À espera das super sementes do Pinhal de Leiria
“O que me preocupa mais na Mata Nacional de Leiria são as medidas avulso que vêm sendo tomadas e a falta de um plano de intervenção e recuperação”, alerta Octávio Ferreira, antigo técnico do ICNF.
Três anos e cinco meses depois de o fogo percorrer 86% dos 11.080 hectares da Mata Nacional de Leiria, desconhece-se a área a rearborizar com plantas trazidas de outras regiões e a área que será recuperada com a descendência do genótipo ali existente, aproveitando a regeneração natural. O balanço está agendado para depois da primavera. Até agora, foram investidos dois milhões de euros, mas os leilões de madeira ardida renderam 16 milhões. Este é um retrato do Pinhal do Rei em vésperas do Dia Mundial da Árvore.
Opovoamento mais antigo e de mais elevada qualidade que resta na Mata Nacional de Leiria encontra-se em Pedreanes, nos talhões 214 e 215. São 35 hectares de árvores com 80 anos que Octávio Ferreira espera ver “religiosamente preservados para conhecimento e estudo”. O engenheiro, que entre 1992 e 2001 geriu o chamado Pinhal de Leiria, ou Pinhal do Rei, lembra que “nos próximos decénios não haverá igual”. Representam o exemplo do melhor pinheiro-bravo no país, que dá a melhor semente e a melhor madeira.
Três anos e cinco meses depois de o fogo percorrer 86% dos 11.080 hectares da Mata Nacional de Leiria, desconhece-se a área a rearborizar com plantas trazidas de fora e a área que será recuperada com a descendência do genótipo ali existente através do aproveitamento da regeneração natural, que todos os especialistas e também o Governo consideram a melhor solução. O balanço está agendado para depois da primavera de 2021, segundo o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), decisão que, para Octávio Ferreira, “não faz sentido”, porque “passaram três primaveras e não há mais semente no solo capaz de germinar”. Nomeado pela Assembleia da República, o Observatório Técnico Independente tem opinião semelhante. Até à data, o Estado encaixou 16 milhões de euros com a venda de material lenhoso ardido em outubro de 2017 no Pinhal de Leiria, enquanto, no mesmo período, investiu ligeiramente mais de dois milhões.
O tempo da natureza não explica tudo. Há também o ritmo da Administração Pública, às vezes demasiado lento. Tão lento que nas coimas aplicadas pela GNR está incluído o ICNF, por não cumprir a lei da gestão de combustíveis nas áreas não ardidas, em casos detetados no outono de 2018, ou seja, um ano após o mais devastador incêndio de que há memória na Mata Nacional de Leiria, inteiramente localizada no concelho da Marinha Grande, com mais de 700 anos de história, origem de madeira para a construção naval na epopeia dos Descobrimentos, catedral verde e sussurrante no verso do poeta Afonso Lopes Vieira.
Submetida a plano de ordenamento, da autoria de Bernardino Barros Gomes, em 1892, foi considerada um modelo para o desenvolvimento da silvicultura, onde se melhoraram as características do pinheiro-bravo através da seleção dos melhores exemplares. Programas de arborização na Austrália, África do Sul e Nova Zelândia recorreram ao pinheiro de Leiria, que também serviu de base ao aperfeiçoamento da espécie em Portugal.
Até 2017, na Mata Nacional de Leiria, cada novo ciclo de vida começava com duas mil plantas por hectare, a partir dos 20 anos eram sujeitas a desbastes com intervalos de cinco ou dez anos, saindo 1.700 árvores de cada vez, sempre as piores. No corte fi
nal, ao fim de 70 ou 80 anos, restavam os melhores 300 pinheiros, de que se aproveitava a resina, a madeira e a semente para novos povoamentos.
Numa visita ao Pinhal do Rei em dezembro passado, o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, reconhecia: “Os melhores pinheiros que poderão vir a existir no Pinhal de Leiria são mesmo os que já cá existiam, as sementes de pinheiros que aqui estão. O ideal é que os pinheiros do futuro sejam filhos dos pinheiros do passado, que aqui lançaram sementes.”
Dos 9.500 hectares tocados pelas chamas em outubro de 2017, a regeneração natural está confirmada em 1.777 hectares, segundo dados do ICNF, que se encontra a avaliar a viabilidade noutros 2.000 hectares – o equivalente a 21% da área ardida – e promete resultados para depois da primavera de 2021.
Estão, entretanto, rearborizados 1.177 hectares. Até 2022, o número crescerá para 2.521 hectares. Outros 2.193 hectares serão rearborizados até 2024. No total, são 4.714 hectares.
A taxa de sucesso é de 80%. Mas, num artigo publicado em novembro no Jornal de Leiria, Octávio Ferreira classifica de urgente a intervenção em “talhões com bastantes plantas secas” e em “centenas de hectares onde somente se vê mato”.
Ainda segundo o ICNF, um dos viveiros do Estado irá utilizar semente do Pinhal de Leiria (em “stock” no Centro Nacional de Sementes Florestais) e as plantas estarão disponíveis para plantação na campanha 2021/2022. Todos os povoamentos do Pinhal de Leiria produtores de semente, que constavam no Registo Nacional de Materiais de Base, arderam.
FEITO E POR FAZER
Depois do incêndio que teve início a 15 de outubro de 2017, provocado por dois reacendimentos em terrenos fora do Pinhal de Leiria, o ICNF deu prioridade ao corte e remoção do material lenhoso ardido. Desde então, foram executados mosaicos e faixas de gestão de combustível, incluindo para controlo de espécies invasoras, como as acácias – que constituem a maior ameaça e já ocupam um vasto território. Também decorreram ações de rearborização (muitas delas feitas por voluntários) e avançou a estabilização de emergência junto à ribeira de São Pedro de Moel, que desagua na Praia Velha – a principal linha de água, onde está presente a lampreia de riacho ou “lampetra planeri”, espécie ameaçada que beneficia da mesma proteção legal que o lince-ibérico.
Segundo o ICNF, estão em curso trabalhos de rearborização, exploração de material lenhoso ardido, recuperação de áreas afetadas pela tempestade Leslie em 2018, reabilitação do pontão de madeira da ribeira de Moel e reconversão de um campo de futebol em Vieira de Leiria num parque de desporto e lazer.
A curto prazo, está prevista a execução de faixas de gestão de combustível da rede secundária, a rearborização de 1,8 hectares no Tremelgo, a melhoria de sinalética, miradouros e trilhos e o restauro de habitats.
Por outro lado, a Câmara Municipal da Marinha Grande anunciou planos para a instalação de uma estrutura de atividades lúdicas e desporto de aventura perto do histórico café Bambi (em São Pedro de Moel) e para a criação de um percurso pedestre e de painéis de interpretação da fauna e da flora ao longo da ribeira de Moel.
O investimento está acima dos dois milhões de euros, segundo o ministro do Ambiente. Até 2024, prevê-se que suba para 9,2 milhões. Será necessário mais, talvez mesmo o dobro. Fonte oficial do ministério diz ao Negócios que João Pedro Matos Fernandes está “completamente empenhado na total recuperação”
“O detalhe técnico e o rigor de informação é desconhecido. Isso não nos é dado, e julgo mesmo que é por não existir”, diz Francisco Castro Rego, presidente do Observatório Técnico Independente (que cessou funções em dezembro).
da Mata Nacional de Leiria, que quer deixar como “referência nacional em termos ambientais, económicos e culturais”, no final da legislatura. “Mais protegida, mais produtiva, mais biodiversa e mais apelativa.”
Não faltam receitas: a alienação de material lenhoso proveniente do incêndio de outubro de 2017 está 99% concluída e resultou num encaixe para o Estado de 16 milhões de euros. Já antes o Pinhal de Leiria dava lucro. A venda de material lenhoso e resina soma 8,3 milhões de euros nos anos 2010-2017 e 20,9 milhões de euros no período 2000-2009.
No entanto, entre 2010 e 2016, o investimento através da aquisição de serviços externos não passou dos 214 mil euros (valor sem IVA), fora trabalhos realizados com meios próprios. Entre 2000 e 2009, o investimento ascendeu a 1,8 milhões.
Gabriel Roldão, autor do livro “Elucidário do Pinhal do Rei”, denunciou reiteradamente, antes de 2017, que a Mata Nacional de Leiria se encontrava ao abandono. No Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Leiria, corre presentemente uma queixa apresentada por um morador do concelho da Marinha Grande que visa, por administração danosa, entre outros crimes, os responsáveis e organismos incumbidos da gestão do Pinhal de Leiria desde 2003, ano em que ocorreu outro grande incêndio, responsável pela destruição de 2.500 hectares.
Com o desinvestimento, diminuíram os recursos humanos: de 181 funcionários nos anos 1980 (quatro técnicos) para 11 em 2017 (um técnico). Em dezembro, o presidente do ICNF, Nuno
Banza, disse no Parlamento que estão atualmente contratados quatro técnicos e que os concursos abertos para assistentes operacionais atraíram 11 candidatos.
Há um antes e depois: até 1993, a Circunscrição Florestal da Marinha Grande tinha meios, orçamento e poder de decisão. Em 1993, foi extinta, interrompendo-se a autonomia administrativa, com mais de 100 anos. Os técnicos dependem hoje de chefias na Guarda e em Viseu que, por sua vez, respondem a Lisboa.
Quanto aos 1.500 hectares a que o fogo não chegou em outubro de 2017 – correspondentes a 14% da área da Mata Nacional de Leiria –, “são candidatos a arder”, porque também aí a intervenção do ICNF “é muito incipiente”, acusa Ricardo Vicente, deputado eleito pelo Bloco de Esquerda, engenheiro agrónomo e antigo membro do Observatório do Pinhal do Rei.
Para Octávio Ferreira, o investimento previsto em limpeza de matos nas áreas não ardidas “é manifestamente pouco”. Escreveu-o no final de novembro, explicando que está em causa “pinhal adulto que tem de ser cuidadosa e inteiramente preservado como se de uma relíquia se tratasse”. A bióloga Sónia Guerra, do Observatório do Pinhal do Rei, acrescenta que “há ações por desenvolver, nomeadamente, faixas de contenção com espécies autóctones folhosas junto aos aglomerados populacionais”.
CRÍTICOS PEDEM TRANSPARÊNCIA
Os técnicos não ligados ao ICNF têm manifestado preocupações com o ritmo da reflorestação, as pragas e doenças, o controlo da erosão hídrica e eólica, a proteção do cordão dunar litoral, a intervenção junto a linhas de água, as espécies invasoras e a reabilitação da rede de estradas, muitas delas encerradas. “Todo o diagnóstico que fizemos continua na ordem do dia e mantém a oportunidade”, refere Francisco Castro Rego, que presidiu ao Observatório Técnico Independente, cujo mandato terminou no final do ano.
Mas, ao dia de hoje, a principal crítica dirigida ao ICNF é a inexistência de planeamento, assente numa estratégia de longo prazo e num calendário de ações. Francisco Castro Rego afirmou-o no Parlamento em dezembro, e os especialistas ouvidos nos últimos dias pelo Negócios assinam por baixo. Sublinham que o plano de gestão florestal do Pinhal de Leiria data de 2010 e continua por alterar. “O que temos visto até hoje é dinheiro despejado sobre a Mata”, mas “sem exercício prévio de planeamento”, afirma Ricardo Vicente.
Na resposta, fonte do Ministério do Ambiente nota que em novembro e dezembro de 2017 o Governo aprovou um plano de intervenção na área ardida e que a rearborização se sustenta nas recomendações da Comissão Científica do Programa de Recuperação das Matas Litorais, constituída em janeiro de 2018, que o ministro quer ver “escrupulosamente cumprido”.
Segundo o ICNF, a elaboração da proposta de novo plano de
“Os 14% que não arderam são candidatos a arder. O ICNF não está a fazer a gestão que devia”, critica Ricardo Vicente, deputado do Bloco de Esquerda.
gestão florestal encontra-se no início (o prazo decorre até 2022).
Ricardo Vicente assegura que “a esmagadora maioria das recomendações da comissão científica não estão a ser aplicadas”. Pelo contrário, acusa, a intervenção do ICNF avança “sem suporte técnico e científico robusto”. Francisco Castro Rego concorda: “Isso é claro. Há um défice de utilização da informação.” E acrescenta lacunas na monitorização: “O detalhe não nos é dado, e julgo que é mesmo porque não existe.”
É também a análise de Margarida Balseiro Lopes, para quem falta “transparência e possibilidade de escrutínio”, acusações que o ministro do Ambiente considera “inconcebíveis”. A deputada do PSD, natural da Marinha Grande, conseguiu incluir no Orçamento do Estado para 2021 a criação de um portal eletrónico que vai permitir a qualquer pessoa, através da internet, consultar informação sobre a recuperação da Mata Nacional de Leiria. Segundo o ICNF, o portal é apresentado a 21 de março.
A escassa participação da sociedade civil é outra das críticas que se ouvem. Em outubro, três anos depois do incêndio, a presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande, Cidália Ferreira, eleita pelo PS, pedia “um caminho mais célere” e “um investimento muito mais sério, concertado e continuado”. Agora, o município destaca, em comunicado, que as reuniões com o ICNF – cujas chefias regionais e nacionais mudaram – se têm revelado “bastante produtivas”.
MUSEU HÁ 22 ANOS NO PAPEL
Além da relevância económica, o Pinhal de Leiria representa para a população da Marinha Grande um lugar com valor social, cultural, sentimental e ambiental, destino de piqueniques, namoros e passeios em família e de celebração do feriado municipal, o Dia da Espiga. Margarida Balseiro Lopes queixa-se da “falta de estratégia” para as áreas de lazer e convívio, enquanto Hugo Simões, membro do Observatório do Pinhal do Rei, formado em recursos naturais, ambiente e sistemas agroflorestais, adianta que “há muito a fazer na zona de proteção” que fixa as dunas junto à costa e noutras “que têm espécies com interesse ecológico e de conservação”.
As origens da Mata Nacional de Leiria são anteriores a D. Dinis, em cujo reinado ocorreram grandes sementeiras e as primeiras regras de administração. Alguns textos atribuem a fundação a D. Afonso III, outros a D. Sancho I, na linguagem simbólica é obra da Rainha Santa que, do regaço divino, tirou as sementes do verde pino. Tema, certamente, de interesse para o prometido Museu Nacional da Floresta, que o então ministro da Agricultura, Capoulas Santos, confirmou na Marinha Grande um ano depois do incêndio de outubro de 2017. No Orçamento do Estado para 2021, estão inscritos 200 mil euros para o projeto. O Governo diz agora que tem de ser o município a liderar o processo. E até ver tudo continua no papel, onde está há 22 anos, desde a Lei 108/99, de 1 de agosto, que criou o Museu Nacional da Floresta.