JOSÉ LUÍS PEIXOTO
Enquanto povo, precisamos de trabalhar a consciência coletiva
Rui Nabeiro, fundador do império dos cafés Delta, vai completar 90 anos a 28 de março. Para celebrar a data convidou José Luís Peixoto para escrever a sua biografia. A proposta foi recusada. O autor preferia escrever um romance biográfico e o empresário aceitou o desafio “na hora”, diz. O resultado está em “Almoço de Domingo”, um livro editado pela Quetzal, que chega às bancas a 25 de março. É uma das duas obras que o escritor lançou durante a pandemia. A primeira foi um livro de poesia. O confinamento acabou por ser um tempo produtivo, mas trouxe-lhe um sentimento de claustrofobia, que só desvaneceu com a dedicação ao trabalho. Peixoto sente falta de estar com os leitores porque eles “contaminam os outros”, fazem circular ideias.
E os portugueses precisam de trabalhar a sua capacidade de análise e debate.
O comendador Rui Nabeiro convidou-o para escrever a sua biografia. Porque não aceitou?
Uma biografia tem um compromisso com a realidade histórica e factual. Sou um grande leitor de biografias. Tenho imensas. Mas não tenho muito interesse em escrever biografias, porque é um trabalho mais do âmbito da História. Já o romance é uma narrativa com outras regras. Existe uma subtileza que tenho vindo a trabalhar há algum tempo, que é a ficção ter uma ligação com os factos. O romance permite certas subjetividades. É como se a biografia fosse uma filmagem e a literatura fosse a nossa memória. Sinto-me mais vocacionado para trabalhar a literatura. Quando expus a ideia do romance, o senhor Nabeiro aceitou na hora. E comecei logo a trabalhar. Recolhi uma quantidade enorme de material em Campo Maior. Pouco tempo depois, já nos estávamos a encontrar.
Não é arriscado escrever um romance biográfico sobre alguém que ainda está vivo? Corre o risco de a pessoa dizer que não se revê na obra.
É muito complicado e tem detalhes sensíveis, que podem sempre ser difíceis de gerir. Mas o senhor Nabeiro entendeu a minha explicação. Esta abordagem está presente em praticamente todos os livros que escrevi até hoje. Primeiro numa vertente autobiográfica, ou seja, trabalhando as minhas próprias memórias e, gradualmente, afastando-me delas. O meu romance anterior, “Autobiografia”, tem como personagem central o José Saramago e toca a sua vida também de uma forma literária. Este romance “Almoço de Domingo”, a meu ver, vai um passo mais à frente nessa proposta, ao ter um protagonista que está vivo e que tem as suas memórias como um grande património pessoal. Fiquei muito seduzido por esta ideia de lidar com um homem, que na altura tinha 88 anos, e de ele partilhar comigo as suas memórias. Isso é uma matéria realmente privilegiada e, ao mesmo tempo, muito sensível. Aceitar escrever algo que ensaia uma espécie de síntese daquela vida é intenso. É uma proposta bastante ambiciosa. Essa ambição também me seduziu. Por outro lado, escrever sobre o senhor Rui Nabeiro é uma maneira de escrever sobre mim. Há certos aspetos em que coincido muito diretamente com ele. Por exemplo, na ligação às origens. Esse vínculo inquebrável que existe no senhor Rui Nabeiro também sinto que existe em mim. Ou, por exemplo, a questão da família. O próprio título do livro – “Almoço de Domingo” – tem que ver com uma imagem familiar. O livro passa-se em três dias – 26, 27 e 28 de março de 2021. O domingo (28 de março) é o dia do aniversário do Rui Nabeiro. E no aniversário existe o encontro da família.
Foi o romance “Autobiografia” que levou Rui Nabeiro a convidá-lo a escrever este livro?
Sim. O senhor Nabeiro viu-me numa entrevista na televisão, quando estava a fazer a promoção do livro, e foi a partir daí que pediu para falar comigo. Fui a Campo Maior para falar com ele e nem sabia do que se tratava quando ia no caminho.
Como é que se preparou para escrever este romance?
Primeiro li muito material de imprensa, participações do senhor Nabeiro em livros, vídeos... Mas, para descrever situações concretas, precisava de falar com ele. Este é um livro que tem dimensões muito pessoais das suas memórias de criança, adolescente e já adulto. Só que para marcarmos os nossos encontros era complicadíssimo. Ele tem uma agenda com os dias todos marcados. Quando estávamos a conversar, o telefone estava constantemente a receber mensagens. Tem uma vida muito cheia. E, tendo em conta que daqui a uns dias faz 90 anos, isso é muito impressionante. Nessas conversas, chegou a dar-me matrículas de carros. Incluí, por exemplo, a matrícula do primeiro carro que teve nos anos 1950 ou detalhes como os locais onde passou a lua de mel. Ele lembra-se de tudo. São memórias que têm um potencial narrativo extraordinário. É uma vida de 90 anos muito
particular, com uma história muito marcante a muitos níveis. Tem elementos muito fortes para fazer um livro. Apesar de ser um livro de ficção e de eu ter tentado descrevê-lo com essa dimensão literária, pretende ser também exemplar de um homem de 90 anos. Eu já tinha feito algo parecido. O romance “Galveias”, que é o nome da aldeia onde nasci, passa-se num lugar muito concreto, que existe. Ao mesmo tempo, também pretende ser uma aldeia exemplar do interior de Portugal. É claro que a história do senhor Rui Nabeiro é bastante específica – o contrabando, Campo Maior, a sua vida empresarial, a família… Mas, numa certa dimensão, pode ser considerada como uma vida exemplar. Quis que o livro também pudesse ser lido assim.
Mesmo que os livros não sejam tão discutidos como o futebol, as ideias circulam. Os leitores contaminam os outros.