VESTE-ME COMO FOI
Fios e linhas substituem palavras. Na Moda, a memória é preservada silenciosamente entre as linhas de um casaco, entre as costuras de uma camisa.
Num domingo quente, a minha avó sentava-se num autocarro em direção à Praia das Maçãs. Os verões portugueses, infames pelo sol abrasador e calor sufocante, obrigavam-na a levantar-se cedo no seu único dia de folga para se juntar às suas irmãs. A travessia, em transportes públicos até à brisa marítima, tinha de ser feita assim que o sol se levantava. Um chapéu de palha protegia-a de um sol ameno, que rapidamente se enfurecia à medida que subia no céu. Uma curta túnica de um turco aveludado acolhia-lhe a pele. A peça, feita de um tecido que ainda era uma novidade em Portugal no final dos anos 50, foi comprada numa boutique na Avenida Guerra Junqueiro. Com um corte evasé e de um amarelo-claro, quase pálido, a túnica era vestida como um emblema de orgulho, um símbolo de todo o seu trabalho árduo. Imediatamente após a morte do pai, a minha avó tornou-se a fonte de rendimento da família. Ainda que com apenas quinze anos, ela era agora responsável por sustentar os seus oito irmãos e a sua mãe. No auge da sua adolescência partiu do coração do Alentejo para a metrópole, onde rapidamente arranjou trabalho como cabeleireira. Ainda que tenha começado a lavar cabelos, a sua ambição fê-la gerente do seu próprio salão aos dezoito anos. Com o dinheiro que foi acumulando, trouxe a mãe e algumas das suas irmãs para Lisboa, na esperança de que também estas aproveitassem as possibilidades que não existiam nas serras. No entanto, assim que chegava o verão, todas as ambições que pudessem ter desapareciam, derretidas à esturra do sol estival. E então, aos fins de semana, arrendavam uma casa perto do oceano. A minha avó, incapaz de diluir as suas responsabilidades, juntava-se apenas ao domingo. Após a travessia desde a rua de Arroios, era cumprimentada com alegria. Celebrava-se a sua chegada com uma ida ao mar. Entre a espuma das ondas desenrolavam-se as conversas habituais. “Quem anda a sair com quem?”, “Viste a que horas a vizinha chegou a casa?”, “Parece que ela tem um filho”. Após esgotar temas (isto é, pessoas) sobre as quais conversar, retornavam à terra sólida, mas, no lugar das suas toalhas, encontrava-se apenas areia. À sua volta, ninguém se lembrava de ver nada. As suas roupas, toalhas, até a marmita, tinham desaparecido misteriosamente. Derrotadas pela ignorância das testemunhas do crime, a minha avó e as suas irmãs foram, encharcadas, para a paragem de autocarros, onde imploraram por uma viagem grátis ao motorista.
travessia foi curta, quase imediatamente após convencer o condutor, a minha avó pedia que a deixasse sair. No canto do seu olho notou um casal suspeito, que saiu da praia após o desaparecimento dos seus pertences. A indignação deu-lhe corda aos pés descalços e, antes que notasse, saltou do autocarro para perseguir o casal. Apesar do seu metro e meio de altura, a raiva era tal que, não só foi capaz de os atingir, como conseguiu convencê-los a revelarem onde tinham enterrado o seu tesouro. A sua túnica nova, agora endurecida pela areia molhada, era vestida com ainda maior orgulho. A peça nunca foi a mesma, mas a sua suavidade nunca foi chorada, afinal a aspereza tinha sido conquistada. Esta história, tal como a maioria daquelas que a minha avó me conta e reconta, partem da Moda. Da túnica amarela até ao seu vestido de noiva emprestado, as memórias que esta costura estão sempre entrelaçadas com alguma peça de vestuário. Uma joia é sempre um ponto de começo para uma aventura, um sapato o início de uma tragédia. Para a minha avó, as roupas são o meio através do qual se pinta uma imagem. Mas as roupas não são apenas instrumentos narrativos, são também bens mantidos com carinho. Da mesma forma que hoje tiramos fotografias sem pensarmos duas vezes, as roupas que compramos são tão descartáveis como as dezenas de milhares de registos perdidos numa aplicação de telemóvel. Basta abrir a Internet para comprarmos uma quantidade preocupante de roupas assustadoramente baratas. Com oitenta e cinco anos, a minha avó lembra-se que comprou a sua túnica amarela na Avenida Guerra Junqueiro num dia soalheiro. Mas não é só esta peça. O seu guarda-roupa é suficiente para encher uma tarde de memórias. Lembra-se de ir ao Salão Londres, na Rua Augusta, para comprar tecidos a metro que depois dava à sua mãe em conjunto com as páginas que arrancava da Elle francesa para inspiração. A minha bisavó, esposa de um alfaiate que se recusava a ensiná-la, escapava-se à noite para o atelier do marido para aprender como a roupa era feita apenas através da observação das peças construídas. As roupas que enchem o armário da minha avó são mantidas como outro dos seus vários álbuns de fotografias. Tal como estes, é possível tocar em objetos que nos transportam no tempo. Sem o seu casaco de peles como é que ela me poderia contar das suas viagens de carro a Badajoz? Sem as calças que usou no casamento da minha mãe, como é que surgiria a oportunidade de falar do caos que os meus primos causaram?
O conceito de Moda como forma de preservar a memória não é exatamente novo. Por todo o mundo, milhares de museus apresentam roupa como ilustrações do passado. Dos panniers do século XVII aos colarinhos exagerados dos anos 70, a história da Humanidade é deduzível através do vestuário dos que vieram antes de nós. Mas, mesmo em instituições dedicadas a manter as memórias do passado, existem nuances que são apagadas. Há algo tão mais interessante nas roupas que se encontram atrás de jaulas transparentes do que o estado político ou económico de uma sociedade. Quem eram as pessoas que vestiam tais construções? O que justificou a escolha de um vestido em vez do outro? As roupas que usamos são metáforas perfeitas para a nossa identidade — são a materialização das escolhas quotidianas que, quando somadas, revelam quem somos. Todos os dias acordamos e decidimos o que usar. Quer seja conscientemente, quando usamos uma peça especial para um momento importante, quer de forma inconsciente, quando pomos as nossas botas mais confortáveis para enfrentar uma terça-feira chuvosa. As peças do nosso guarda-roupa completam o puzzle de uma fase da nossa vida. Quando olho para as botas que comprei quando tinha catorze anos não vejo apenas umas Dr. Martens destruídas, com a sola quase descolada, vejo a minha primeira grande compra. Sou transportado de volta para uma altura na minha vida quando mudei de escola com apenas catorze anos e, com medo de
DA TÚNICA AMARELA ATÉ AO SEU VESTIDO DE NOIVA EMPRESTADO, AS MEMÓRIAS QUE ESTA COSTURA ESTÃO SEMPRE ENTRELAÇADAS COM ALGUMA PEÇA DE VESTUÁRIO. UMA JOIA É SEMPRE UM PONTO DE COMEÇO PARA UMA AVENTURA, UM SAPATO O INÍCIO DE UMA TRAGÉDIA.
ser gozado, entrei num novo liceu com botas que serviam como armadura. Aquelas botas castanhas, que na altura nem eram da cor que queria, apenas a que estava em promoção, são agora vestígios de uma coragem que demorei a encontrar, mas que nunca perdi. Como estas tenho um guarda-roupa repleto de memórias, com roupa da qual me recuso a descartar, não porque são a maior tendência no TikTok, ou porque são “investimentos” (o nome dado a todas as peças demasiado caras para conseguirmos justificar de qualquer outra forma), mas porque são reflexos de quem fui para chegar a quem sou. Tal como a minha avó, estou a construir o meu álbum de memórias usável.
A indústria da Moda é famosa pela sua eterna procura pela novidade. É esta busca perpétua que a faz uma das indústrias mais rentáveis do mundo – não é coincidência que Bernard Arnault, fundador do conglomerado LVMH, seja o homem mais rico do mundo. Algo está sempre no precipício de ser a next big thing e, enquanto consumidores, somos encorajados a perseguir um horizonte inalcançável. Mas a profundidade da Moda enquanto arte humana encontra-se no oposto do seu propósito capitalista. Foi a ouvir as histórias da minha avó que me apaixonei por Moda como algo que não é fútil ou superficial, mas uma materialização de tudo aquilo que não consigo descrever sobre mim mesmo. A Moda não é sobre o futuro, nem mesmo sobre o passado, é sobre o presente. Ao considerar o vestuário que possuímos através da lente das nossas próprias histórias pessoais, memórias e parentescos, podemos reestruturar a nossa relação com uma indústria tão necessitada de uma metamorfose. Os alertas que apelam à transformação dos nossos estilos de vida para a salvação do planeta são omnipresentes, mas as medidas que propõem são muitas vezes carentes de dimensão humana. As imposições feitas apelam a um consumidor que obtém prazer da compra e não do produto. Entender e remendar a nossa conexão emocional com a Moda pode ser o início de mudanças produtivas. É óbvio que não vamos retornar à indústria da qual a minha avó usufruiu, seria irrealista pensar que a infraestrutura multimilionária que entretanto se criou sucumbisse a apelos emocionais, mas podemos restaurar uma relação semelhante ao nosso guarda-roupa. Afinal, a Moda que possuímos não é diferente das fotos que penduramos. As nossas roupas são registos de um passado que, pela sua materialidade, é tão real como quando aconteceu. ●