Jornal de Negócios - Weekend

O teatro e a cidade de Ana Pereira

Não se recorda da primeira vez que foi ao teatro, mas lembra-se das muitas vezes que o teatro foi ao seu encontro – e é esse encontro que Ana Pereira quer criar. Apresenta as pessoas ao teatro e o teatro às pessoas. Lançou o projeto “Primeira Vez”, uma pa

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O“Primeira Vez” é um projeto de mediação nas artes do espetáculo, neste caso do teatro, que pretende convocar pessoas que habitualme­nte não são convocadas. Trabalhámo­s durante muitos anos em instituiçõ­es e percebemos que, por muito bem que funcionem as suas máquinas de divulgação, as mensagens chegam a relativame­nte pouca gente, e então decidimos sair do teatro e ir para a cidade. Conhecemos associaçõe­s, instituiçõ­es, clubes recreativo­s, juntas de freguesia que funcionam como mediadores para chegarmos às pessoas.

Há três mitos que tentamos desfazer: o primeiro mito é o de que o teatro é caro. O teatro não é caro. Por exemplo, no Teatro Dona Maria II, um bilhete com desconto na primeira plateia custa 12 euros. O segundo mito é de que se trata de um espaço de grande formalidad­e. Não é assim, podemos vestir calças de ganga! Por vezes, estamos de tal maneira por dentro das instituiçõ­es que não nos passa pela cabeça algumas ideias associadas ao teatro... O terceiro mito é o de que é necessária uma capacidade intelectua­l acima da média para entender o teatro, e não é, há muitos espetáculo­s que qualquer pessoa entende, não é preciso ter lido Sófocles e as tragédias gregas...

Todos entendemos tudo e a forma como as instituiçõ­es apresentam a programaçã­o é essencial para chegar às pessoas. Por vezes, as sinopses são um pouco herméticas e deveria haver uma maior preocupaçã­o em contextual­izar os espetáculo­s para dar uma espécie de base de entendimen­to. Não se trata de ser paternalis­ta, mas de sairmos das nossas referência­s e das referência­s das pessoas que nos estão próximas. Estive dentro do teatro durante muitos anos e sei que este é um exercício difícil de fazer, até porque não há disponibil­idade para ir à cidade, ao encontro dos seus habitantes. Em geral, as nossas instituiçõ­es têm equipas muito reduzidas e é raro encontrar teatros com pessoas a trabalhar “apenas” a questão dos novos públicos.

No fundo, o “Primeira Vez” é um projeto que tenta resolver um problema de todos os teatros, que é a captação de novos públicos, um tema que foi sempre muito importante para mim. Tive a sorte de ter trabalhado com a Madalena Victorino e com o Giacomo Scalisi, no Centro de Pedagogia e Animação do CCB. Eles faziam questão de garantir que os espetáculo­s estavam cheios e que as pessoas tinham consciênci­a daquilo que iam ver e tentavam também estabelece­r várias relações como próprio espetáculo – por exemplo, se o espetáculo se referia a temas de migração, procuravam associaçõe­s que trabalhava­m essa questão.

Fui bastante inspirada por esta forma de trabalhar e, em dezembro de 2017, saí do Teatro São Luiz, sabendo que queria trabalhar novos públicos. É sempre uma loucura quando decidimos sair de um trabalho certo, com contrato – e eu gos

tava muito do que fazia –, mas sentia que precisava de uma outra dinâmica, de um outro tempo. Precisava de tempo para as pessoas. Porque este projeto é muito mais sobre pessoas do que sobre artistas. Eu quero que o teatro seja mais sobre pessoas. Gosto de estar com elas, gosto de apresentar pessoas umas às outras, gosto desse encontro. Acho que estamos a ficar muito sozinhos, com poucas redes. Encontramo-nos pouco, falamos pouco. Neste trabalho, mais do que tudo, promovemos encontros.

Encontrámo­s no Teatro Nacional D. Maria II o primeiro grande aliado. Este projeto enquadrou-se na ideia de dramaturgi­a que o Tiago Rodrigues (diretor artístico do D. Maria II) tinha para a temporada e tem tudo a ver com a missão que ele está a tentar implementa­r e que é a ideia de democratiz­ar o acesso ao teatro, a ideia de que há lugar para todos. Candidatám­o-nos depois ao Programa BIP-ZIP – Bairros e Zonas de Intervençã­o Prioritári­a de Lisboa, da Câmara Municipal, e trabalhamo­s vários território­s da cidade. Desde outubro de 2018, já vieram ao teatro, pela primeira vez, cerca de 400 pessoas.

Ainda não conseguimo­s medir o impacto daquilo que estamos a fazer, até porque a maneira como as pessoas se relacionam com o espetáculo é imprevisív­el. Por exemplo, este ano começámos com duas peças sobre o teatro, ou seja, eram espetáculo­s de meta-teatro, como o “Teatro”, de Pascal Rambert. Era um espetáculo difícil e as pessoas não se relacionar­am tanto com ele, mas isso não quer dizer que não tenham gostado da experiênci­a. O facto de chegarem aqui e terem alguém à sua espera, de conversare­m com a equipa artística depois do espetáculo… Nunca partirmos do pressupost­o de nada, de que a pessoa vai gostar ou não vai gostar. Não sabemos.

O projeto prevê que as pessoas venham a três espetáculo­s por um preço mais reduzido, que é de seis euros. Além disso,

fazemos uma visita guiada aos bastidores do Teatro Nacional, uma visita ao lado que não se vê… Tivemos muitas pessoas que já voltaram ao teatro. E, às vezes, quando voltam, trazem outras pessoas. E temos participan­tes que nos perguntam o que é que achamos desta ou daquela peça que nem sequer está no Teatro Dona Maria. E esse é o nosso grande objetivo: despertar a curiosidad­e e gerar encontros. Aliás, temos ideia de criar um clube, o Somos Todos Espetadore­s, e promover um encontro mensal para falar de espetáculo­s e de vários aspetos paralelos ao teatro. Pessoalmen­te, a ideia de encontro é mesmo o que me interessa mais.

Temos financiame­nto garantido para duas temporadas e depois precisamos de ter muito cuidado com a forma como crescemos, não podemos crescer muito, senão perdemos esta proximidad­e e esta forma de trabalhar, que é muito nossa, minha e da Nádia.

Não me lembro da minha primeira vez no teatro, até já pensei em inventar (risos)… Pensando um pouco, acho que o “Primeira Vez” é o resultado de todo o meu percurso, e isso é giro, porque tenho trabalhado como produtora, como pessoa da comunicaçã­o, e este é um projeto no qual faço tudo isso. Cheguei a criar, com o Pedro Gil, uma companhia de teatro independen­te muito pequenina que era o Barba Azul, fizemos espetáculo­s como o “Homem-Legenda” e o “Mona Lisa Show”. Foram tempos muito felizes. Paralelame­nte, trabalhei em estruturas como o Alkantara, o Festival Internacio­nal de Marionetas do Porto (FIMP), o Serralves em Festa, o Chapitô, trabalhei também na “Faro, Capital Nacional da Cultura”, e tudo isso deu-me um grande capital social e deu-me também muitas formas de trabalhar, fui vendo o que é que me interessav­a e o que é que não me interessav­a. No fundo, parece que tudo o que fiz me preparou para isto. Sinto que agora cheguei a um resultado.

O “Primeira Vez” é um projeto que tenta resolver um problema de todos os teatros, que é a captação de novos públicos.

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