque é que estamos a contextualizar isto? Porque é preciso perceber que esta dualidade do som como realidade imaterial, mas que pode bem ser tangível, ganha forma (e belas formas, acrescentemos) se percebermos um pouco de cimática, ou seja, o estudo das ondas sonoras e a sua associação aos padrões físicos produzidos pela interação das mesmas em determinado ambiente. É um estudo que parte do mesmo princípio que a nossa assunção sobre o love
affair entre som e vibrações. “O som desencadeia reação em tudo! Eu diria sobretudo no nosso aparelho neuro-fisiológico”, confirma
com entusiasmo o músico, compositor e pianista Simão Costa, que tem explorado as propriedades físicas do som, assumindo-o como um fenómeno físico, que “parece pouco tangível, mas não é. Por exemplo se formos a uma festa com um DJ e desligarem os sons graves, ninguém vai dançar, fica tudo ‘desconfortável’. Lá está, é mais tangível do que aquilo que pode parecer à primeira análise.” E continua: no caso da “areia, se estiver numa superfície ou membrana, provoca padrões geométricos que correspondem à geografia da vibração desse corpo; o fogo pode ser muito influenciado porque se o ar estiver a vibrar, pode alterar a forma como o oxigénio é disponibilizado no processo de combustão, podendo ver-se as ondas de compressão do ar; na água é um etcétera – e uma delícia observar o som a influenciar esse elemento. Nós ‘vemos’ o ar a vibrar com os ouvidos, e fazemos isso de forma muito detalhada, a comunicação verbal entre seres humanos é um excelente exemplo disso. A forma como o som se desencadeia está sempre a dar-nos informação sobre a nossa envolvente, permitindo ‘ver’ em todas as direções”, sublinha. Simão foi o diretor artístico da exposição c-Vib (Cymatics_Vibrating Interactive Boards), patente no Pavilhão do Conhecimento entre cinco de fevereiro e três de abril, mas a escultura sonora e musical do artista continua exposta – e de acesso gratuito – no átrio do Pavilhão do Conhecimento. O projeto “c_Vib são quatro esculturas sonoras com uma base de 180mx180m, nas quais se articulam madeira e altifalantes e a música [de Simão] que funciona como uma instalação interativa, na qual podemos ‘ouvir com os ouvidos’ mas também com o tato, no caso de nos sentarmos, encostarmos ou deitarmos nessas esculturas. Estas esculturas são também ‘personagens’ e cenário de um espetáculo de dança protagonizado pela coreógrafa e bailarina Yola Pinto, com quem partilho a direção artística deste projeto. As obras de arte não servem para nada, não estão ao serviço, são. Por isso é difícil (impossível) falar delas em termos concretos. Experimentar e/ou contemplar uma obra de arte, é o dispositivo concreto, por isso por mais que escreva ou fale sobre a obra… É pegar no nosso corpo e ir com ele até onde a arte estiver.” O músico convida a conhecer a obra, que é na verdade mais um marco num caminho musical que se faz de uma forma pouco confinada aos trâmites da composição, tendo tentado sempre extrapolar a zona de conforto do seu métier.
Aliás, o seu mais recente disco a solo, Beat With Out Byte – (un)learning Machine, é disso exemplo, explorando uma característica musical particular: o pulso. “Ciclos, batimentos, repetições em processo de homeostase; um processo de regulação através do qual um organismo consegue manter o seu equilíbrio, caracterizado pela sua estabilidade e também pela sua imprevisibilidade”, refere, acrescentando que “todos os sons são acústicos, produzidos a partir de cordas do piano e ímanes colocados sobre elas, e são capturados do ar em vibração.” Confirmamos que estamos, portanto, a falar com a pessoa certa sobre o som e a sua influência sobre elementos. Até porque, confessa, “juntar, à minha condição de pianista, uma condição mais ligada à criação artística foi um sintoma. […] Por essa via, abracei a condição de compositor, ‘inventor’ de sons e instrumentos. Primeiro tive que tratar de me transformar de infoexcluído a programador informático, o computador era uma ferramenta que estava mesmo a pedi-las… Depois de começar a construir instrumentos ‘dentro do computador’ comecei a achar interessante que essas ideias ganhassem mais materialidade. Saber abraçar as tecnologias antigas e conciliar com a invenção de novas ligações e descobrir a dose certa dessas relações é um exercício que me alimenta bem”, confessa. E que lhe deu o arcabouço necessário não só para se afirmar nesta área musical como para falar connosco sobre este jogo de vibrações: “Em termos práticos, ‘jogo de vibrações’ é uma boa definição de música! Para alguns, poderá ser uma
“QUANDO VEMOS UM PATO A NADAR CALMAMENTE NUM LAGO, GERAM-SE ONDAS CONCÊNTRICAS EM TORNO DO SEU CORPO. MAS QUANDO O PATO TEM MOVIMENTOS RÁPIDOS, ESSAS ONDAS TRANSFORMAMSE NUM RASTO PERFEITAMENTE TRIANGULAR. A VELOCIDADE A PARTIR DA QUAL ISSO ACONTECE É A VELOCIDADE DO SOM DA ÁGUA.”
Rui Dilão
definição pouco romântica, mas para mim é mesmo disso que se trata. Como em qualquer jogo há regras que são muito restritas, outras que deixam uma margem de ação. Se o jogo se der e houver entusiasmo por aqueles que estão a jogar, então em princípio está tudo a correr bem”, teoriza.
Este jogo de vibrações é muito mais que ciência – é arte. Uma afirmação que também não é um spoiler, algo que já deu para comprovar nos parágrafos anteriores. Se por esta altura da leitura resistiu à tentação de ir procurar os vídeos destas demonstrações da influência do som em elementos como a areia, água, fogo, podemos avançar que testemunhá-las é uma experiência digna de ficar sem palavras – o que é curioso, porque isto tem tudo a ver com proferir sons. Mas se aguentou até aqui sem ir a um motor de busca pesquisar por vídeos, espere mais um pouco – temos palavras chaves melhores para o SEO. A influência das ondas sonoras em elementos naturais não é só científica, é espetáculo: “Como as ondas sonoras são transportadas pelas moléculas dos materiais, pode-se influenciar qualquer material que seja suficientemente elástico.” Voltamos ao professor de Física Matemática para ouvirmos a explicação de quem sabe fazê-lo melhor. “O mais simples de influenciar é a areia. Ao gerar vibrações numa placa coberta por areia, formam-se padrões geométricos estáveis sobre a placa, designados por padrões de Chladni. Se as vibrações forem originadas pela voz, por exemplo, a ler um poema de Camões ou de Pessoa, os padrões de Chladni gerados são muito diferentes, podendo fornecer uma impressão estética singular. Num dos módulos interativos da exposição permanente do Pavilhão do Conhecimento - Centro Ciência Viva, poderão gerar padrões de Chladni de um modo bastante simples”, desafia Rui Dilão, também envolvido na exposição c_Vib. Porquê padrões de Chladni? Ernst Chladni (1756-1827) foi um músico e físico alemão que elaborou uma vasta pesquisa sobre placas vibratórias e velocidade do som para diferentes corpos gasosos, e é por isso por vezes rotulado como “o pai da acústica.” Uma das suas principais obras debruça-se sobre estas figuras geométricas resultantes da vibração do som, uma técnica que mostra como os vários modos de vibração numa superfície rígida podem desencadear várias formas ou padrões. Ao ressoar, uma placa ou membrana é dividida em regiões que vibram em direções opostas, delimitadas por linhas onde não ocorre vibração (linhas nodais, ou seja, linhas sem movimento). Chladni repetiu, na verdade, as experiências de Robert Hooke que, em 1680, observara os padrões nodais associados às vibrações das placas de vidro. Hooke passou um arco de violino ao longo da borda de um prato com farinha e viu os padrões nodais emergirem. No caso dos padrões de Chladni, numa mesma placa, a alteração da posição do ponto de vibração revela figuras diferentes correspondentes a diferentes tipos de vibração dessa placa. Os padrões também são suscetíveis de se alterar com a mudança de outros parâmetros, como a forma da placa, a espessura, o tamanho… “Os diferentes padrões são gerados essencialmente pela frequência (o tom e a frequência são duas formas diferentes de nos referirmos à mesma característica). No caso da voz, a frequência é variável e, portanto, os padrões da areia variam conforme as frases. Por outro lado, ao aumentar a intensidade do som podem-se gerar padrões complexos, muitos deles caóticos”, clarifica Dilão. “Outros padrões geométricos estão relacionados com a capacidade de um gás ou líquido suportar perturbações muito intensas, gerando-se ‘ondas de choque’ com uma forma triangular. Quando vemos um pato a nadar calmamente num lago, geram-se ondas concêntricas em torno do seu corpo. Mas quando o pato tem movimentos rápidos, essas ondas transformam-se num rasto perfeitamente triangular. A velocidade a partir da qual isso acontece é a velocidade do som da água.” Uma prova de que tudo influencia a figura é este resultado simétrico, só possível pela simetria da base. Por norma, placas simétricas resultam em padrões simétricos, porque as zonas de vibração e as zonas nodais, ou seja, sem vibração, serão, também elas, simétricas. Quando há assimetria na placa, por norma o resultado será, também ele, mais caótico. É por isso que as figuras de Chladni têm uma aplicação prática na verificação de qualidade de um instrumento, uma vez que o objeto influencia, claro, a acústica e a sua sonoridade – se a espessura de, por exemplo, a madeira de um violino, a sua forma, ou a sua disposicão, forem simétricas, também o serão os padrões de Chladni. Interessante, não? Afinal, este texto até tinha tudo para se fazer ouvir, ainda que o suporte visual lhe pudesse falhar. Ainda assim, praticabilidade à parte, ver a formação destes prints tem qualquer coisa de obra de arte. Essa, que está em toda a parte e aqui só encontra mais um argumento.
Sim, é um cliché dizer que a arte está em toda a parte. Mas é também uma verdade, se este texto nos ensinou alguma coisa. Uma das suas manifestações, ligada a este tema do som e a sua relação com os materiais, é a coleção de peças, instalações e espetáculos Dança de Materiais Inertes do músico Simão Costa em parceria com a coreógrafa Marta Cerqueira: “Neste projeto há uma exploração muito específica do potencial cinético do som”, defende Simão. “O som é usado para fazer dançar partículas ou objetos. Eu e a Marta coreografamos objetos em contextos em que o som é o motor que dá ânimo. Põe as coisas em movimento. Muitas vezes (mesmo muitas) os materiais, mesmo que inertes, parecem estar vivos só porque estão a ser mobilizados pelo som. Isto faz-nos refletir sobre os limites da biologia e da geologia, do que está vivo e do que não está; com isso procuramos analisar alguns dos ‘tiques nervosos’ de um certo antropocentrismo congénito do ser humano, e provocar algum alívio desses tiques em direção a outras formas de lidar com a nossa envolvente, esteja ela viva ou morta, seja ela humana, animal ou vegetal.” Válido, muito válido fazer aqui o paralelismo entre a vibração do som e o ser humano: “Para além dos tímpanos, a nossa pele é elástica, absorve as ondas sonoras e transmite-as ao cérebro através dos terminais nervosos. Por isso é que um surdo consegue dançar. A comunicação sonora é um dos meios mais importantes na comunicação entre os seres vivos”, corrobora Rui Dilão. Tudo verdade e tudo muito bonito, mas o que soa melhor em tudo isto é poder passar a dizer “o barulho das luzes” e conseguir argumentar quando alguém se rir da expressão. Além de que as figuras de Chladni e a sua demonstração são um ótimo desbloqueador de conversa quando o silêncio se instala.