Só a crise dos mísseis é que me confina
Devo dizer que nutro uma profunda e genuína admiração pelos negacionistas da pandemia de covid-19, pela razão mais simples de todas: é preciso ter muito de tudo para negar uma evidência.
É verdade que não se trata de um caso único. Há pessoas que acreditam que Elvis Presley ainda está vivo, outras que teimam a pés juntos e com os dedos das mãos separados (para mostrarem que não estão a fazer figas) que o homem nunca foi à Lua, e há ainda um grupo de irredutíveis que defende que a terra é plana.
Todavia, estes negacionistas da covid-19 pertencem a outra estirpe. Na verdade, não negam a pandemia, renegam a forma como ela está a ser combatida. Por isso, fazem coisas para mostrarem a sua revolta, tais como manifestações, a última das quais foi realizada no passado fim de semana, onde utilizaram palavras de ordem supimpas como: “Devolvam a liberdade”, “Deixem as crianças viver”, “O vírus são os media”, “Sabemos pensar e decidir” ou “Costa, Marcelo e DGS: Vemo-nos em Nuremberga”.
Nutro particular apreço por duas destas frases. Uma delas é “Deixem as crianças viver” que, no fundo, constitui um apelo para que não estrafeguem a criança que existe em cada um de nós e tem o direito a fazer birras, manifestações e quejandos. A outra é “Costa, Marcelo e DGS: Vemo-nos em Nuremberga”, na medida em que não define as circunstâncias do encontro nem porquê. Aliás, antes de partirem, será porventura útil saberem que o famoso tribunal militar de Nuremberga já não funciona, e que se for uma questão de direitos humanos convém marcar o encontro para Estrasburgo, na medida em que é lá que funciona um tribunal com essa finalidade.
Aliás, Costa delicia-se com o confinamento, visto que se trata de uma preciosa ajuda o Governo e o PS. A economia de rastos, o desemprego a crescer e cidadãos descontentes são condimentos de que um primeiro-ministro necessita para subir na escala da popularidade.
Mas isto são minudências. Os negacionistas clamam pela liberdade e têm liberdade para o fazer, tanto na rua como nos meios de comunicação social que tanto criticam. Apodam-se como movimentos pela verdade, assim mesmo, no singular, o que significa que consideram a verdade unívoca. Ou seja, se a verdade do negacionismo fosse maioritária, tudo indica que não aceitariam verdades que contrariassem a sua. Como ajuíza, ajuizadamente, um juiz pela verdade, “não está em causa qualquer pandemia, mas outrossim a subtração dos nossos direitos, liberdades e garantias”. É isso e tem-se notado. Por exemplo, se as coisas estivessem normais, em vez de Marcelo ter sido reconduzido administrativamente, teriam existido eleições presidenciais e agora, por estes dias, seriam apresentados candidatos autárquicos às catadupas. Infelizmente, tudo indica que também estas eleições não se irão realizar.
A pandemia, nesta medida, é um contratempo. Podia ter sido uma gripe, ou qualquer outra maleita. Factualmente, não se vê confinar ninguém por uma pandemia. Essa é que Eça, “fumando um pensativo cigarro”, enquanto medita sobre o extraordinário conteúdo do manifesto dos Médicos pela Verdade: “Não negamos que se trata de uma virose respiratória com repercussões pulmonares que podem ser muito graves nos pacientes com imunidade deprimida, doenças preexistentes ou idade muito avançada. Porém, em caso algum, justifica o exagero dos meios de comunicação social, que insistem em realçar constantemente números cumulativos que não correspondem à realidade atual e que só servem para alimentar o medo e o pânico na população, pânico esse que está atingir níveis idênticos ou mesmo superiores aos causados pelas duas guerras mundiais, pela gripe espanhola, pela gripe asiática, pela ‘crise dos mísseis de 1962’ e pelo advento da SIDA”.
Estas comparações são supimpas, altamente justificadas e configuram-se como uma almofada confortável, na qual os negacionistas podem repousar os seus pensamentos em liberdade. Eu, por exemplo, lembro-me cristalinamente dos portugueses terem corrido para suas casas, sem ninguém os mandar, quando deram de caras com a crise dos mísseis.
Descansem e tenham cuidado com o vírus dos media que é material contagioso.