VOGUE (Portugal)

Blurred lines

- Por Carolina Queirós. Artwork de João Oliveira.

A Música e a Moda partilham muito mais do que a mesma letra inicial. Partilham a esmagadora leveza da sua multitude de possibilid­ades e o gosto pelo desafio da volatilida­de do tempo. Como em qualquer boa história de amor, as linhas dos seus dois mundos esbateram-se até ao expoente do indissociá­vel, num affair que se escreve sem princípio nem fim – numa pauta de cinco linhas, claro.

Começo este artigo com um preâmbulo, uma espécie de confissão: nunca antes estive tão entusiasma­da por escrever um texto. Apercebi-me rapidament­e que tentar discorrer sobre este tema representa sensivelme­nte o mesmo desafio de tentar discorrer sobre arte, cinema ou qualquer outra área na qual a criativida­de impera lado a lado com a viabilidad­e de toda uma indústria que lhe está associada. O infinito de possibilid­ades é tão avassalado­r, que não pude evitar o confronto com a inevitável questão: “Mas por onde é que devo começar?!”, que consequent­emente me conduziu ao típico bloqueio, ao impasse de quem não tem ainda uma resposta. Ironicamen­te, ao fim de um bom par de horas, e no limite de me convencer de que talvez tivesse sido demasiado ambiciosa, de que talvez a responsabi­lidade que em mim depositei de fazer jus a um dos tópicos que mais estimo fosse incompatív­el com a minha capacidade de o expressar, apercebi-me de que estava a ouvir (e a trautear) Puttin’ on the Ritz, de Taco. “Different types of who wear a day coat / Pants with stripes / And cutaway coat, perfect fits / Puttin’ on the Ritz”. Com certeza haverá leitores que não precisarão de explicaçõe­s adicionais para compreende­r a relevância desta referência mas, para os restantes, permitam-me que clarifique. Este hit, lançado em 1982, serviu de banda sonora para o desfile

Métiers d’Art, da Chanel, intitulado Paris Cosmopolit­e, apresentad­o em 2016. Por entre as mesas da sala de jantar do Ritz, modelos e embaixador­es da marca, como Cara Delevingne, Pharrell Williams e Lily-Rose Depp, rodopiavam no meio dos convidados, sentados como que preparados para desfrutar de uma requintada refeição com um side de Alta-Costura. Todos os elementos estavam em conformida­de com a visão de Karl Lagerfeld, que nos transporta­va para uma dimensão de requinte cosmopolit­a, em que o verbo “rodopiar” foi aplicado de forma literal: as modelos dançavam, rodavam de braço dado com figurinos vestidos de empregados de mesa, cantavam ao som da interpreta­ção pop da composição original de Irving Berlin, feita em 1927. Podia elencar uma mão cheia de razões pelas quais este desfile é um favorito pessoal, mas talvez a mais relevante seja a celebração das linhas difusas que compõem a verdadeira elevação da Moda como arte, a explosão de endorfinas conseguida apenas pelo poder da música. O êxtase voltou – e comecei a escrever.

Ironicamen­te ou não, ter a Chanel como exemplo primordial e veículo de inspiração para o começo deste texto não podia ser mais indicado. Esta maison tem uma das mais longas e ricas histórias de relação não só com a música, mas também com o bailado, com as belas artes, e todos os seus MVP (leia-se, most valuable players), como era o caso de Picasso, Stravinsky, Diaghilev, para além dos nomes que compunham a troupe dos Ballet Russes. À época, a inovadora companhia de bailado, chegada a Paris em 1930, propunha, fundamenta­lmente, uma comunhão transversa­l entre o movimento, a dança, a música, a moda, a pintura e a escultura. Coco, l'irrégulièr­e, tinha um lugar à mesa, partilhand­o-a com alguns dos mais influentes nomes do século XX, e carregava consigo a responsabi­lidade de se assegurar que a Moda era respeitada como igual a qualquer outra forma de arte – e assim o fez. A partir deste ponto, as opiniões divergem no

AS REFERÊNCIA­S QUE SE PROVAM COMO MAIS RELEVANTES, E QUE INSPIRAM VERDADEIRA­MENTE O PROCESSO CRIATIVO, SÃO AS QUE APRESENTAM UM CUNHO PESSOAL, UMA AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE EM TODA A PLENITUDE DA SUA EXPRESSÃO. “QUEM INFLUENCIA QUEM?” DEIXA DE SER A QUESTÃO, PORQUE FALAMOS DE MUNDOS PERMEÁVEIS

AOS TEMPOS E A SI PRÓPRIOS, QUE SIMULTANEA­MENTE ABSORVEM E ESPELHAM TUDO O QUE VIVEMOS.

que toca a dois temas fundamenta­is: se Gabrielle Chanel terá levado a ideia deste affair demasiado a sério, dado que o seu caso com o compositor russo, Stravinsky, foi de teor mais literal – e qual terá sido a casa de partida, de uma perspetiva histórica; por outro lado, qual o evento que mais contribuiu para o estabeleci­mento desta relação entre a música e a moda, que até hoje se mantém. Sobre este último ponto (claro está), pedi a opinião a Benjamin Simmenauer, Professor no Institut Français de la Mode, em Paris. “Há duas respostas possíveis. A mais ‘óbvia’ será mencionar o momento em que a música – e a pop, em particular – se tornaram num show-business, envolvendo uma parcela muito visual da performanc­e, como é o caso da dança e da própria persona das estrelas musicais na altura. Bob Dylan, The Rolling Stones, The Beatles, e tantos outros exemplos, especialme­nte com influência­s rock, foram pioneiros nesta interseção. Esta é a resposta em que a maioria das pessoas pensaria. No entanto, há uma outra – mais interessan­te – que envolve um prelúdio desta história. Em Alemão, a expressão 'Gesamtkuns­twerk,' apesar de não ter tradução direta, é uma ideia provenient­e do século XIX que significa obra de arte integral, plena, total.

O artista mais célebre a empregar esta definição foi Richard Wagner, o compositor de ópera, que pretendia fundir todas as formas possíveis de arte, combinando-as para criar uma espécie de universo paralelo em que todos os sentidos humanos seriam estimulado­s simultanea­mente.

Wagner escrevia as histórias que seriam interpreta­das, compunha a música que as acompanhav­a e estendia a sua interpreta­ção para o cenário, o que as personagen­s vestiam, e até a decoração da própria casa de espetáculo­s. Há um sentido de origem muito forte nesta incorporaç­ão total da arte como uma experiênci­a de performanc­e. Fundamenta­lmente, a Moda quer ser como uma ópera de Wagner.”

A vantagem de introduzir alguma perspetiva histórica é poder encontrar (e perceber) com mais facilidade as referência­s que hoje nos rodeiam. O fascínio de certos

designers com determinad­os artistas, as relações de longa data que se estabelece­m entre as duas indústrias, a forma como todos partem de uma mesma vontade intrínseca que sempre uniu os universos da moda e da música: a de ir ao encontro de uma plenitude da experiênci­a a todos os níveis – do físico aos ecrãs, dos desfiles tradiciona­is às curtas-metragens, dos concertos aos Instagram lives. “Penso que o que maisons como a Saint Laurent e a Dior pretendem hoje é apresentar uma proposta em que o resultado final da comunhão artística supere a simples soma das partes. O investimen­to que essa transcendê­ncia implica, por outro lado, é o maior fator de distinção, e coloca aqueles com maior poder financeiro na vanguarda”, esclarece Benjamin Simmenauer. Ficam assim evidenciad­as as duas grandes componente­s desta equação: o compromiss­o com a elevação da arte, e o sucesso comercial. Numa indústria que move milhões de euros por ano, falar de processo artístico implica obrigatori­amente uma consideraç­ão da sua viabilidad­e, do quão “fazíveis” são os sonhos da equipa criativa. Assim levanta-se outra pergunta, em Moda, aquando do processo de criação – esse que tem de ter em conta a sua própria subsistênc­ia – que é o seguinte: qual é o papel real da música? Será apenas de servir como banda sonora, como acessório de um desfile? Ou será ela parte integrante, fundamenta­l, indispensá­vel na conceção de uma ideia? A resposta, como em quase todas as perguntas que têm por base a apreciação artística, foi algo como “depende”, mas Benjamin Simmenauer elabora: “Depende da marca, depende do diretor criativo. Alguém que posso tomar como exemplo é Hedi Slimane. Numa entrevista muito antiga – quando

Slimane ainda dava entrevista­s [risos] –, o designer mencionou que o ponto de partida para as suas coleções era a música. O que este procurava era uma espécie de ritmo, algo particular e especial que marcasse o compasso para a criação, que definisse uma silhueta e lhe desse uma ideia de quem seriam as pessoas que usariam a sua roupa, até da sua maneira de andar e da aura que as rodeava. O mesmo processo estendia-se para os desfiles, qual réplica, em que a música está presente desde o primeiro instante. Acredito que tenha havido um momento em que a escolha da música certa para a apresentaç­ão das suas coleções era o aspeto mais importante e decisivo para o designer.”

Quer seja como acessório ou peça fundamenta­l, não está aberto ao debate o dogma, “a Música é parte integrante do que significa transmitir a mensagem da Moda” – desafio o leitor a tentar encontrar um desfile que hoje aconteça sem a presença de uma banda sonora, isto desde o início do século XX, em que fomos presentead­os com os primeiros desfiles no formato que hoje conhecemos –, algo que transcende o mundo tangível e material, um veículo para o sonho que vemos caminhar na passerelle. Talvez seja essa a razão pela qual se torna também exaustivam­ente difícil encontrar uma marca que não tenha ainda iniciado algum tipo de colaboraçã­o com cantores, bandas, DJ's ou rappers. Nicky Minaj é a última a lançar uma coleção cápsula com a marca Fendi para o verão de 2021, mas em 2009, duas das mais influentes personalid­ades do nosso tempo também estagiaram na casa italiana: Virgil Abloh e Kanye West. Nesse momento, o epítome de possibilid­ades que a interceção entre moda e música tem para oferecer materializ­ou-se no que hoje interpreta­mos como o começo de uma nova era digital regida por novas formas de mover e influencia­r as massas. Neste cruzamento de exploração artística, two stars were born, lado a lado com tantos outros casos de atração fatal entre os dois universos. Gucci e Harry Styles, Celine e Lisa (do grupo Blackpink), Chanel e Pharrell Williams, Balmain e Kanye West, J.W. Anderson e A$AP Rocky... O arsenal de colaboraçõ­es é nada menos do que infinito, pelo que não podemos evitar questionar: Qual a verdadeira motivação para esta constante envolvênci­a? Estará o affair a evoluir para um compromiss­o consumado, resoluto, indissociá­vel? Estaremos nós, no fim de contas, a falar de um casamento? “Em termos de interesse do público em geral, é importante pensar como a conexão com um artista é polivalent­e, e tantas vezes envolve não apenas a sua carreira musical, mas também a sua relação com a Moda. Não me parece de todo uma questão de oportunism­o comercial, mas mais uma celebração mútua e constante dessas formas de expressão. O sucesso deste género de relações, numa fase posterior, demonstra como a influência entre os dois universos se sobrepõe, especialme­nte noque toca à celebridad­e dos artistas. O facto de um determinad­o músico ou performer se ‘encaixar’ com a narrativa de uma marca permite que haja alguma margem para evolução da sua própria identidade, desde que o seu propósito se mantenha orgânico e genuíno apesar da fama; há muitos exemplos, desde músicos que compõem especialme­nte para certos desfiles, até designers que procuram colaboraçõ­es que combinem uma mensagem política desafiante e provocador­a”, sublinha Benjamin Simmenauer.

Não há uma resposta universal e, num mundo sem certezas, o que arriscaría­mos apontar como máxima seria a fidelidade que ambos os lados insistem em demostrar um pelo outro, qual serenata a céu aberto, como um caso de amor tórrido que se assume perante tudo e todos. “Um dos aspetos mais promissore­s desta relação é o meio de comunicaçã­o mútuo que se estabelece entre ambas as indústrias. No futuro, seria promissor assistir, por exemplo, ao reforçar do papel da Moda em trazer visibilida­de a novos artistas que não foram ainda descoberto­s pela triagem algorítmic­a que rege o mundo da Música hoje em dia. Assistir a mais um desfile com a mesma playlist em rotação, apenas porque o diretor criativo se contentou com a música que descobriu há 30 anos atrás, é no máximo cansativo, e no mínimo redutor”, remata Benjamin. As referência­s que se provam como mais relevantes, e que inspiram verdadeira­mente o processo criativo, são as que apresentam um cunho pessoal, uma afirmação de identidade em toda a plenitude da sua expressão. “Quem influencia quem?” deixa de ser a questão, porque falamos de mundos permeáveis aos tempos e a si próprios, que simultanea­mente absorvem e espelham tudo o que vivemos. David Bowie, Madonna, Freddie Mercury, Aretha Franklin, Prince, Bob Marley… Alexander McQueen, Azzedine Alaïa, Yves Saint Laurent, Karl Lagerfeld… Não há fórmulas para o sucesso, mas consideran­do os exemplos supracitad­os, percebemos que estes não se encontram simplesmen­te “bem posicionad­os” entre indústrias, nem o seu legado se resume apenas aos incontávei­s sucessos que colecionar­am nas suas carreiras. Aquilo que os reúne no hall of fame da nossa memória pode bem ser a chave para a imortalida­de deste affair: eles são Música, e eles são Moda. Incondicio­nalmente. Indissocia­velmente.

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