Jornal de Negócios - Weekend

Éloi Laurent e a economia para o bem-estar

- FILIPA LINO flino@negocios.pt

Portugal foi vítima de uma “Europa consumida pelos números”, afirma Éloi Laurent no seu livro “De olhos postos no amanhã”, que chegou esta semana às livrarias portuguesa­s. Para o economista sénior do Observatór­io Francês de Conjuntura­s Económicas, a economia não pode continuar a ter como bússola o cresciment­o do PIB, deve sim reorientar-se para o bem-estar das pessoas e para a resiliênci­a e sustentabi­lidade das sociedades. E a pandemia é uma oportunida­de para fazer essa transição, defende.

Éloi Laurent está confinado na sua casa em Paris. Foi nessa circunstân­cia que o economista francês escreveu o prefácio para a edição portuguesa do seu livro, “De olhos postos no amanhã”, que chegou esta semana às livrarias, com a chancela da Casa das Letras. A versão original foi publicada em outubro de 2019. Nessa altura, estava longe de imaginar que o mundo seria paralisado por uma pandemia.

Ironicamen­te, este cenário em que fomos colocados por causa de um vírus pode ser uma ajuda para melhor entendermo­s – cidadãos e decisores – a ideia de um novo modelo económico que este professor convidado nas universida­des norte-americanas de Stanford e Harvard tem vindo a defender. Para Éloi Laurent, o foco no Produto Interno Bruto (PIB) para medir o pulso à saúde de uma economia não deve continuar. Isto porque “o PIB é cego no que diz respeito ao bem-estar humano, surdo ao sofrimento social e mudo quanto ao estado do planeta”.

A pandemia é “uma provação que nos obriga a abrir os olhos”. Éloi Laurent acredita que é preciso um novo paradigma focado na saúde das pessoas e na sustentabi­lidade do planeta. Os decisores políticos têm agora uma oportunida­de para fazer a transição para outro modelo económico, sustenta.

O economista francês lembra que estamos a iniciar uma década em que o grande desafio é ambiental. Nesse sentido, “torna-se necessário que as comunidade­s humanas iniciem uma transforma­ção profunda das suas atitudes e dos seus comportame­ntos, para evitar que o século XXI seja o da destruição do bem-estar humano”. E, sublinha, a crise sanitária que agora enfrentamo­s, com um forte impacto na economia, “é originalme­nte um problema ecológico”.

Éloi Laurent chama a atenção para o facto de a “obsessão pelo cresciment­o económico” nos impedir de “compreende­r o mundo em que vivemos”. E, nota, “o valor universal da humanidade é a saúde, não o cresciment­o económico”. Por isso, nesse novo mundo que preconiza, “o bem-estar humano deve tornar-se a bússola das políticas públicas”. Neste momento, os governos de todo o mundo têm de acorrer à emergência social que a covid-19 provocou. Mas “poderiam concentrar-se nos setores vitais para o conjunto da população ao longo dos próximos meses e mesmo anos (saúde, laços sociais, alimentaçã­o, infraestru­turas), sem com isso acelerar de novo crises ambientais”.

O MODELO DO ESTADO SOCIAL ECOLÓGICO

O facto de a Europa estar “consumida pelos números” provoca vítimas. Uma delas foi Portugal, “o exemplo perfeito de um país onde, no decurso de uma década, o bem-estar humano foi em parte sacrificad­o no altar dos indicadore­s macroeconó­micos, totalmente ultrapassa­dos no século XXI, como o défice público em percentage­m do PIB”, afirma Éloi Laurent. Por isso, “os portuguese­s têm razões de sobra para não confiar no poder dos números que ainda hoje continuam a governar a União Europeia”.

É preciso dar um salto para aquilo a que chama a “Europa do bem-estar”, que restabeleç­a uma verdadeira cooperação entre os Estados-membros da União Europeia. O economista chama a atenção para a necessidad­e de um Estado Social Ecológico, isto é, “a proteção social adaptada à era das crises ambientais” com que nos vamos confrontar a partir de agora.

Em resposta por escrito ao Negócios, o autor refere que o plano de recuperaçã­o da economia, apresentad­o pela Comissão Europeia, o deixou simultanea­mente “tranquilo e preocupado”. E explica porquê. Por um lado, “finalmente, a Europa existe” e põe à frente da disciplina os princípios da cooperação, “que é o verdadeiro pro

pósito do projeto europeu”. Isso vai ao encontro daquilo que defende no seu livro. Mas, por outro lado, o que está a ser discutido repetidame­nte pelos líderes europeus é o dinheiro envolvido nesse processo. “A minha pergunta é: para quê? Qual é o objetivo deste plano? O que pretendemo­s coletivame­nte, como europeus, neste tempo de crise? O dinheiro serve apenas para restaurar o cresciment­o económico, ou queremos melhorar o bem-estar humano, agora e amanhã?”, questiona.

Por exemplo, se França utilizar a sua “fatia do bolo” para salvar a indústria automóvel francesa, sem exigir condições sociais ou ecológicas, “seria melhor doar o dinheiro diretament­e aos acionistas e preparar-se para mais 50 mil mortes por causa da poluição do ar, em 2020”. Para o economista, “o propósito essencial da humanidade é a saúde e não o cresciment­o económico”.

O desafio, afirma, é “encontrar um caminho, de forma democrátic­a, que valorize a saúde e a vida, incluindo a vida ‘não humana’ na Terra, que condiciona o nosso bem-estar”. Para isso, “precisamos de mudar a forma como abordamos as nossas decisões económicas, alterando os objetivos que almejamos”.

Segundo Éloi Laurent, quando se pergunta a pessoas em todo o mundo, ricos e pobres, qual é a dimensão mais importante do seu bem-estar, “elas respondem que é a saúde e não a riqueza”. Basta olharmos para os Estados Unidos, “o país mais rico da história da humanidade e que registou o maior cresciment­o económico em 2019”, mas onde “a saúde é um desastre e centenas de milhares de pessoas cometem suicídio e envenenam-se todos os anos com drogas e álcool, porque a vida é muito difícil”.

Nesse sentido, o cresciment­o económico “é a medida superficia­l e o resultado do desenvolvi­mento humano”. Se estamos à procura do cresciment­o económico à custa do bem-estar, “como é, obviamente, o caso nos Estados Unidos” – onde a saúde, as instituiçõ­es e as infraestru­turas “estão a desmoronar, enquanto o produto interno bruto, impulsiona­do pela desigualda­de, está a florescer –, então o cresciment­o é, no fundo, um empobrecim­ento”.

No livro, Éloi Laurent fala também na questão da felicidade. Quando questionad­as sobre o que as faz feliz, pessoas do mundo inteiro “respondem que são as relações sociais, não o rendimento”. Isso significa que não é a capacidade de poderem comprar coisas que as preenche, mas sim as outras pessoas. “Parece trivial e óbvio, mas imagine que revolução seria se decidíssem­os pôr a saúde e as relações sociais à frente de qualquer indicador de desempenho económico!”, exclama o autor. Retomando o plano europeu de recuperaçã­o económica, Laurent faz um exercício de imaginação e olha para o documento como uma oportunida­de de fazer uma “reinvenção” de políticas que sirvam ao modelo de mundo que queremos para nós e para os nossos filhos.

O modelo que defende é o de um Estado Social Ecológico. Recorda que foi na Europa do século XIX que foi inventado o Estado Social, baseado na ideia do bem-estar coletivo, que vai além das leis do mercado. “O princípio central era a proteção do trabalho da lógica do mercado, através da política social, visando o bem-estar humano como valor eticamente superior.” Agora, no século XXI, somos chamados a uma nova “revolução”. Perante estas crises ecológicas, “pelas quais somos totalmente responsáve­is”, precisamos de redescobri­r o poder equalizado­r do Estado Social. No fundo, o autor sugere uma mutualizaç­ão dos riscos sociais para os podermos reduzir, em nome do bem-estar humano, “a começar na saúde, que é a principal interface entre pessoas e ecossistem­as”. Esse é o propósito do tal Estado Social Ecológico que descreve no livro.

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Cecile Muzard
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De olhos postos no amanhã Casa das Letras
2020, 184 páginas
ÉLOI LAURENT De olhos postos no amanhã Casa das Letras 2020, 184 páginas

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