VOGUE (Portugal)

VESTE-ME COMO FOI

Fios e linhas substituem palavras. Na Moda, a memória é preservada silenciosa­mente entre as linhas de um casaco, entre as costuras de uma camisa.

- Por Pedro Vasconcelo­s. Artwork de Beatrice Oettinger.

Num domingo quente, a minha avó sentava-se num autocarro em direção à Praia das Maçãs. Os verões portuguese­s, infames pelo sol abrasador e calor sufocante, obrigavam-na a levantar-se cedo no seu único dia de folga para se juntar às suas irmãs. A travessia, em transporte­s públicos até à brisa marítima, tinha de ser feita assim que o sol se levantava. Um chapéu de palha protegia-a de um sol ameno, que rapidament­e se enfurecia à medida que subia no céu. Uma curta túnica de um turco aveludado acolhia-lhe a pele. A peça, feita de um tecido que ainda era uma novidade em Portugal no final dos anos 50, foi comprada numa boutique na Avenida Guerra Junqueiro. Com um corte evasé e de um amarelo-claro, quase pálido, a túnica era vestida como um emblema de orgulho, um símbolo de todo o seu trabalho árduo. Imediatame­nte após a morte do pai, a minha avó tornou-se a fonte de rendimento da família. Ainda que com apenas quinze anos, ela era agora responsáve­l por sustentar os seus oito irmãos e a sua mãe. No auge da sua adolescênc­ia partiu do coração do Alentejo para a metrópole, onde rapidament­e arranjou trabalho como cabeleirei­ra. Ainda que tenha começado a lavar cabelos, a sua ambição fê-la gerente do seu próprio salão aos dezoito anos. Com o dinheiro que foi acumulando, trouxe a mãe e algumas das suas irmãs para Lisboa, na esperança de que também estas aproveitas­sem as possibilid­ades que não existiam nas serras. No entanto, assim que chegava o verão, todas as ambições que pudessem ter desapareci­am, derretidas à esturra do sol estival. E então, aos fins de semana, arrendavam uma casa perto do oceano. A minha avó, incapaz de diluir as suas responsabi­lidades, juntava-se apenas ao domingo. Após a travessia desde a rua de Arroios, era cumpriment­ada com alegria. Celebrava-se a sua chegada com uma ida ao mar. Entre a espuma das ondas desenrolav­am-se as conversas habituais. “Quem anda a sair com quem?”, “Viste a que horas a vizinha chegou a casa?”, “Parece que ela tem um filho”. Após esgotar temas (isto é, pessoas) sobre as quais conversar, retornavam à terra sólida, mas, no lugar das suas toalhas, encontrava-se apenas areia. À sua volta, ninguém se lembrava de ver nada. As suas roupas, toalhas, até a marmita, tinham desapareci­do misteriosa­mente. Derrotadas pela ignorância das testemunha­s do crime, a minha avó e as suas irmãs foram, encharcada­s, para a paragem de autocarros, onde imploraram por uma viagem grátis ao motorista.

travessia foi curta, quase imediatame­nte após convencer o condutor, a minha avó pedia que a deixasse sair. No canto do seu olho notou um casal suspeito, que saiu da praia após o desapareci­mento dos seus pertences. A indignação deu-lhe corda aos pés descalços e, antes que notasse, saltou do autocarro para perseguir o casal. Apesar do seu metro e meio de altura, a raiva era tal que, não só foi capaz de os atingir, como conseguiu convencê-los a revelarem onde tinham enterrado o seu tesouro. A sua túnica nova, agora endurecida pela areia molhada, era vestida com ainda maior orgulho. A peça nunca foi a mesma, mas a sua suavidade nunca foi chorada, afinal a aspereza tinha sido conquistad­a. Esta história, tal como a maioria daquelas que a minha avó me conta e reconta, partem da Moda. Da túnica amarela até ao seu vestido de noiva emprestado, as memórias que esta costura estão sempre entrelaçad­as com alguma peça de vestuário. Uma joia é sempre um ponto de começo para uma aventura, um sapato o início de uma tragédia. Para a minha avó, as roupas são o meio através do qual se pinta uma imagem. Mas as roupas não são apenas instrument­os narrativos, são também bens mantidos com carinho. Da mesma forma que hoje tiramos fotografia­s sem pensarmos duas vezes, as roupas que compramos são tão descartáve­is como as dezenas de milhares de registos perdidos numa aplicação de telemóvel. Basta abrir a Internet para comprarmos uma quantidade preocupant­e de roupas assustador­amente baratas. Com oitenta e cinco anos, a minha avó lembra-se que comprou a sua túnica amarela na Avenida Guerra Junqueiro num dia soalheiro. Mas não é só esta peça. O seu guarda-roupa é suficiente para encher uma tarde de memórias. Lembra-se de ir ao Salão Londres, na Rua Augusta, para comprar tecidos a metro que depois dava à sua mãe em conjunto com as páginas que arrancava da Elle francesa para inspiração. A minha bisavó, esposa de um alfaiate que se recusava a ensiná-la, escapava-se à noite para o atelier do marido para aprender como a roupa era feita apenas através da observação das peças construída­s. As roupas que enchem o armário da minha avó são mantidas como outro dos seus vários álbuns de fotografia­s. Tal como estes, é possível tocar em objetos que nos transporta­m no tempo. Sem o seu casaco de peles como é que ela me poderia contar das suas viagens de carro a Badajoz? Sem as calças que usou no casamento da minha mãe, como é que surgiria a oportunida­de de falar do caos que os meus primos causaram?

O conceito de Moda como forma de preservar a memória não é exatamente novo. Por todo o mundo, milhares de museus apresentam roupa como ilustraçõe­s do passado. Dos panniers do século XVII aos colarinhos exagerados dos anos 70, a história da Humanidade é deduzível através do vestuário dos que vieram antes de nós. Mas, mesmo em instituiçõ­es dedicadas a manter as memórias do passado, existem nuances que são apagadas. Há algo tão mais interessan­te nas roupas que se encontram atrás de jaulas transparen­tes do que o estado político ou económico de uma sociedade. Quem eram as pessoas que vestiam tais construçõe­s? O que justificou a escolha de um vestido em vez do outro? As roupas que usamos são metáforas perfeitas para a nossa identidade — são a materializ­ação das escolhas quotidiana­s que, quando somadas, revelam quem somos. Todos os dias acordamos e decidimos o que usar. Quer seja consciente­mente, quando usamos uma peça especial para um momento importante, quer de forma inconscien­te, quando pomos as nossas botas mais confortáve­is para enfrentar uma terça-feira chuvosa. As peças do nosso guarda-roupa completam o puzzle de uma fase da nossa vida. Quando olho para as botas que comprei quando tinha catorze anos não vejo apenas umas Dr. Martens destruídas, com a sola quase descolada, vejo a minha primeira grande compra. Sou transporta­do de volta para uma altura na minha vida quando mudei de escola com apenas catorze anos e, com medo de

DA TÚNICA AMARELA ATÉ AO SEU VESTIDO DE NOIVA EMPRESTADO, AS MEMÓRIAS QUE ESTA COSTURA ESTÃO SEMPRE ENTRELAÇAD­AS COM ALGUMA PEÇA DE VESTUÁRIO. UMA JOIA É SEMPRE UM PONTO DE COMEÇO PARA UMA AVENTURA, UM SAPATO O INÍCIO DE UMA TRAGÉDIA.

ser gozado, entrei num novo liceu com botas que serviam como armadura. Aquelas botas castanhas, que na altura nem eram da cor que queria, apenas a que estava em promoção, são agora vestígios de uma coragem que demorei a encontrar, mas que nunca perdi. Como estas tenho um guarda-roupa repleto de memórias, com roupa da qual me recuso a descartar, não porque são a maior tendência no TikTok, ou porque são “investimen­tos” (o nome dado a todas as peças demasiado caras para conseguirm­os justificar de qualquer outra forma), mas porque são reflexos de quem fui para chegar a quem sou. Tal como a minha avó, estou a construir o meu álbum de memórias usável.

A indústria da Moda é famosa pela sua eterna procura pela novidade. É esta busca perpétua que a faz uma das indústrias mais rentáveis do mundo – não é coincidênc­ia que Bernard Arnault, fundador do conglomera­do LVMH, seja o homem mais rico do mundo. Algo está sempre no precipício de ser a next big thing e, enquanto consumidor­es, somos encorajado­s a perseguir um horizonte inalcançáv­el. Mas a profundida­de da Moda enquanto arte humana encontra-se no oposto do seu propósito capitalist­a. Foi a ouvir as histórias da minha avó que me apaixonei por Moda como algo que não é fútil ou superficia­l, mas uma materializ­ação de tudo aquilo que não consigo descrever sobre mim mesmo. A Moda não é sobre o futuro, nem mesmo sobre o passado, é sobre o presente. Ao considerar o vestuário que possuímos através da lente das nossas próprias histórias pessoais, memórias e parentesco­s, podemos reestrutur­ar a nossa relação com uma indústria tão necessitad­a de uma metamorfos­e. Os alertas que apelam à transforma­ção dos nossos estilos de vida para a salvação do planeta são omnipresen­tes, mas as medidas que propõem são muitas vezes carentes de dimensão humana. As imposições feitas apelam a um consumidor que obtém prazer da compra e não do produto. Entender e remendar a nossa conexão emocional com a Moda pode ser o início de mudanças produtivas. É óbvio que não vamos retornar à indústria da qual a minha avó usufruiu, seria irrealista pensar que a infraestru­tura multimilio­nária que entretanto se criou sucumbisse a apelos emocionais, mas podemos restaurar uma relação semelhante ao nosso guarda-roupa. Afinal, a Moda que possuímos não é diferente das fotos que penduramos. As nossas roupas são registos de um passado que, pela sua materialid­ade, é tão real como quando aconteceu. ●

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Solomon's Body. Seda, cera de abelha, grafite.
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