Jornal de Negócios - Weekend

JOSÉ LUÍS PEIXOTO

- FILIPA LINO BRUNO COLAÇO

Enquanto povo, precisamos de trabalhar a consciênci­a coletiva

Rui Nabeiro, fundador do império dos cafés Delta, vai completar 90 anos a 28 de março. Para celebrar a data convidou José Luís Peixoto para escrever a sua biografia. A proposta foi recusada. O autor preferia escrever um romance biográfico e o empresário aceitou o desafio “na hora”, diz. O resultado está em “Almoço de Domingo”, um livro editado pela Quetzal, que chega às bancas a 25 de março. É uma das duas obras que o escritor lançou durante a pandemia. A primeira foi um livro de poesia. O confinamen­to acabou por ser um tempo produtivo, mas trouxe-lhe um sentimento de claustrofo­bia, que só desvaneceu com a dedicação ao trabalho. Peixoto sente falta de estar com os leitores porque eles “contaminam os outros”, fazem circular ideias.

E os portuguese­s precisam de trabalhar a sua capacidade de análise e debate.

O comendador Rui Nabeiro convidou-o para escrever a sua biografia. Porque não aceitou?

Uma biografia tem um compromiss­o com a realidade histórica e factual. Sou um grande leitor de biografias. Tenho imensas. Mas não tenho muito interesse em escrever biografias, porque é um trabalho mais do âmbito da História. Já o romance é uma narrativa com outras regras. Existe uma subtileza que tenho vindo a trabalhar há algum tempo, que é a ficção ter uma ligação com os factos. O romance permite certas subjetivid­ades. É como se a biografia fosse uma filmagem e a literatura fosse a nossa memória. Sinto-me mais vocacionad­o para trabalhar a literatura. Quando expus a ideia do romance, o senhor Nabeiro aceitou na hora. E comecei logo a trabalhar. Recolhi uma quantidade enorme de material em Campo Maior. Pouco tempo depois, já nos estávamos a encontrar.

Não é arriscado escrever um romance biográfico sobre alguém que ainda está vivo? Corre o risco de a pessoa dizer que não se revê na obra.

É muito complicado e tem detalhes sensíveis, que podem sempre ser difíceis de gerir. Mas o senhor Nabeiro entendeu a minha explicação. Esta abordagem está presente em praticamen­te todos os livros que escrevi até hoje. Primeiro numa vertente autobiográ­fica, ou seja, trabalhand­o as minhas próprias memórias e, gradualmen­te, afastando-me delas. O meu romance anterior, “Autobiogra­fia”, tem como personagem central o José Saramago e toca a sua vida também de uma forma literária. Este romance “Almoço de Domingo”, a meu ver, vai um passo mais à frente nessa proposta, ao ter um protagonis­ta que está vivo e que tem as suas memórias como um grande património pessoal. Fiquei muito seduzido por esta ideia de lidar com um homem, que na altura tinha 88 anos, e de ele partilhar comigo as suas memórias. Isso é uma matéria realmente privilegia­da e, ao mesmo tempo, muito sensível. Aceitar escrever algo que ensaia uma espécie de síntese daquela vida é intenso. É uma proposta bastante ambiciosa. Essa ambição também me seduziu. Por outro lado, escrever sobre o senhor Rui Nabeiro é uma maneira de escrever sobre mim. Há certos aspetos em que coincido muito diretament­e com ele. Por exemplo, na ligação às origens. Esse vínculo inquebráve­l que existe no senhor Rui Nabeiro também sinto que existe em mim. Ou, por exemplo, a questão da família. O próprio título do livro – “Almoço de Domingo” – tem que ver com uma imagem familiar. O livro passa-se em três dias – 26, 27 e 28 de março de 2021. O domingo (28 de março) é o dia do aniversári­o do Rui Nabeiro. E no aniversári­o existe o encontro da família.

Foi o romance “Autobiogra­fia” que levou Rui Nabeiro a convidá-lo a escrever este livro?

Sim. O senhor Nabeiro viu-me numa entrevista na televisão, quando estava a fazer a promoção do livro, e foi a partir daí que pediu para falar comigo. Fui a Campo Maior para falar com ele e nem sabia do que se tratava quando ia no caminho.

Como é que se preparou para escrever este romance?

Primeiro li muito material de imprensa, participaç­ões do senhor Nabeiro em livros, vídeos... Mas, para descrever situações concretas, precisava de falar com ele. Este é um livro que tem dimensões muito pessoais das suas memórias de criança, adolescent­e e já adulto. Só que para marcarmos os nossos encontros era complicadí­ssimo. Ele tem uma agenda com os dias todos marcados. Quando estávamos a conversar, o telefone estava constantem­ente a receber mensagens. Tem uma vida muito cheia. E, tendo em conta que daqui a uns dias faz 90 anos, isso é muito impression­ante. Nessas conversas, chegou a dar-me matrículas de carros. Incluí, por exemplo, a matrícula do primeiro carro que teve nos anos 1950 ou detalhes como os locais onde passou a lua de mel. Ele lembra-se de tudo. São memórias que têm um potencial narrativo extraordin­ário. É uma vida de 90 anos muito

particular, com uma história muito marcante a muitos níveis. Tem elementos muito fortes para fazer um livro. Apesar de ser um livro de ficção e de eu ter tentado descrevê-lo com essa dimensão literária, pretende ser também exemplar de um homem de 90 anos. Eu já tinha feito algo parecido. O romance “Galveias”, que é o nome da aldeia onde nasci, passa-se num lugar muito concreto, que existe. Ao mesmo tempo, também pretende ser uma aldeia exemplar do interior de Portugal. É claro que a história do senhor Rui Nabeiro é bastante específica – o contraband­o, Campo Maior, a sua vida empresaria­l, a família… Mas, numa certa dimensão, pode ser considerad­a como uma vida exemplar. Quis que o livro também pudesse ser lido assim.

Mesmo que os livros não sejam tão discutidos como o futebol, as ideias circulam. Os leitores contaminam os outros.

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