A rota do atum em Porto Santo
Vai um tipo ao Festival da Rota do Atum em Porto Santo a pensar nas criações dos chefes ocidentais e asiáticos, e sai de lá com um volume de informação científica sobre tunídeos que vai demorar tempo a processar.
Os números variam consoante as fontes, mas é mais ou menos certo que, com cerca de 60 quilos, os portugueses são os terceiros maiores comilões de peixe “per capita” do mundo, depois dos noruegueses e dos sul-coreanos. Tal proeza deveria fazer de cada cidadão um conhecedor consciente em matéria de peixe e de política de pescas, mas este cenário é uma miragem. Se a variedade, a qualidade e a quantidade de pescado descarregado nas nossas lotas alimenta restaurantes, mercados, grandes superfícies e festivais populares, a política de pescas, a ciência aplicada a esta, a sobrepesca ou a pesca sustentável são, infelizmente, notas de rodapé na comunicação social, com exceção do caso da sardinha em junho – peixe sem o qual os portugueses entrariam em depressão aguda.
E, todavia, entidades científicas e ONG publicam com regularidade relatórios sobre o processo de delapidação dos recursos marinhos por parte de meia dúzia de grandes frotas pesqueiras. A conclusão é esta: se continuarmos a permitir artes de pesca rapinadoras, a adiar o prazo para transformação de toda a pesca no Atlântico norte como sustentável (deverá ser em 2020) e a comer peixe a este ritmo, não só vamos destruir a vida no mar como vamos provocar a miséria de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.
Ora, por que razão estou eu para aqui com este arrazoado catastrofista? Porque, pela primeira vez, participei num festival gastronómico dedicado a uma espécie de peixe que não se limitou a juntar chefes, jantares a várias mãos e os “showcooking” da praxe. O Festival Rota do Atum, que
se realizou na semana passada em Porto Santo, teve a virtude de promover um conjunto de debates sobre as diferentes espécies de atum que passam nos mares da Madeira. De todo o atum pescado em águas portuguesas, esta região autónoma terá uma quota de 60%, diz a organização.
Ou seja, ficamos a conhecer as diferenças entre as espécies de atum, os seus comportamentos, o estado dos “stocks”, as artes de pesca sustentáveis (e as agressivas), o volume de capturas na região, a estratégia do governo regional para o setor, a formação dos pescadores, a melhoria das condições nas embarcações, o trabalho da indústria na rastreabilidade do peixe entre a hora da captura e o momento e, inclusive, os hábitos alimentares dos madeirenses no que diz respeito ao pescado.
Ou seja, quem se inscreveu no festival provou pratos de chefes nacionais, japoneses, espanhóis ou australianos, foi à pesca, assistiu a “workshops”, viu desmanchar um rabilo com 140 quilos, conversou com gente de várias áreas da pesca, mandou uns mergulhos, divertiu-se e regressou a casa mais culto em matéria de atum. Uma festa.
Este é um festival que nasceu do empenho de Bruno Martins, o diretor do Vila Baleira Resort. É preciso ter paixão, capacidade de organização e uma boa dose de loucura para colocar de pé um evento desta natureza numa ilha como Porto Santo, mas Bruno é aquele português que vive de desafios. E este festival é coisa planeada há muitos anos.
A partir da segunda edição do festival há, naturalmente, acertos a fazer nos eventos seguintes, com destaque para a organização dos jantares com chefes cabeças de cartaz. Apesar da importância de abrir estes momentos a um maior número de pessoas, a verdade é que servir menus criativos de inúmeros pratos difíceis de empratar e com a cadência e serviço certos é uma tarefa impossível quando, na sala, estão largas dezenas de convidados. Os clientes ficam impacientes e os chefes brilham pouco. O chefe Cordeiro – curador e animador do evento – e o chefe Manuel Santos, responsável das cozinhas do Vila Baleira Resort e filho adotivo de Porto Santo, saberão dar a volta ao assunto.
Creio que um festival desta natureza deveria, por um lado, mostrar alguns dos pratos emblemáticos da cozinha do Porto Santo (há produtos, receitas esquecidas e gente com memória) e, por outro, trazer para o espaço do Vila Baleira Resort aqueles que estão na origem de tudo isso: os pescadores. Não falo de armadores. Falo mes
DURANTE A TEMPORADA DE PESCA AO ATUM, CADA UM DOS 13 ATUNEIROS NO MAR DA MADEIRA PODE CAPTURAR APENAS 20 RABILOS POR SEMANA, POR SE ACREDITAR QUE A ESPÉCIE RECUPEROU NOS ÚLTIMOS ANOS. OS ATUNS SÃO CAPTURADOS PELA TÉCNICA DO SALTO E VARA, ARTE QUE I MPEDE A DELAPI DAÇÃO DOS “STOCKS”.
mo de pescadores. E por três razões: primeiro, porque é de elementar justiça; segundo, porque envolvidos e respeitados sentirão maior responsabilidade e brio na seu trabalho de alto risco e, terceiro, porque um pescador é um poço de histórias.
É verdade que aprendi muito com as biólogas Mirandolina Freitas e Bárbara Cavaleiro, com Avelino Marques (Grupo Vidinha) e com Luís Freitas (diretor regional das Pescas da Madeira), mas nunca dispenso uma boa conversa com pescadores. Sabem muito.
Temos, enquanto país comilão de peixe e com um mar imenso, a obrigação de tratar bem espécies que demoram anos a crescer para nos dar prazer à mesa. Temos o dever de respeitar e recuperar um recurso escasso. Em nome da natureza e das gerações seguintes. Assim, o Festival Rota do Atum faz a diferença.