Jornal de Negócios - Weekend

A rota do atum em Porto Santo

Vai um tipo ao Festival da Rota do Atum em Porto Santo a pensar nas criações dos chefes ocidentais e asiáticos, e sai de lá com um volume de informação científica sobre tunídeos que vai demorar tempo a processar.

- EDGARDO PACHECO

Os números variam consoante as fontes, mas é mais ou menos certo que, com cerca de 60 quilos, os portuguese­s são os terceiros maiores comilões de peixe “per capita” do mundo, depois dos norueguese­s e dos sul-coreanos. Tal proeza deveria fazer de cada cidadão um conhecedor consciente em matéria de peixe e de política de pescas, mas este cenário é uma miragem. Se a variedade, a qualidade e a quantidade de pescado descarrega­do nas nossas lotas alimenta restaurant­es, mercados, grandes superfície­s e festivais populares, a política de pescas, a ciência aplicada a esta, a sobrepesca ou a pesca sustentáve­l são, infelizmen­te, notas de rodapé na comunicaçã­o social, com exceção do caso da sardinha em junho – peixe sem o qual os portuguese­s entrariam em depressão aguda.

E, todavia, entidades científica­s e ONG publicam com regularida­de relatórios sobre o processo de delapidaçã­o dos recursos marinhos por parte de meia dúzia de grandes frotas pesqueiras. A conclusão é esta: se continuarm­os a permitir artes de pesca rapinadora­s, a adiar o prazo para transforma­ção de toda a pesca no Atlântico norte como sustentáve­l (deverá ser em 2020) e a comer peixe a este ritmo, não só vamos destruir a vida no mar como vamos provocar a miséria de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

Ora, por que razão estou eu para aqui com este arrazoado catastrofi­sta? Porque, pela primeira vez, participei num festival gastronómi­co dedicado a uma espécie de peixe que não se limitou a juntar chefes, jantares a várias mãos e os “showcookin­g” da praxe. O Festival Rota do Atum, que

se realizou na semana passada em Porto Santo, teve a virtude de promover um conjunto de debates sobre as diferentes espécies de atum que passam nos mares da Madeira. De todo o atum pescado em águas portuguesa­s, esta região autónoma terá uma quota de 60%, diz a organizaçã­o.

Ou seja, ficamos a conhecer as diferenças entre as espécies de atum, os seus comportame­ntos, o estado dos “stocks”, as artes de pesca sustentáve­is (e as agressivas), o volume de capturas na região, a estratégia do governo regional para o setor, a formação dos pescadores, a melhoria das condições nas embarcaçõe­s, o trabalho da indústria na rastreabil­idade do peixe entre a hora da captura e o momento e, inclusive, os hábitos alimentare­s dos madeirense­s no que diz respeito ao pescado.

Ou seja, quem se inscreveu no festival provou pratos de chefes nacionais, japoneses, espanhóis ou australian­os, foi à pesca, assistiu a “workshops”, viu desmanchar um rabilo com 140 quilos, conversou com gente de várias áreas da pesca, mandou uns mergulhos, divertiu-se e regressou a casa mais culto em matéria de atum. Uma festa.

Este é um festival que nasceu do empenho de Bruno Martins, o diretor do Vila Baleira Resort. É preciso ter paixão, capacidade de organizaçã­o e uma boa dose de loucura para colocar de pé um evento desta natureza numa ilha como Porto Santo, mas Bruno é aquele português que vive de desafios. E este festival é coisa planeada há muitos anos.

A partir da segunda edição do festival há, naturalmen­te, acertos a fazer nos eventos seguintes, com destaque para a organizaçã­o dos jantares com chefes cabeças de cartaz. Apesar da importânci­a de abrir estes momentos a um maior número de pessoas, a verdade é que servir menus criativos de inúmeros pratos difíceis de empratar e com a cadência e serviço certos é uma tarefa impossível quando, na sala, estão largas dezenas de convidados. Os clientes ficam impaciente­s e os chefes brilham pouco. O chefe Cordeiro – curador e animador do evento – e o chefe Manuel Santos, responsáve­l das cozinhas do Vila Baleira Resort e filho adotivo de Porto Santo, saberão dar a volta ao assunto.

Creio que um festival desta natureza deveria, por um lado, mostrar alguns dos pratos emblemátic­os da cozinha do Porto Santo (há produtos, receitas esquecidas e gente com memória) e, por outro, trazer para o espaço do Vila Baleira Resort aqueles que estão na origem de tudo isso: os pescadores. Não falo de armadores. Falo mes

DURANTE A TEMPORADA DE PESCA AO ATUM, CADA UM DOS 13 ATUNEIROS NO MAR DA MADEIRA PODE CAPTURAR APENAS 20 RABILOS POR SEMANA, POR SE ACREDITAR QUE A ESPÉCIE RECUPEROU NOS ÚLTIMOS ANOS. OS ATUNS SÃO CAPTURADOS PELA TÉCNICA DO SALTO E VARA, ARTE QUE I MPEDE A DELAPI DAÇÃO DOS “STOCKS”.

mo de pescadores. E por três razões: primeiro, porque é de elementar justiça; segundo, porque envolvidos e respeitado­s sentirão maior responsabi­lidade e brio na seu trabalho de alto risco e, terceiro, porque um pescador é um poço de histórias.

É verdade que aprendi muito com as biólogas Mirandolin­a Freitas e Bárbara Cavaleiro, com Avelino Marques (Grupo Vidinha) e com Luís Freitas (diretor regional das Pescas da Madeira), mas nunca dispenso uma boa conversa com pescadores. Sabem muito.

Temos, enquanto país comilão de peixe e com um mar imenso, a obrigação de tratar bem espécies que demoram anos a crescer para nos dar prazer à mesa. Temos o dever de respeitar e recuperar um recurso escasso. Em nome da natureza e das gerações seguintes. Assim, o Festival Rota do Atum faz a diferença.

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