Blurred lines
A Música e a Moda partilham muito mais do que a mesma letra inicial. Partilham a esmagadora leveza da sua multitude de possibilidades e o gosto pelo desafio da volatilidade do tempo. Como em qualquer boa história de amor, as linhas dos seus dois mundos esbateram-se até ao expoente do indissociável, num affair que se escreve sem princípio nem fim – numa pauta de cinco linhas, claro.
Começo este artigo com um preâmbulo, uma espécie de confissão: nunca antes estive tão entusiasmada por escrever um texto. Apercebi-me rapidamente que tentar discorrer sobre este tema representa sensivelmente o mesmo desafio de tentar discorrer sobre arte, cinema ou qualquer outra área na qual a criatividade impera lado a lado com a viabilidade de toda uma indústria que lhe está associada. O infinito de possibilidades é tão avassalador, que não pude evitar o confronto com a inevitável questão: “Mas por onde é que devo começar?!”, que consequentemente me conduziu ao típico bloqueio, ao impasse de quem não tem ainda uma resposta. Ironicamente, ao fim de um bom par de horas, e no limite de me convencer de que talvez tivesse sido demasiado ambiciosa, de que talvez a responsabilidade que em mim depositei de fazer jus a um dos tópicos que mais estimo fosse incompatível com a minha capacidade de o expressar, apercebi-me de que estava a ouvir (e a trautear) Puttin’ on the Ritz, de Taco. “Different types of who wear a day coat / Pants with stripes / And cutaway coat, perfect fits / Puttin’ on the Ritz”. Com certeza haverá leitores que não precisarão de explicações adicionais para compreender a relevância desta referência mas, para os restantes, permitam-me que clarifique. Este hit, lançado em 1982, serviu de banda sonora para o desfile
Métiers d’Art, da Chanel, intitulado Paris Cosmopolite, apresentado em 2016. Por entre as mesas da sala de jantar do Ritz, modelos e embaixadores da marca, como Cara Delevingne, Pharrell Williams e Lily-Rose Depp, rodopiavam no meio dos convidados, sentados como que preparados para desfrutar de uma requintada refeição com um side de Alta-Costura. Todos os elementos estavam em conformidade com a visão de Karl Lagerfeld, que nos transportava para uma dimensão de requinte cosmopolita, em que o verbo “rodopiar” foi aplicado de forma literal: as modelos dançavam, rodavam de braço dado com figurinos vestidos de empregados de mesa, cantavam ao som da interpretação pop da composição original de Irving Berlin, feita em 1927. Podia elencar uma mão cheia de razões pelas quais este desfile é um favorito pessoal, mas talvez a mais relevante seja a celebração das linhas difusas que compõem a verdadeira elevação da Moda como arte, a explosão de endorfinas conseguida apenas pelo poder da música. O êxtase voltou – e comecei a escrever.
Ironicamente ou não, ter a Chanel como exemplo primordial e veículo de inspiração para o começo deste texto não podia ser mais indicado. Esta maison tem uma das mais longas e ricas histórias de relação não só com a música, mas também com o bailado, com as belas artes, e todos os seus MVP (leia-se, most valuable players), como era o caso de Picasso, Stravinsky, Diaghilev, para além dos nomes que compunham a troupe dos Ballet Russes. À época, a inovadora companhia de bailado, chegada a Paris em 1930, propunha, fundamentalmente, uma comunhão transversal entre o movimento, a dança, a música, a moda, a pintura e a escultura. Coco, l'irrégulière, tinha um lugar à mesa, partilhando-a com alguns dos mais influentes nomes do século XX, e carregava consigo a responsabilidade de se assegurar que a Moda era respeitada como igual a qualquer outra forma de arte – e assim o fez. A partir deste ponto, as opiniões divergem no
AS REFERÊNCIAS QUE SE PROVAM COMO MAIS RELEVANTES, E QUE INSPIRAM VERDADEIRAMENTE O PROCESSO CRIATIVO, SÃO AS QUE APRESENTAM UM CUNHO PESSOAL, UMA AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE EM TODA A PLENITUDE DA SUA EXPRESSÃO. “QUEM INFLUENCIA QUEM?” DEIXA DE SER A QUESTÃO, PORQUE FALAMOS DE MUNDOS PERMEÁVEIS
AOS TEMPOS E A SI PRÓPRIOS, QUE SIMULTANEAMENTE ABSORVEM E ESPELHAM TUDO O QUE VIVEMOS.
que toca a dois temas fundamentais: se Gabrielle Chanel terá levado a ideia deste affair demasiado a sério, dado que o seu caso com o compositor russo, Stravinsky, foi de teor mais literal – e qual terá sido a casa de partida, de uma perspetiva histórica; por outro lado, qual o evento que mais contribuiu para o estabelecimento desta relação entre a música e a moda, que até hoje se mantém. Sobre este último ponto (claro está), pedi a opinião a Benjamin Simmenauer, Professor no Institut Français de la Mode, em Paris. “Há duas respostas possíveis. A mais ‘óbvia’ será mencionar o momento em que a música – e a pop, em particular – se tornaram num show-business, envolvendo uma parcela muito visual da performance, como é o caso da dança e da própria persona das estrelas musicais na altura. Bob Dylan, The Rolling Stones, The Beatles, e tantos outros exemplos, especialmente com influências rock, foram pioneiros nesta interseção. Esta é a resposta em que a maioria das pessoas pensaria. No entanto, há uma outra – mais interessante – que envolve um prelúdio desta história. Em Alemão, a expressão 'Gesamtkunstwerk,' apesar de não ter tradução direta, é uma ideia proveniente do século XIX que significa obra de arte integral, plena, total.
O artista mais célebre a empregar esta definição foi Richard Wagner, o compositor de ópera, que pretendia fundir todas as formas possíveis de arte, combinando-as para criar uma espécie de universo paralelo em que todos os sentidos humanos seriam estimulados simultaneamente.
Wagner escrevia as histórias que seriam interpretadas, compunha a música que as acompanhava e estendia a sua interpretação para o cenário, o que as personagens vestiam, e até a decoração da própria casa de espetáculos. Há um sentido de origem muito forte nesta incorporação total da arte como uma experiência de performance. Fundamentalmente, a Moda quer ser como uma ópera de Wagner.”
A vantagem de introduzir alguma perspetiva histórica é poder encontrar (e perceber) com mais facilidade as referências que hoje nos rodeiam. O fascínio de certos
designers com determinados artistas, as relações de longa data que se estabelecem entre as duas indústrias, a forma como todos partem de uma mesma vontade intrínseca que sempre uniu os universos da moda e da música: a de ir ao encontro de uma plenitude da experiência a todos os níveis – do físico aos ecrãs, dos desfiles tradicionais às curtas-metragens, dos concertos aos Instagram lives. “Penso que o que maisons como a Saint Laurent e a Dior pretendem hoje é apresentar uma proposta em que o resultado final da comunhão artística supere a simples soma das partes. O investimento que essa transcendência implica, por outro lado, é o maior fator de distinção, e coloca aqueles com maior poder financeiro na vanguarda”, esclarece Benjamin Simmenauer. Ficam assim evidenciadas as duas grandes componentes desta equação: o compromisso com a elevação da arte, e o sucesso comercial. Numa indústria que move milhões de euros por ano, falar de processo artístico implica obrigatoriamente uma consideração da sua viabilidade, do quão “fazíveis” são os sonhos da equipa criativa. Assim levanta-se outra pergunta, em Moda, aquando do processo de criação – esse que tem de ter em conta a sua própria subsistência – que é o seguinte: qual é o papel real da música? Será apenas de servir como banda sonora, como acessório de um desfile? Ou será ela parte integrante, fundamental, indispensável na conceção de uma ideia? A resposta, como em quase todas as perguntas que têm por base a apreciação artística, foi algo como “depende”, mas Benjamin Simmenauer elabora: “Depende da marca, depende do diretor criativo. Alguém que posso tomar como exemplo é Hedi Slimane. Numa entrevista muito antiga – quando
Slimane ainda dava entrevistas [risos] –, o designer mencionou que o ponto de partida para as suas coleções era a música. O que este procurava era uma espécie de ritmo, algo particular e especial que marcasse o compasso para a criação, que definisse uma silhueta e lhe desse uma ideia de quem seriam as pessoas que usariam a sua roupa, até da sua maneira de andar e da aura que as rodeava. O mesmo processo estendia-se para os desfiles, qual réplica, em que a música está presente desde o primeiro instante. Acredito que tenha havido um momento em que a escolha da música certa para a apresentação das suas coleções era o aspeto mais importante e decisivo para o designer.”
Quer seja como acessório ou peça fundamental, não está aberto ao debate o dogma, “a Música é parte integrante do que significa transmitir a mensagem da Moda” – desafio o leitor a tentar encontrar um desfile que hoje aconteça sem a presença de uma banda sonora, isto desde o início do século XX, em que fomos presenteados com os primeiros desfiles no formato que hoje conhecemos –, algo que transcende o mundo tangível e material, um veículo para o sonho que vemos caminhar na passerelle. Talvez seja essa a razão pela qual se torna também exaustivamente difícil encontrar uma marca que não tenha ainda iniciado algum tipo de colaboração com cantores, bandas, DJ's ou rappers. Nicky Minaj é a última a lançar uma coleção cápsula com a marca Fendi para o verão de 2021, mas em 2009, duas das mais influentes personalidades do nosso tempo também estagiaram na casa italiana: Virgil Abloh e Kanye West. Nesse momento, o epítome de possibilidades que a interceção entre moda e música tem para oferecer materializou-se no que hoje interpretamos como o começo de uma nova era digital regida por novas formas de mover e influenciar as massas. Neste cruzamento de exploração artística, two stars were born, lado a lado com tantos outros casos de atração fatal entre os dois universos. Gucci e Harry Styles, Celine e Lisa (do grupo Blackpink), Chanel e Pharrell Williams, Balmain e Kanye West, J.W. Anderson e A$AP Rocky... O arsenal de colaborações é nada menos do que infinito, pelo que não podemos evitar questionar: Qual a verdadeira motivação para esta constante envolvência? Estará o affair a evoluir para um compromisso consumado, resoluto, indissociável? Estaremos nós, no fim de contas, a falar de um casamento? “Em termos de interesse do público em geral, é importante pensar como a conexão com um artista é polivalente, e tantas vezes envolve não apenas a sua carreira musical, mas também a sua relação com a Moda. Não me parece de todo uma questão de oportunismo comercial, mas mais uma celebração mútua e constante dessas formas de expressão. O sucesso deste género de relações, numa fase posterior, demonstra como a influência entre os dois universos se sobrepõe, especialmente noque toca à celebridade dos artistas. O facto de um determinado músico ou performer se ‘encaixar’ com a narrativa de uma marca permite que haja alguma margem para evolução da sua própria identidade, desde que o seu propósito se mantenha orgânico e genuíno apesar da fama; há muitos exemplos, desde músicos que compõem especialmente para certos desfiles, até designers que procuram colaborações que combinem uma mensagem política desafiante e provocadora”, sublinha Benjamin Simmenauer.
Não há uma resposta universal e, num mundo sem certezas, o que arriscaríamos apontar como máxima seria a fidelidade que ambos os lados insistem em demostrar um pelo outro, qual serenata a céu aberto, como um caso de amor tórrido que se assume perante tudo e todos. “Um dos aspetos mais promissores desta relação é o meio de comunicação mútuo que se estabelece entre ambas as indústrias. No futuro, seria promissor assistir, por exemplo, ao reforçar do papel da Moda em trazer visibilidade a novos artistas que não foram ainda descobertos pela triagem algorítmica que rege o mundo da Música hoje em dia. Assistir a mais um desfile com a mesma playlist em rotação, apenas porque o diretor criativo se contentou com a música que descobriu há 30 anos atrás, é no máximo cansativo, e no mínimo redutor”, remata Benjamin. As referências que se provam como mais relevantes, e que inspiram verdadeiramente o processo criativo, são as que apresentam um cunho pessoal, uma afirmação de identidade em toda a plenitude da sua expressão. “Quem influencia quem?” deixa de ser a questão, porque falamos de mundos permeáveis aos tempos e a si próprios, que simultaneamente absorvem e espelham tudo o que vivemos. David Bowie, Madonna, Freddie Mercury, Aretha Franklin, Prince, Bob Marley… Alexander McQueen, Azzedine Alaïa, Yves Saint Laurent, Karl Lagerfeld… Não há fórmulas para o sucesso, mas considerando os exemplos supracitados, percebemos que estes não se encontram simplesmente “bem posicionados” entre indústrias, nem o seu legado se resume apenas aos incontáveis sucessos que colecionaram nas suas carreiras. Aquilo que os reúne no hall of fame da nossa memória pode bem ser a chave para a imortalidade deste affair: eles são Música, e eles são Moda. Incondicionalmente. Indissociavelmente.