Jornal de Negócios - Weekend

Em louvor dos palhaços

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Uns palhaços, todos! É tão fácil, hoje, despejar os políticos pelo cano do esgoto. Palhaços, arlequins, jokers, encantador­es de serpentes. E eu peço ao José Tiny, admirável ilustrador destas pobres crónicas, que desenhe aqui um, demagogo, trumpiano e com um par de botas. Mas confesso já: não consigo calçar esse fácil par de botas. Talvez os políticos não sejam os palhaços que sempre são na conversa de café ou tasca. E se tiver de confessar, confesso também: quis ser tudo na vida. Adolescent­e, sonhava em Luanda que, depois de vir a Portugal fazer a universida­de – digressão que imaginei como um regabofe boémio –, voltaria à minha cálida colónia como cantor de banda rock: e isto era eu, que tenho uma orelha de Van Gogh para a música, a sonhar ser cantor. Quis ser tão aventureir­o como Lord Jim, comprei uma camisa à Dr. Jivago, tive outra, de marca Regojo, igual à de Eusébio e imitei-lhe os penáltis, bola para um lado guarda-redes para o outro. A professora primária via-me Papa, um Jorge Bergoglio “avant la lettre”. Só há uma coisa que nunca quis ser. Mesmo nos tempos de punhinho no ar, um pé no catolicism­o progressis­ta, todo teologia da libertação e, logo a seguir, a espalhar-me ao comprido num maoismo com pós de Pol Pot e o sal mais snob de Sorbonne Paris VII, se andei em incendiada­s e africanas manifs de poder popular, em verdade vos digo: nunca quis ser “um político”.

Escrita, rádio, cinema, televisão, quis tudo e quis “fazer coisas”, projectos, movimentos empresas, e já estive na fundação de quatro. Eis a ilusão que não me abandona: “fazer coisas” é o maior sinal de coragem de uma vida. Mas nunca quis ser político.

E, todavia, lembro-me. Aos dez anos, estava numa aula do 1.º F, minha primeira turma do Liceu Salvador Correia, quando soube que tinham assassinad­o John F. Kennedy com uma bala na cabeça. Uma pequenina e inocente comoção tocou os 20 e tal miúdos que nós éramos. JFK já era um homem terrivelme­nte adulto aos nossos olhos meninos. Mas havia nele uma magia que o impedia de ser o velho que, para nós, seria qualquer pessoa com a idade dele. JFK tinha uma ambígua juventude: vinha-lhe do físico, que o fazia parecer um júnior do Benfica de Luanda; vinha da francesa elegante, quase yé-yé, quase Sylvie Vartan, que era a namorada dele. E vinha, sobretudo, das ideias que eram o único chapéu dele, num tempo que odiava chapéus. Nas ideias de JFK havia laivos do “Sgt. Pepper’s” que ainda estava para vir. Ou do “I can’t get no satisfacti­on” que JFK nunca ouviu cantar.

Ao contrário do que, queixinhas e duvidosame­nte, cantaram os Pink Floyd, precisamos de educação e de professore­s que não deixem os “kids alone”, precisamos de ciência e de tecnologia, de crenças e valores, mas para termos mesmo um mundo novo precisamos de políticos, precisamos do sangue, suor e lágrimas dos Churchills, precisamos dos sonhos dos Luther Kings, precisamos que um tipo de fatinho, quase um puto, católico e adúltero, se ponha em bicos de pés e grite por cima do muro sinistro, “Ich bin ein Berliner”.

Hoje, não há ninguém que os compre. Chamam-lhes palhaços: todos uns palhaços! Mas, por tudo o que vi e passei, a única coisa que vou continuar a jurar a mim mesmo é que sem palhaços não há democracia. Por mais exangue que a patética democracia pareça estar, por mais vírus que lhe queiram enfiar na boca engelhada e triste, Merkel, Costa, Passos ou Marcelo, Macron ou Boris Johnson, mão esquerda ou direita, “fazem-lhe coisas”. A esse risco chamo coragem: nessas mãos que arriscam e mexem revejo-me.

Hoje, não há ninguém que os compre. Chamam-lhes palhaços: todos uns palhaços! Mas, por tudo o que vi e passei, a única coisa que vou continuar a jurar a mim mesmo é que sem palhaços não há democracia.

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MANUEL S. FONSECA O AUTOR ESCREVE COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

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