If Music Be The Food of Love, Play On.
O título deste texto não é roubado a uma canção. É “pedido emprestado” ao desabafo de Orsino, Duke of Illyria, um dos protagonistas da peça Twelfth Night, de William Shakespeare. O título deste texto não é uma canção, mas podia ser, espero que um dia seja
Notas sobre esta forma de arte que se faz de notas.
Nicolas Jaar tem uma canção — uma gravação raríssima, a que só se chega por conhecimento de causa, ou seja, escrevendo o seu nome no YouTube, a única plataforma onde está disponível — chamada Encore, em que o músico e compositor chileno-americano se serve de uma frase de Marcel Duchamp, proferida num discurso de 1967, como sample, e pano de fundo, para aquela composição musical: “From the labyrinth beyond
time and space, seeks his way out to a clearing.” O tema, que passou ao lado da ultra-aplaudida carreira de Jaar, é uma pérola para quem aprecia combinações estéticas invulgares, das que juntam palavras, o som das ondas do mar, e o maravilhoso piano do artista que o público conhece por obras-primas como o álbum Space Is Only Noite (2011). Encore, contudo, é outra bitola. Encore é um alien perdido no ciberespaço, um assombro de sensações no meio das luzes de uma discoteca, um “amo-te” no meio da escuridão, um “para sempre” no meio de uma estrada deserta. Encore é música em estado puro. Como é Nessun Dorma, a ária do último ato de Turandot (1926), de Giacomo Puccini, ou Mad Rush (1979), de Philip Glass, e que ouço
on repeat quando preciso de me concentrar, leia-se, escrever, o som no limite do razoável. O que têm todas elas em comum? Despertam em mim algo que nunca saberei traduzir em palavras. Tolstói terá dito que “a música é a abreviatura da emoção”. No seu livro Sonata
a Kreutzer (1889), escreveu: “A música obriga a esquecermo-nos da nossa verdadeira personalidade, transporta-nos a um estado que não é o nosso. Sob a influência da música temos a impressão de que sentimos o que não sentimos; que compreendemos o que na realidade não compreendemos; que podemos o que não podemos. É como o bocejo ou o riso. Não temos sono mas bocejamos quando vimos alguém bocejar. Não temos vontade de rir, mas rimo-nos, ouvindo rir. A música transporta-nos, de surpresa e imediatamente, ao estado de alma em que se encontrava o artista no momento da criação, confundimos a nossa alma com a dele e passamos de um estado a outro sem saber porque o fazemos.” É esse o poder da música.
mousike,
congénere e um a A expressão segundo culpa de voz é grega, dos texto. afiada assenta-lhe gregos Dos que, gregos — em como cuja a palavra tradução e uma de Fran luva, “música” literal Lebowitz, o que — é tem a “a por série arte a origem si escritora só documental das dava musas”, na americana para sua Pretend It’s a City realizada fenómeno por da Martin cultura Scorsese — nos para fez a Netflix repensar que a a música transformou enquanto num pop forma de arte por excelência. No episódio número dois, intitulado
Cultural Affairs, Lebowitz discorre sobre o impacto que uma canção, ou a memória dela, pode ter nas pessoas. “Vemos como as pessoas estão felizes e gratas por esta música. Especialmente música popular da juventude delas. Não importa se a música popular da juventude era o Frank Sinatra ou o Billy Joel ou o David Bowie ou o Q-Tip. Isto é: ‘Não te lembras do nosso primeiro encontro? Estava a dar isto.’ Isto é muito importante para as pessoas. E adoram a pessoa que lhes deu isto. E é tudo um mistério para eles. Ninguém é tão adorado como os músicos. Nenhum… Os músicos são adorados pelas pessoas. Mesmo adorados, porque lhes dão a capacidade de expressar as suas emoções e memórias. Não há outra forma de arte que faça isso. Acho mesmo que os músicos… Provavelmente músicos e cozinheiros são responsáveis pelo maior prazer na vida humana. E a música Motown, que era popular na minha adolescência, sempre que a ouço, fico imediatamente mais feliz. Não há dúvida de que me faz mais feliz. Não posso dizer isso de quase nada. Pronto. Mas será que acho o Motown a melhor música de sempre? Não acho. Mas se me perguntarem: ‘Assim que ouves isto, sentes-te mais feliz?’ Sim. Esse é um efeito muito importante nos seres humanos. A música deixa as pessoas mais felizes e não as prejudica. A maioria das coisas que nos faz sentir melhor são prejudiciais, logo, é invulgar. É como uma droga que não te mata.” Tal como partilhou um utilizador do Quora, a música é a nossa tentativa de atingir a imortalidade, de tocar algo que desconhecemos, de ultrapassar a nossa experiência humana: “Mais do que qualquer outra forma de arte, ela assemelha-se à morte; cada nota é baseada na morte da anterior e, uma vez que uma apresentação musical for concluída, ela acabou, existindo apenas no espaço e tempo em que foi criada. A gravação é uma tentativa da humanidade em capturar a natureza intangível da música.”
Compositor, pintor, poeta, dramaturgo, mestre espiritual e reformador social, Rabindranath Tagore (1861-1941) foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1913. Enquanto escritor “introduziu novas formas de prosa e verso na literatura bengali”, alerta o site da Assírio & Alvim, que edita parte da sua obra em Portugal, mas não é tanto a sua lírica que aqui nos interessa. É, antes, parte de um ensaio que consta da obra Sadhana — The Realisation of Life (1913),
Hum. Não concordo, não... Aliás, discordo profundamente.” É assim, direta e precisa, que chega a resposta de Paulo Furtado, mais conhecido como The Legendary Tigerman. O artista, que há muito extravasou as fronteiras da música para se deixar seduzir por outras paragens, seja a realização ou a fotografia, assume necessitar de uma série de outros estímulos para chegar ao produto final — qualquer que seja. E esse produto final, qualquer que seja, será sempre arte, sem uma categoria ou um rótulo. “Eu chego à música pelo desenho, pela pintura, pela fotografia, e para mim está tudo de algum modo relacionado, é tudo fruto de uma faísca qualquer indefinida. Os instintos que uso para escrever uma canção ou realizar um filme ou escrever uma música para uma peça de teatro, vêm dos mesmo sítios, o que pode mudar é a perspectiva com que utilizo esses mesmos instintos, se estou ao serviço da minha faísca ou se, por outro lado, estou a adicionar lenha a outros fogos. Até porque creio que o que torna um artista único é a forma como vê e apreende o mundo, e isso depois pode ser aplicado em qualquer arte, e será sempre particular. Como fruidor de música, arte ou cinema, sinto que também posso ser tocado de uma forma profunda por algo que venha de qualquer arte, posso sentir-me tão tocado por uma escultura do Rui Chafes como pela voz do Johnny Cash ou por um filme do Jim Jarmusch. Em conclusão, não creio que haja uma arte mais pura do que as outras e, se por acaso houvesse, não creio que fosse muito interessante. A pureza geralmente nãouma espécie de itinerário místico que percorre várias conferências de Tagore sobre temas como o amor, a beleza, o infinito… e a música. “A música é a mais pura forma de arte e, portanto, a expressão mais direta da beleza, com uma forma e um espírito que são [apenas] um, simples e menos sobrecarregados de qualquer coisa exterior. Parece que sentimos que a manifestação do infinito nas formas finitas da criação é a própria música, silenciosa e visível. O céu noturno, repetindo incansavelmente as constelações estreladas, parece uma criança maravilhada com o mistério da sua primeira afirmação, balbuciando a mesma palavra continuamente e ouvindo-a com alegria incessante. […] O cantor tem tudo dentro de si. As notas saem da sua própria vida. Elas não são materiais recolhidos de fora. A sua ideia e a sua expressão são irmão e irmã; muitas vezes eles nascem como gémeos. Na música, o coração revela-se imediatamente; não sofre da barreira de nenhum material estranho. Portanto, embora a música tenha de esperar pela sua plenitude como qualquer outra arte, ainda assim, a cada passo, ela dá beleza ao todo. Como material de expressão, mesmo as palavras são barreiras, pois o seu significado deve ser interpretado ou pensado. Mas a música nunca depende de nenhum significado óbvio; ela expressa o que nenhuma palavra pode revelar.” Pegámos nesta ideia e perguntámos a dois músicos se, afinal, é possível afirmar que a música é a forma de arte por excelência. As opiniões dividem-se. é muito útil na arte.” Há quem, como Lebowitz, defenda que, além de ser a forma de arte por excelência, a música tem um plus — faz as pessoas felizes, de forma espontânea; porque lhes provoca emoções, quase imediatamente, ao primeiro acorde, ao primeiro som; leva-as para outros sítios, deixa-as sonhar, faz com que acreditem no impossível, permite que o universo se estenda para lá do visível, do aqui e do agora, e que se torne numa coisa gigante e “só nossa” — nossa, e do(s) autor(es) de uma determinada canção. Como é que um músico encara este (eventual) poder da música? “Mais uma vez não concordo, já senti tudo isso com todas as formas de arte... Para mim, o cinema ou o teatro, por exemplo, podem e devem englobar em si todas as outras artes, e usá-las a seu bel-prazer. Quando se compõe música para teatro, por exemplo, até mais do que no cinema, tudo contamina tudo. Se a música estiver presente desde o primeiro momento, um gesto de um ator, um acorde, uma imagem, uma inflexão de voz, a cenografia, a luz ou a ausência dela, tudo isso vai traçando um caminho comum e único. Talvez a música possa ser mais imediata no modo como provoca emoções, até aí vou, mas talvez não consiga criar emoções tão complexas como o cinema ou o teatro ou as artes plásticas.”
João Hasselberg, baixista, compositor, formado em música pelo Rhythmic Music Conservatory, em Copenhaga, e pelo Conservatorium van Amsterdam, em Amesterdão, tem uma opinião diferente. Não totalmente oposta, apenas diferente. Talvez porque João, à semelhança de Paulo, também se tenha habituado a procurar inspiração na beleza de (outras) coisas que estão além das canções — a fotografia,
um hobby de criança, é algo que lhe ocupa cada vez mais tempo. Por isso, como exigir-lhe que seja capaz de sublimar uma forma de arte em detrimento de outra? “A música é a única manifestação considerada artística que não tem uma raiz figurativa. A pintura tem o seu início e tradição na representação de algo do mundo visível, ou pelo menos numa conjugação de elementos desse mundo (das gravuras rupestres ao hiper-realismo holandês do século XX). O mesmo se passa com a escultura, o cinema, a literatura. […] Na música nunca houve esta vertente figurativa (uma música que mimetiza o barulho de rãs num charco, por exemplo, da mesma forma que nas artes plásticas se pintaria uma natureza morta). Não existindo essa tentativa de representar de forma literal o mundo visível, a música não tem que se alojar num ‘corpo hospedeiro' para se manifestar através dele. Porque na pintura não é o que está representado na natureza morta que nos interessa e nos move, mas sim uma coisa mais profunda e inteligível que isso, que está contida nessa natureza morta como um parasita e que, através dela, se manifesta. Isto faz com que a música não tenha que sofrer estes processos de ‘tradução’ de um meio para o outro e venha, da forma mais directa possível, sem [um] corpo hospedeiro que nos faria ter de a ‘desvendar’ de dentro dele.” Mas não é assim tão simples explicar o efeito da música enquanto arte. Hasselberg clarifica: “Claro que há outras questões envolvidas no meio de tudo isto. Considerar um som (ou um conjunto deles) ‘música’ é, em si, um exercício. Existe uma certa canonicidade musical (ou aquilo a que podemos chamar de ‘equilíbrio harmonioso’), que mais não é do que princípios de física e acústica. Os acordes e as escalas são construídos da forma que são por existir uma série definida de harmónicos dentro de qualquer nota. Muita da música que o John Cage escreveu, seria considerada apenas ruído por uma pessoa menos ‘disponível’. […] De um modo geral, a música tem a capacidade de escapar ao visível, ao racional, ao comunicável através de signos (como a linguagem no caso da literatura), etc. Isto não significa que na realidade seja assim que a percebemos... temos uma carga sócio-cultural gigante e muito difícil de isolar, de eventualmente fazermos bypass para ter disponibilidade de ouvir uma obra sem preconceitos.” Cai por terra o nosso argumento? Nim. “Quanto à música ter esse poder instantâneo de nos fazer sonhar, andar para trás no tempo etc.… A memória auditiva, tal como a do olfato, é muito muito poderosa. Uma música ouvida uma só uma vez, no momento emocional certo, fica para sempre agarrada a ele. […] Se isto faz dela a mais pura forma de beleza, não sei, mas por não precisar de ser um parasita do visível, coloca-a à parte de todas as outras ‘formas de arte’.”
Ecoloca. Tinha nove anos quando os Guns N’ Roses lançaram
Use Your Illusion I. À boleia dos meus primos mais velhos, que ouviam música cool (na época a palavra seria outra, com toda a certeza), juntei uns trocos e comprei a cassete daquele que foi o terceiro álbum de estúdio da banda norte-americana. Nota de rodapé: o gira-discos dos meus pais estava-me vedado, por ser demasiado precioso, as aparelhagens, leia-se, aparelhos que permitiam ler CD’s, ainda não existiam a rodos, e tudo o que eu tinha, além de um walkman amarelo que me acompanhava para todo o lado, era um rádio branco, francamente feio, que me permitia ouvir K7’s. Foi assim que chegou até mim November Rain, a canção que ocultei (propositadamente) de outro texto desta edição, com a
intenção de a trazer para aqui, onde ela mais ordena. Porque não é possível explicar, de forma racional, como é que uma criança reage de forma tão intensa a um tema que, supostamente, está a anos-luz do seu entendimento e da sua curta experiência de vida. Algures naqueles oito minutos e cinquenta e sete segundos — e escrevo-o assim, por extenso, porque era, e ainda é, algo impensável para um
single — Axl Rose dirá: “And when your fears subside / And shadows still remain (oh yeah) / I know that you can love me when there's no one left to
blame /So never mind the darkness, we still can find a way.” Ora o que é que eu, um piolho de nove anos, sabia sobre isto? Nada. E o que é que eu, um piolho de nove anos, senti ao ouvir isto? Tudo. Há três décadas que November Rain toca na minha playlist virtual — e aqui o termo é empregue de forma literal — sem nunca acusar cansaço. Em 2014, prestei-lhe a devida homenagem naquele mural onde vão parar as nossas confissões públicas, o Facebook: “Melhor tentativa de explicar o (des)amor de sempre. Melhor alegoria à paixão e às possibilidades infinitas de sempre. Melhor solo de guitarra de sempre. Melhor início de música de sempre. Melhor teledisco de sempre. Melhor ligação entre o significado de uma música e o seu título de sempre. Melhor música para unir apreciadores de ópera, ouvintes de pop-rock ligeiro, viciados em trance e geeks adeptos de folk e/ou
indie de sempre. Melhor música de sempre. E, se não for, está muito perto.” E se isto não for uma forma de arte maior do que qualquer outra, está muito perto.
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