Éloi Laurent e a economia para o bem-estar
Portugal foi vítima de uma “Europa consumida pelos números”, afirma Éloi Laurent no seu livro “De olhos postos no amanhã”, que chegou esta semana às livrarias portuguesas. Para o economista sénior do Observatório Francês de Conjunturas Económicas, a economia não pode continuar a ter como bússola o crescimento do PIB, deve sim reorientar-se para o bem-estar das pessoas e para a resiliência e sustentabilidade das sociedades. E a pandemia é uma oportunidade para fazer essa transição, defende.
Éloi Laurent está confinado na sua casa em Paris. Foi nessa circunstância que o economista francês escreveu o prefácio para a edição portuguesa do seu livro, “De olhos postos no amanhã”, que chegou esta semana às livrarias, com a chancela da Casa das Letras. A versão original foi publicada em outubro de 2019. Nessa altura, estava longe de imaginar que o mundo seria paralisado por uma pandemia.
Ironicamente, este cenário em que fomos colocados por causa de um vírus pode ser uma ajuda para melhor entendermos – cidadãos e decisores – a ideia de um novo modelo económico que este professor convidado nas universidades norte-americanas de Stanford e Harvard tem vindo a defender. Para Éloi Laurent, o foco no Produto Interno Bruto (PIB) para medir o pulso à saúde de uma economia não deve continuar. Isto porque “o PIB é cego no que diz respeito ao bem-estar humano, surdo ao sofrimento social e mudo quanto ao estado do planeta”.
A pandemia é “uma provação que nos obriga a abrir os olhos”. Éloi Laurent acredita que é preciso um novo paradigma focado na saúde das pessoas e na sustentabilidade do planeta. Os decisores políticos têm agora uma oportunidade para fazer a transição para outro modelo económico, sustenta.
O economista francês lembra que estamos a iniciar uma década em que o grande desafio é ambiental. Nesse sentido, “torna-se necessário que as comunidades humanas iniciem uma transformação profunda das suas atitudes e dos seus comportamentos, para evitar que o século XXI seja o da destruição do bem-estar humano”. E, sublinha, a crise sanitária que agora enfrentamos, com um forte impacto na economia, “é originalmente um problema ecológico”.
Éloi Laurent chama a atenção para o facto de a “obsessão pelo crescimento económico” nos impedir de “compreender o mundo em que vivemos”. E, nota, “o valor universal da humanidade é a saúde, não o crescimento económico”. Por isso, nesse novo mundo que preconiza, “o bem-estar humano deve tornar-se a bússola das políticas públicas”. Neste momento, os governos de todo o mundo têm de acorrer à emergência social que a covid-19 provocou. Mas “poderiam concentrar-se nos setores vitais para o conjunto da população ao longo dos próximos meses e mesmo anos (saúde, laços sociais, alimentação, infraestruturas), sem com isso acelerar de novo crises ambientais”.
O MODELO DO ESTADO SOCIAL ECOLÓGICO
O facto de a Europa estar “consumida pelos números” provoca vítimas. Uma delas foi Portugal, “o exemplo perfeito de um país onde, no decurso de uma década, o bem-estar humano foi em parte sacrificado no altar dos indicadores macroeconómicos, totalmente ultrapassados no século XXI, como o défice público em percentagem do PIB”, afirma Éloi Laurent. Por isso, “os portugueses têm razões de sobra para não confiar no poder dos números que ainda hoje continuam a governar a União Europeia”.
É preciso dar um salto para aquilo a que chama a “Europa do bem-estar”, que restabeleça uma verdadeira cooperação entre os Estados-membros da União Europeia. O economista chama a atenção para a necessidade de um Estado Social Ecológico, isto é, “a proteção social adaptada à era das crises ambientais” com que nos vamos confrontar a partir de agora.
Em resposta por escrito ao Negócios, o autor refere que o plano de recuperação da economia, apresentado pela Comissão Europeia, o deixou simultaneamente “tranquilo e preocupado”. E explica porquê. Por um lado, “finalmente, a Europa existe” e põe à frente da disciplina os princípios da cooperação, “que é o verdadeiro pro
pósito do projeto europeu”. Isso vai ao encontro daquilo que defende no seu livro. Mas, por outro lado, o que está a ser discutido repetidamente pelos líderes europeus é o dinheiro envolvido nesse processo. “A minha pergunta é: para quê? Qual é o objetivo deste plano? O que pretendemos coletivamente, como europeus, neste tempo de crise? O dinheiro serve apenas para restaurar o crescimento económico, ou queremos melhorar o bem-estar humano, agora e amanhã?”, questiona.
Por exemplo, se França utilizar a sua “fatia do bolo” para salvar a indústria automóvel francesa, sem exigir condições sociais ou ecológicas, “seria melhor doar o dinheiro diretamente aos acionistas e preparar-se para mais 50 mil mortes por causa da poluição do ar, em 2020”. Para o economista, “o propósito essencial da humanidade é a saúde e não o crescimento económico”.
O desafio, afirma, é “encontrar um caminho, de forma democrática, que valorize a saúde e a vida, incluindo a vida ‘não humana’ na Terra, que condiciona o nosso bem-estar”. Para isso, “precisamos de mudar a forma como abordamos as nossas decisões económicas, alterando os objetivos que almejamos”.
Segundo Éloi Laurent, quando se pergunta a pessoas em todo o mundo, ricos e pobres, qual é a dimensão mais importante do seu bem-estar, “elas respondem que é a saúde e não a riqueza”. Basta olharmos para os Estados Unidos, “o país mais rico da história da humanidade e que registou o maior crescimento económico em 2019”, mas onde “a saúde é um desastre e centenas de milhares de pessoas cometem suicídio e envenenam-se todos os anos com drogas e álcool, porque a vida é muito difícil”.
Nesse sentido, o crescimento económico “é a medida superficial e o resultado do desenvolvimento humano”. Se estamos à procura do crescimento económico à custa do bem-estar, “como é, obviamente, o caso nos Estados Unidos” – onde a saúde, as instituições e as infraestruturas “estão a desmoronar, enquanto o produto interno bruto, impulsionado pela desigualdade, está a florescer –, então o crescimento é, no fundo, um empobrecimento”.
No livro, Éloi Laurent fala também na questão da felicidade. Quando questionadas sobre o que as faz feliz, pessoas do mundo inteiro “respondem que são as relações sociais, não o rendimento”. Isso significa que não é a capacidade de poderem comprar coisas que as preenche, mas sim as outras pessoas. “Parece trivial e óbvio, mas imagine que revolução seria se decidíssemos pôr a saúde e as relações sociais à frente de qualquer indicador de desempenho económico!”, exclama o autor. Retomando o plano europeu de recuperação económica, Laurent faz um exercício de imaginação e olha para o documento como uma oportunidade de fazer uma “reinvenção” de políticas que sirvam ao modelo de mundo que queremos para nós e para os nossos filhos.
O modelo que defende é o de um Estado Social Ecológico. Recorda que foi na Europa do século XIX que foi inventado o Estado Social, baseado na ideia do bem-estar coletivo, que vai além das leis do mercado. “O princípio central era a proteção do trabalho da lógica do mercado, através da política social, visando o bem-estar humano como valor eticamente superior.” Agora, no século XXI, somos chamados a uma nova “revolução”. Perante estas crises ecológicas, “pelas quais somos totalmente responsáveis”, precisamos de redescobrir o poder equalizador do Estado Social. No fundo, o autor sugere uma mutualização dos riscos sociais para os podermos reduzir, em nome do bem-estar humano, “a começar na saúde, que é a principal interface entre pessoas e ecossistemas”. Esse é o propósito do tal Estado Social Ecológico que descreve no livro.