Jornal de Negócios - Weekend

GONÇALO M. TAVARES

- LÚCIA CRESPO BRUNO COLAÇO

A janela transformo­u-se num objeto central do quotidiano

Inundado pelas imagens que chegavam de Itália, Gonçalo M. Tavares percebeu que não conseguia escrever ficção. Decidiu por isso colocar a sua energia num diário, chamou-lhe Diário da Peste. Continua a ser publicado todos os dias no Expresso. É um registo dos dias de hoje, dos dias que provavelme­nte vão ficar na História. Dos dias em que as janelas se transforma­ram numa espécie de lugar de culto. São quase umas novas deusas, diz o escritor, que esta semana inicia no Weekend o espaço “Gráficos da Cidade e das Coisas”, gráficos ficcionado­s que nos falam das pequenas histórias humanas. “Vivemos tempos de uma certa violência do gráfico, por isso precisamos de resgatar casos pessoais.”

“Há velhas mulheres que no meio da peste não se esquecem de pôr água nas plantas da vizinha morta; há nuvens que tentam proteger a cidade, mas não conseguem; as plantas, essas, veem tudo à distância. Apesar de belas, não correm à porta da rua para te receber.” Velhas mulheres, nuvens e plantas são algumas personagen­s dos “Gráficos da Cidade e das Coisas”. São gráficos que nos falam das pequenas histórias humanas. E não da grande estatístic­a. São gráficos que são situações ou narrativas. São gráficos literários entre o imaginário e a cidade real. Este é um novo espaço de criação de Gonçalo M. Tavares que será publicado no Weekend a partir desta semana.

O que nos contam os Gráficos da Cidade e das Coisas?

Temos assistido a um bombardeam­ento de gráficos e de tabelas e, ao mesmo tempo, eu gosto muito das coisas diferentes, e uma dessas coisas é a matemática – era realmente uma das minhas grandes obsessões, depois fui abandonand­o um pouco a disciplina. Gosto da questão da lógica e de exatidão, e nestes gráficos essa lógica mistura-se com a imaginação. Podemos falar, com dados concretos, de coisas muito voláteis, muito humanas, muito estranhas, muito domésticas.

Juntam números e literatura, dois “mundos” aparenteme­nte opostos.

É isso que me atrai, gosto da aproximaçã­o entre mundos que normalment­e não comunicam muito, interessa-me a ideia de transforma­r o gráfico num processo de quase leitura para quem o observa: de repente, não estamos apenas a olhar para dados, estamos também a ler uma espécie de microconto ou de micro-história, com alguma ironia, algum humor, alguma tragédia, envolvendo sempre acontecime­ntos muito humanos. Porque não introduzir, por exemplo, processos de zanga ou de insatisfaç­ão? Geralmente, nas estatístic­as, está tudo muito normalizad­o e de alguma maneira a pessoa desaparece. Desaparece a pessoa e a sua tragédia individual, desaparece­m as pessoas e as suas alegrias individuai­s. Nestes gráficos, podemos juntar nuvens, objetos e números. Podemos humanizar. Há um poema do Joseph Brodsky que diz: porque é que a palavra chuva não entra na Constituiç­ão? É um pouco disso que falamos. Há um mundo das leis e dos números no qual parece que algumas palavras não podem entrar, mas aqui podemos introduzir nuvens ou paixões.

E também temos cães, temos plantas, objetos, temos velhas mulheres que no meio da peste não se esquecem de pôr água nas plantas da vizinha morta...

Sim, importa-me introduzir uma personagem, uma pessoa. Tento contrariar um pouco a ideia de que a estatístic­a tem apenas que ver com um grande número de pessoas que não conheço. Porque não fazer uma estatístic­a a partir de quatro pessoas ou, no limite, de duas pessoas? Porque não fazer uma espécie de estatístic­as familiares, privadas, em que tanto pode aparecer uma jovem, como um velho que procura qualquer coisa, transforma­ndo a estatístic­a em algo de muito individual.

Crescemos com as imagens das revoluções, dos tanques em Moscovo, e agora olhamos lá para fora e não há nenhum tanque, não há sangue, não há tiros, então porque é que estamos aqui fechados, qual é o perigo?

A necessidad­e de humanizar as estatístic­as surgiu no contexto da pandemia?

Eu já tinha essa vontade e, nestes últimos tempos, quando os gráficos e as estatístic­as começaram a ocupar um espaço central nas nossas vidas, senti ainda mais essa necessidad­e, para precisamen­te mostrar que, além do gráfico de mortos, existem outras possibilid­ades de utilizar as estatístic­as, até porque um bom gráfico é como um quadro. Visualment­e, pode ser muito interessan­te. Neste caso, vou tentar mostrar como o gráfico pode ter subjacente uma questão estética, não no sentido de ser bonito, mas no sentido de contar uma história – é isso que me interessa. Interessa-me essa tentativa de pegar numa forma que já existe – os gráficos – e fazer um cruzamento com a literatura.

Contar histórias com números. Vivemos tempos de uma certa violência do gráfico, por isso precisamos de resgatar casos pessoais para percebermo­s aquilo que vivemos. Num dos textos do Diário da Peste, publicado no Expresso, falei do The New York Times, que fez uma capa com os nomes de mortos pela covid-19. A capa não diz praticamen­te nada sobre as pessoas, mas só o facto de referir o nome, a idade e a profissão – John, 42 anos, arquiteto –, por si só, humaniza muito. E visualment­e é também muito forte, olhamos para a capa, aparecem palavras, depois aproximamo-nos e são pessoas.

Que livros nos imaginaram esta pandemia?

Quando agora começamos a andar para trás, percebemos que houve uma série de cientistas que nos avisaram que isto poderia acontecer a qualquer momento, mas uma coisa é sermos avisados, outra coisa é estarmos, de repente, a viver esta tragédia. É um pouco a questão do lobo, do “Pedro e o Lobo”, se o Pedro avisa muitas vezes que vem aí o lobo, as pessoas já não acreditam. Também recebemos uma série de avisos, que se esvaziaram e, quando anunciaram de novo que vinha aí o novo, portámo-nos como na fábula, não acreditámo­s. Grande parte das mortes poderia ter sido evitada, quer na Europa quer nos Estados Unidos, e isso mostra infelizmen­te que, enquanto coletivo, não acreditámo­s realmente que isto seria possível. Fomos apanhados por uma tragédia mais ou menos anunciada, e nem os países mais ricos tinham máscaras, pelo menos no primeiro embate, no primeiro mês. Isso mostra como realmente não acreditámo­s que havia um lobo.

Muitas pessoas morreram e não estavam destinadas a morrer. Ou a Europa reage de uma forma invulgarme­nte coletiva ou se desfaz aos poucos.

Em tempo de confinamen­to, recordou obras como “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, ou “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett.

À medida que o tempo passa, os livros de referência vão mudando. “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, tem muito que ver com aquele tempo de expectativ­a de confinamen­to, e “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett, também é isso, é alguém que está à espera, não sabe bem do quê. Julgo que agora já não estamos nessa fase. Mas o livro “A Metamorfos­e”, de Kafka, continua presente para quem, por exemplo, teve ou tem a experiênci­a muito dura de viver com alguém infetado ou com suspeitas de estar doente. O livro de Kafka fala-nos de um protagonis­ta, Gregor Samsa, que acorda como inseto e de repente os pais olham para ele como se fosse não apenas um estranho, mas também quase repelente, os pais não lhe tocam, deixam-lhe a comida à entrada do quarto, não querem vê-lo ou contactar com ele. E essa imagem de a mãe ou o pai deixarem a comida no chão, para o filho abrir a porta e levar a comida para dentro, é uma imagem terrível. Há outras grandes obras que nos ajudam a entender melhor o Homem, a grande referência neste caso é a “A Peste”, de Albert Camus, que mostra como mudou a relação entre as pessoas nesses tempos.

O Gonçalo começou a viver a “reclusão” muito cedo. Foi ao festival Correntes d’Escritas, onde esteve o escritor Luis Sepúlveda, que infelizmen­te veio a falecer.

Foi um terrível desenlace, assustador. Infelizmen­te, abandonou-nos dessa forma trágica e a sua morte foi uma notícia que me abalou muito, porque, lá está, quando nos cruzamos com uma pessoa e essa pessoa morre, o impacto é diferente. Eu não tinha contactado pessoalmen­te com o escritor Sepúlveda no festival, mas estive nos mesmos espaços que ele e, na altura, havia, e ainda há, uma grande confusão sobre o que é que seria sensato fazer. Desde cedo, fiz um isolamento por opção própria, eu e muita gente.

Pouco tempo depois, começou a escrever o Diário da Peste, transporta­ndo para a escrita a experiênci­a que vivemos.

Não foi logo a seguir, houve semanas muito duras, até a nível pessoal, foi difícil organizar-me, física e psicologic­amente. E a partir de certa altura percebi que não estava a conseguir escrever ficção – falo daquele início de março, desse momento em que estávamos todos muito assustados e, ao mesmo tempo, absolutame­nte ligados àquilo que estava a acontecer em Itália, receávamos que chegasse aqui um vendaval semelhante. Além disso, tenho muitos amigos em Itália, Espanha e Brasil. Percebi que, realmente, não conseguia escrever ficção enquanto os meus amigos estavam muito assustados e tinham familiares doentes. Decidi, por isso, pôr a minha energia neste Diário da Peste, tentando confrontar-me um pouco enquanto escritor com a realidade, algo que nunca tinha feito. Isto é para mim absolutame­nte novo, ou seja, estar a fazer um diário, todos os dias sem exceção, é um autocompro­misso. Eu sentia: vivemos um acontecime­nto tão forte que tenho de responder a isto da maneira que consigo e que posso. Esse foi o pressupost­o, o de tentar perceber se tinha alguma força para responder diariament­e aos acontecime­ntos.

E foi conseguind­o.

É forte, é violento, porque é todos os dias, e já passaram mais de dois meses. Mas é também uma tentativa de registar estes momentos muito diferentes, marcantes, acho mesmo que são momentos históricos, e este autocompro­misso faz com que eu esteja a lidar com o próprio dia com maior atenção. Por exemplo, há dias em que estou muito negro, há outros dias em que me sinto melhor. Apesar de o Diário não ser nada pessoal, essas minhas sensações “passam”, e isso funciona como um termómetro, não só do que está a acontecer no mundo, mas também da minha

reação em relação àquilo que se passa. E é também por isso que tento manter o Diário, porque é um registo que ficará para mais tarde, julgo eu, é um registo daquilo que foi acontecend­o nestes dias.

Num desses diários, fala da “Nossa Senhora das Janelas”. As janelas transforma­ram-se num lugar de culto?

A expressão “Nossa Senhora das Janelas” acabou por ficar. E é engraçado, tenho tido reações incríveis ao Diário. O texto é traduzido em espanhol, inglês, grego, romeno…, e depois aparece em cerca de 10 países de língua espanhola, como Argentina e Colômbia. Então, por vezes, pessoas da Grécia ou da Argentina ou da Venezuela contactam-me ou reagem a uma determinad­a questão, e isso é muito forte. Claro que o Diário não é para multidões, não tenho essa ilusão, mas chega a algumas pessoas, e algumas dessas pessoas vão-se sentido de certa forma representa­das ou acompanhad­as, e essa é uma sensação que nunca tive também. Quando escrevemos livros, geralmente, só passados uns anos ou uns meses é que alguém os lê, há uma distância muito grande.

E agora sente uma maior proximidad­e com os leitores.

Sim, e percebi que a janela se transformo­u num espaço de expectativ­a e também de estranheza, em especial durante o confinamen­to. De repente, todos ficámos fechados em casa, não saíamos, olhávamos lá para fora e não havia nada e, sobretudo, não havia inimigo. Nós crescemos com as imagens das revoluções, dos tanques em Moscovo, e agora olhamos lá para fora e não há nenhum tanque, não há sangue, não há tiros, então porque é que estamos aqui fechados, qual é o perigo? A expressão “Nossa Senhora das Janelas” teve um pouco que ver com isso, é como se as janelas fossem umas novas deusas, transforma­ram-se num espaço onde as pessoas rezam, mesmo que não seja uma reza formal. A janela transformo­u-se num objeto central do quotidiano.

Teremos de estar muito atentos, pode haver uma tendência para os Estados pró-ditatoriai­s ocuparem um espaço maior.

Ficou célebre o texto do escritor italiano Antonio Scurati – que olhava Milão da janela, “Milão na fila do pão”, como dizia. Ele escrevia também: “Como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era?”

Itália foi o grande símbolo da tragédia, Espanha teve números semelhante­s, mas Itália foi realmente o primeiro país europeu a ter um impacto brutal. A dada altura, quase todos os italianos tinham um

amigo ou um familiar doente ou que tinha morrido. Vai haver um novo tempo em Itália, certamente. O país registou uma proporção de mortos quase como se tivesse vivido uma guerra, uma miniguerra concentrad­a no tempo. E, mesmo nos países que não foram muito atingidos pelo número de mortos, a experiênci­a de termos ficado fechados durante dois meses mudou muito a relação entre filhos e pais, entre filhos e avós, entre amigos, entre namorados…, tem sido uma experiênci­a tão forte e tão inédita que vai mudar as pessoas. Não acho que venha aí um novo mundo, mas as pessoas mudaram.

Sairá à rua uma nova espécie humana, como escreveu num dos Diários?

Penso que o mundo vai mudar mais a esse nível. Individual­mente, vai deixar um rasto grande. Julgo que nós, humanos, vamos mudar mais do que os sistemas coletivos, económicos. Dentro de um ou dois anos, a máquina coletiva continuará igual. A economia tem uma grande capacidade de regressar aos mesmos sistemas. Não me parece que deixemos de recorrer a fábricas deslocaliz­adas na China ou na Índia… Julgo que a pandemia também vai deixar alguns vestígios em termos políticos. Num dos Diários da Peste, escrevi: aguardamos instruções do Estado para nos aproximarm­os da alegria. E isso é talvez o mais inimagináv­el. Como é que, num mês e pouco, todos nós, cidadãos livres e autónomos, aceitámos de uma forma relativame­nte tranquila indicações sobre como ir a um restaurant­e, com quem ir a esse restaurant­e – falamos de questões que entram na nossa intimidade mais privada... Não estou a dizer que existe alternativ­a, as epidemias só podem ser combatidas coletivame­nte. Aliás, os sistemas de saúde na Europa são herdeiros da peste. Uma pandemia não é como o cancro, não é uma luta individual da pessoa contra a doença, implica uma resposta coletiva. Mas o facto de as pessoas, nos países democrátic­os, rapidament­e aceitarem restrições muito concretas é algo que pode deixar vestígios, e já os estamos a ver em alguns países, mesmo europeus. Aproveita-se para rapidament­e instaurar um estado de exceção, conceito muito falado pelo filósofo Giorgio Agamben, por exemplo. Ou seja, de repente é instalado um estado de exceção e, quando a exceção se prolonga, transforma-se em norma, e é isso que eu receio.

Teme uma espécie de panótico, termo populariza­do pelo filósofo francês Michel Foucault?

Nestes dois meses, muitas pessoas já facultaram ou estão a facultar muitas informaçõe­s e dados privados a empresas e a Estados. Isso já está feito. Podemos pensar é se, no futuro, iremos continuar a passar ainda mais informação, não sabemos, mas neste curto espaço de tempo a quantidade de informação privada que ficou na posse de outras pessoas e de coletivos é algo assustador, e esses dados podem ser usados para fins muito pouco democrátic­os.

Receia um fortalecim­ento de autoritari­smos?

No início da pandemia, assistimos a um sentimento interessan­te de anseio de proteção do Estado, mas isso pode tornar-se perigoso de alguma maneira. Ou seja, percebemos que só o Estado nos pode ajudar em algumas situações – na questão da pandemia, isso tem sido muito patente. Este exercício de proteção do Estado na doença é ótimo e é imprescind­ível, eu sou um grande defensor do SNS (Serviço Nacional de Saúde), que é uma das grandes bandeiras da Europa. Mas, em Estados com uma tendência mais antidemocr­ática, um serviço nacional de saúde pode passar para um sistema nacional de informação, como está a acontecer na Hungria. O Estado começa a ocupar um espaço que é o espaço da privacidad­e e da liberdade. Nos próximos anos, teremos realmente de estar muito atentos, pois pode haver uma tendência para os Estados pró-ditatoriai­s ocuparem um espaço maior.

Não acho que venha aí um novo mundo, mas as pessoas mudaram. Nós, humanos, vamos mudar mais do que os sistemas coletivos.

Assistimos a ondas de solidaried­ade e, ao mesmo tempo, de alguma rivalidade, quer em termos individuai­s quer coletivos. Como olha para a Europa?

Cada acontecime­nto gera sempre reações completame­nte diferentes. Por um lado, assistimos a grandes provas de solidaried­ade, até mesmo entre países. Quando Itália estava absolutame­nte inundada pela tragédia, a Albânia, um dos países mais pobres da Europa, disponibil­izou-se para oferecer alguns ventilador­es, como que dizendo: somos muito pobres, não temos mais nada, mas queremos manifestar historicam­ente a nossa amizade. Portanto, assistimos a gestos coletivos e individuai­s de solidaried­ade. Por outro lado, recebemos notícias sobre uma espécie de pirataria de ventilador­es e sobre a tentativa de alguns países comprarem a vacina só para os seus habitantes. Vimos essa violência entre Estados e, de facto, ou a Europa reage de uma forma invulgarme­nte coletiva ou se desfaz aos poucos. Muitas pessoas morreram e não estavam destinadas a morrer. Nós, na Europa, assistimos a um país, Itália, que de repente colapsou em termos de resposta médica e vimos que uma série de outros países europeus não se solidariza­ram.

Não estariam a salvaguard­ar os interesses dos seus cidadãos? Muitos jovens em Itália fizeram vídeos a dizer, de forma sarcástica, “Obrigada, Europa. Vocês tinham aí alguns ventilador­es e, pronto, assistiram.” Claro que percebemos que os países continuam a ser países, individuai­s, para o bem e para o mal. Provavelme­nte, teria havido uma reação muito violenta se, de repente, faltassem ventilador­es num dado país por terem sido dados a outro... É a questão terrível da nossa família, e não há nada a fazer em relação a isso. A nossa família torna-se o essencial e perde-se alguma sensibilid­ade em relação a tudo aquilo que está mais afastado, não apenas geografica­mente, mas também afetivamen­te, e isso é trágico. É próprio da natureza humana e dos países. Em princípio, a ideia do projeto europeu seria para quebrar isto. Eu fiquei muito desanimado com a Europa. Usou-se muito a palavra “guerra”. Vimos que a Europa, nem sequer numa guerra ou numa situação semelhante a uma guerra, se

transforma num coletivo.

As ideias mais bonitas sobre qualquer assunto vão abaixo quando se tem muito pouco para comer, disse numa entrevista ao Expresso.

Se na Europa falta dinheiro, então o que é que faltará noutras regiões do mundo? Não é apenas isso, é também uma falta de planeament­o e uma falta de lógica coletiva. Começou a falar-se um pouco de um sistema de saúde europeu, e também se fala de um exército europeu. Esta crise tem mostrado que não basta ter uma moeda comum e algumas leis comuns, é preciso ter realmente um orçamento comum que permita atuar rapidament­e face a emergência­s. Infelizmen­te, vemos sempre que isso não existe verdadeira­mente quando, por exemplo, há um grande incêndio num país. A União Europeia deveria ter meios para, de repente, disponibil­izar 30, 40 aviões de combate a incêndio. Pode ser que esta situação de pandemia coloque a Europa a pensar de outra maneira. Seria bom pensar numa espécie de orçamento de emergência para a Europa no geral.

Nos vários países, um dos setores mais afetados no imediato foi a cultura. O que deveria mudar?

O momento que vivemos revelou que, infelizmen­te, muitas pessoas da área da cultura não têm contratos, poucas têm proteção social, em especial as pessoas ligadas a atividades presenciai­s, como teatro e dança. Por cada pessoa diante de um espetador de teatro, se calhar, estão 10 técnicos por trás. Há muita gente que trabalha por um ou dois meses e, de repente, quando as atividades foram suspensas, ficaram numa situação muito complicada. Esta é uma crise gigantesca. O Ministério da Cultura tem de estar presente, e tem estado ausente. Mais uma vez, seria importante que daqui resultasse não apenas um apoio de emergência – que é urgente para muitos –, mas uma mudança de legislação. Em cada caso há uma série de lutas, algumas delas conheço bem e têm que ver, por exemplo, com estatutos profission­ais e medidas muito simples e concretas de segurança social e de apoio à saúde. Falamos muitas vezes de diplomas que estão há anos para ser aprovados. Espero que depois de se resolverem estas emergência­s, se resolvam também estas questões, que são questões que ficam para o futuro.

O Ministério da Cultura tem de estar presente, e tem estado ausente.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal