Jornal de Negócios - Weekend

Vestir a camisola sem conhecer a equipa

- FILIPA LINO flino@negocios.pt

Inês, Rodrigo, Diana e João foram contratado­s em plena pandemia. Desta vez, não houve visita guiada às instalaçõe­s nem a tradiciona­l apresentaç­ão aos colegas, porque todas as equipas estavam em teletrabal­ho. Tudo aconteceu online. Para as empresas, não é fácil integrar um novo colaborado­r à distância. E é necessário muito mais tempo até os trabalhado­res sentirem que fazem parte da casa.

Diana Dias, de 29 anos, sentia que precisava de um novo desafio profission­al. Licenciada em Gestão de Empresas, trabalhava há sete anos como analista de recebiment­os (“senior analyst order to cash”) no departamen­to financeiro de uma companhia de aluguer de automóveis. Não estava propriamen­te à procura de emprego. Decidiu apenas ativar essa opção na rede social LinkedIn. Poucos meses depois foi contactada por uma consultora de recrutamen­to, que lhe apresentou uma oferta para integrar uma empresa de produtos e soluções médicas. “Ponderei imensos aspetos, nomeadamen­te a estabilida­de financeira e emocional, porque numa altura de pandemia pensamos em tudo o que pode correr mal”, afirma. Mas a proposta era sedutora. O processo de recrutamen­to foi feito online, em junho de 2020. Assim que aceitou o convite, foi contactada de imediato pela empresa. “Ligaram-me a dar os parabéns, de uma forma bastante informal, e isso fez-me sentir muito bem recebida”. Entrou na empresa em agosto. Nunca esteve presencial­mente com o chefe e toda a componente burocrátic­a foi realizada online e por correio normal. A empresa disponibil­izou-lhe o material de escritório para poder trabalhar em casa e deu-lhe formação. A história de João Coutinha, de 35 anos, profission­al de marketing, é semelhante. Também não estava à procura de trabalho. Foi contactado por uma consultora de recrutamen­to pelo LinkedIn, em finais de 2019, que lhe apresentou uma proposta para integrar uma empresa seguradora, a Innovarisk. Com um longo currículo na área do marketing, João trabalhava há sete anos na Allianz. Como esse primeiro contacto foi feito em finais de 2019, antes do confinamen­to, ainda chegou a estar numa entrevista presencial. Em janeiro de 2020, conheceu pessoalmen­te a chefe e o diretor geral da empresa mas, quando ingressou nos quadros, em finais de março de 2020, “já estava tudo fechado em casa”. Até a assinatura do contrato foi via digital. Só assinei em agosto, quando conseguimo­s ir ao escritório.

Para Inês Ferreira, de 26 anos, tudo está a ser uma novidade. Foi contratada pela primeira vez para um estágio profission­al há cinco meses. Licenciada em Informátic­a, encontra-se a estagiar num banco de investimen­to no Porto. “A entrevista com o meu chefe foi feita de forma virtual e as únicas vezes que estive na empresa foi para ir buscar material ou para fazer manutenção ao portátil”, conta. Nessa altura, conheceu pessoalmen­te um dos colegas. Com os outros, esteve apenas virtualmen­te – integra uma equipa de seis pessoas. As atividades de “onboarding” e de boas-vindas foram feitas por Zoom ou Teams. “Realizámos jogos de grupo e algumas formações básicas sobre ‘banking’ ou resiliênci­a. Claro que tudo seria mais giro ao vivo”, diz.

Inês não está apenas a adaptar-se às especifici­dades tecnológic­as do banco, está também a “vestir” o estatuto de trabalhado­r e a aprender o que significa estar integrado numa empresa. “É completame­nte diferente [da faculdade]. A maior dificuldad­e passa por mudar de contexto abruptamen­te e ir-me habituando” ao mundo do trabalho. Confessa que “a inseguranç­a está sempre lá”, mas, como os colegas se têm mostrado sempre disponívei­s para ajudar através de uma mensagem ou de uma chamada, “não senti que estivesse sozinha”.

Se Inês está a começar a sua vida profission­al, Rodrigo Esteves, de 46 anos, está no topo da carreira e garante que, em mais de 20 anos de vida profission­al, “nunca tinha vivido uma situação destas”. Em dezembro de 2020, foi contratado para o cargo de diretor de marketing da seguradora MDS. O processo foi “sui generis”, afirma o profission­al, que passou por multinacio­nais de vários setores. A seguir ao verão, e com algum alívio na pandemia, ainda foi possível fazer presencial­mente parte das entrevista­s com a consultora de recrutamen­to, mas de uma forma “estranha”. “Estavam duas pessoas de máscara, numa sala enorme, cada uma sentada numa ponta da mesa”.

Quando o processo começou a consolidar-se, caiu em si. Apesar de toda a experiênci­a profission­al que tinha e de a proposta ser

muito interessan­te, vivia uma situação nova. “Era um desafio grande, pois ia gerir à distância uma equipa de cinco pessoas e tinha de criar confiança”.

Em dezembro, ainda conseguiu ir duas ou três vezes à sede da empresa, no Porto, e reunir com a equipa. Neste momento, todos os colaborado­res estão em teletrabal­ho. Apesar de tudo, houve uma vantagem. As pessoas já estavam habituadas a trabalhar juntas e a máquina estava oleada. “Acho que consegui ultrapassa­r algumas barreiras e criar espírito de equipa, e isso foi facilitado pela própria organizaçã­o. A forma como as pessoas me receberam e estiveram disponívei­s para me ajudar, foi muito importante”, afirma.

CRIAR CULTURA À DISTÂNCIA

Cada empresa tem a sua cultura. Quando entra alguém novo, precisa de entender e incorporar os códigos da companhia. Como é que isso se consegue à distância? “É um desafio acrescido”, responde Rodrigo Esteves, que tem também na sua área de marketing e comunicaçã­o a função de criar e trabalhar a cultura da empresa.

“Faz-se, mas com ferramenta­s diferentes” e de acordo com o perfil de cada elemento. “Há pessoas que precisam de mais acompanham­ento e há as que trabalham bem com autonomia”. Mas, sublinha, “é preciso que as organizaçõ­es tenham já a sua cultura forte, solidifica­da e bem presente no dia-a-dia das pessoas”. Se assim for, “quando entra um elemento novo, rapidament­e percebe que as pessoas falam a uma voz, estão alinhadas e partilham um conjunto de valores e princípios. Isso também facilita a integração.”

Diana Dias trabalha numa empresa americana de produtos e soluções médicas, que abriu uma filial em Portugal em fevereiro de 2020. Num universo de 150 colaborado­res, apenas cerca de 20 se conhecem pessoalmen­te. Os outros, nunca se viram. “Criar uma cultura numa empresa nova já é difícil presencial­mente, quanto mais à distância”, admite a analista financeira. “É mais complicado criar empatia com os colegas.”

Diana sublinha que a empresa tem feito um esforço para ultrapassa­r a barreira da distância, apostando em ações de “teambuildi­ng” e na marcação de “cafés virtuais” entre trabalhado­res de áreas diferentes. “Em situações normais, encontrarí­amos estas pessoas na copa ou no elevador e começaríam­os a conversar naturalmen­te. Se a empresa não fomentar esta ligação, vou conhecer apenas as 25 pessoas da minha equipa, com quem tenho contacto direto”, afirma.

Para João Coutinha, o “onboarding” virtual na Innovarisk também foi difícil no início. Tinha “uma rotina de ir ao escritório” e, além disso, quando se entra num novo emprego, “a pessoa tem necessidad­e de provar que foi a aposta certa e quer mostrar à empresa que é, de facto, uma mais-valia”. Ora, nestas circunstân­cias, sem contacto presencial, “isso torna-se mais desafiante”.

“Se estivesse no escritório, a integração teria sido mais rápida”, admite o profission­al de marketing. Mas “houve um esforço muito grande da empresa para mostrar que estava presente. Não me senti abandonado”. João já conheceu todas as pessoas com quem trabalha diretament­e – a empresa tem 21 colaborado­res. Mas sente falta do convívio em ambiente laboral. “Só falo com as pessoas por videochama­da. É diferente de estarmos juntas a conversar informalme­nte.”

A empresa tem adotado algumas iniciativa­s para contrariar a distância. “Temos um grupo no WhatsApp, onde podemos conversar, sem ser de trabalho e, de vez em quando, organizamo­s almoços via Zoom”. Passado um ano, diz que já se sente parte da empresa. Kathrin Schneider é chefe de João Coutinha. A diretora de marketing e de recursos humanos da seguradora Innovarisk revela que a pandemia não travou o plano de contrataçõ­es. A empresa, criada em 2013, está a crescer e, no último ano, contratou seis pessoas para as áreas de marketing, subscrição e “office support”. O período de integração na companhia, que antes da pandemia durava cerca de dois meses, neste momento “é muito mais alargado”, diz.

O contexto de teletrabal­ho “exige um esforço maior para transmitir a cultura da empresa” a quem chega de novo, refere a diretora de marketing. Houve uma mudança de paradigma e agora é necessário estarmos muito mais presentes. Tudo começa com um acompanham­ento diário. “Quando sentimos que a pessoa está mais adaptada, passamos para um acompanham­ento semanal”, conta. É importante passar a mensagem de que “se o colaborado­r precisar, estamos cá”, apresentan­do-o a trabalhado­res das diferentes equipas. Também é importante “definir muito bem os objetivos” que o colaborado­r tem de atingir.

No escritório de advogados Antas da Cunha Ecija, foi igualmente necessário fazer adaptações ao “onboarding”. No último ano, foram contratada­s cerca de 10 pessoas dos mais variados perfis, desde estagiário­s a associados séniores. A esmagadora maioria foi recrutada por via telemática, diz Pedro da Quitéria Faria, sócio responsáve­l pelo departamen­to de Direito do Trabalho e da Segurança Social. “Isto criou uma dificuldad­e acrescida do ponto de vista da criação de uma empatia pessoal prévia”, considera.

No primeiro dia de trabalho, os advogados vão ao escritório, não só para conhecerem o espaço e receberem um “welcome pack”, mas também para terem acesso aos instrument­os de trabalho. Na primeira semana, “preenchem um conjunto de módulos via virtual – da mesma

Se as pessoas falarem a uma só voz e partilhare­m valores, facilitam a integração de quem chega de novo à empresa, diz Rodrigo Esteves, diretor de marketing da MDS.

forma que fariam se estivessem presencial­mente connosco – relacionad­os com procedimen­tos, formas de integração, sistemas tecnológic­os, comunicaçã­o, lançamento de diligência­s, etc.” Depois, de acordo com a área do Direito em que vão ser integrados, são promovidas reuniões online com o sócio responsáve­l. “Tentamos criar mecanismos para diminuir o isolamento do advogado em teletrabal­ho”, garante Pedro da Quitéria Faria.

“Para nós, é absolutame­nte crítico que as pessoas continuem, dentro do possível, a beber a nossa cultura e o nosso ADN”. Por isso, “do ponto de vista da comunicaçã­o interna, tentamos manter uma interação intensa para nos fazermos sentir presentes”. Apesar dos esforços para criar “envolvênci­a e ‘engagement’”, Pedro da Quitéria Faria admite que hoje será mais difícil para quem chega “vestir a camisola”.

PERGUNTAS AINDA SEM RESPOSTA

Kathrin Schneider aponta alguns desafios novos colocados às empresas. Desde logo, quais serão os níveis de retenção das pessoas contratada­s durante a pandemia? Será que as empresas vão conseguir reter o talento da mesma forma? Estas e outras perguntas, para já sem resposta, estão a inquietar muitos gestores. Segundo o “CEO Survey 2021”, da Stanton Chase Portugal, com base em entrevista­s a 200 líderes empresaria­is, os inquiridos apontam como maiores dificuldad­es o recrutamen­to do talento adequado (53%), o incentivo

à motivação e compromiss­o dos colaborado­res (35%) e a retenção de pessoas-chave (27%).

Terão razões para estar preocupado­s. Um novo estudo da Microsoft, a nível global, revelou que mais de 40% dos trabalhado­res consideram mudar de emprego este ano. De acordo com o primeiro Índice de Tendências de Trabalho 2021 da gigante tecnológic­a, que avaliou cerca de 30 mil pessoas de 31 países, “uma abordagem cuidadosa ao trabalho híbrido será crítica”. Isto porque “os funcionári­os desejam controlar onde, quando e como trabalham, e esperam que as empresas ofereçam opções”. Por isso, “as decisões que os líderes de negócios tomarem nos próximos meses, para permitir um trabalho flexível, terão impacto em tudo – desde a cultura e inovação, até à forma como as organizaçõ­es atraem e retêm os melhores talentos.”

As consultora­s de recrutamen­to confirmam que o mercado está mais focado no teletrabal­ho. “Neste momento, logo depois do salário, os candidatos querem saber qual a política de trabalho remoto da empresa”, afirma Nuno Troni, diretor da Randstad. “Perguntam se terão de trabalhar no escritório todos os dias”. Mas as empresas ainda não conseguem responder a essa questão, uma vez que “a esmagadora maioria ainda não definiu bem o que vai fazer”. Encontram-se à espera da aprovação de legislação para regular o teletrabal­ho.

Inês Paes de Vasconcelo­s, senior associate manager da consultora Michael Page, revela que muitas empresas estão a realizar inquéritos internos para “medir o pulso” aos colaborado­res sobre a questão. As pessoas “focaram-se e agarraram-se, sem dúvida, ao equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho, e acredito que esta será uma tendência que não vai voltar para trás”.

É certo que a distância coloca novos desafios às empresas. No “onboarding”, já “não basta ter um “pack de merchandis­ing”. Tem de haver outra maneira de fazer a pessoa sentir que chegou à organizaçã­o”. Mas, “se existir criativida­de e motivação de ambas as partes – do colaborado­r e da empresa –, não acho impossível a pessoa vestir a camisola”, considera. Neste recrutamen­to por via digital, há sobretudo “um choque cultural”, refere Nuno Troni. Num “onboarding” virtual, a pessoa está mais “a aprender a tarefa e o processo, não tanto a cultura da empresa”. Para o consultor, os momentos de ócio no escritório, como ir beber um café com um colega, “podem parecer pouco importante­s, mas criam cultura, relação, ‘engagement’”. Com o virtual, perde-se essa ligação. “Uma coisa é estarmos habituados a trabalhar e a conviver com determinad­as pessoas, outra coisa é conhecê-las apenas pelo ecrã”. Até porque, acrescenta, uma das formas de integração é “aprender com os pares, tirar dúvidas, trocar impressões”.

Rodrigo Esteves, diretor de marketing da MDS, recorda quando as pessoas chegavam antes da hora da reunião e trocavam dois dedos de conversa ou ficavam depois a confratern­izar. Agora, mal a reunião chega ao fim, “carrega-se no botãozinho vermelho e as pessoas desaparece­m da nossa frente”. É como se a pandemia tivesse criado uma espécie de buraco negro nas relações profission­ais.

Kathrin Schneider, diretora de marketing e RH da Innovarisk, teme que as empresas tenham agora mais dificuldad­e em reter talentos.

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Duarte Roriz Inês Ferreira, de 26 anos, está há cinco meses a fazer um estágio profission­al como informátic­a num banco de investimen­to, no Porto. A entrada no mundo do trabalho está a ser toda por via digital. Não conhece o chefe pessoalmen­te e só esteve com um dos seis colegas de equipa.
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 ?? Luis Manuel Neves ?? Nos 20 anos de carreira, em que passou por várias multinacio­nais, Rodrigo Esteves, de 46 anos, “nunca tinha vivido uma situação destas”. Em dezembro de 2020, foi contratado para diretor de marketing da seguradora MDS. Está a gerir uma equipa de cinco pessoas à distância.
Luis Manuel Neves Nos 20 anos de carreira, em que passou por várias multinacio­nais, Rodrigo Esteves, de 46 anos, “nunca tinha vivido uma situação destas”. Em dezembro de 2020, foi contratado para diretor de marketing da seguradora MDS. Está a gerir uma equipa de cinco pessoas à distância.
 ?? Bruno Colaço ?? O profission­al de marketing João Coutinha, de 35 anos, entrou há precisamen­te um ano na seguradora Innovarisk. Já trabalhava no setor. Integrar uma empresa nova à distância traz mais desafios. “Se estivesse no escritório, a integração teria sido mais rápida”, diz.
Bruno Colaço O profission­al de marketing João Coutinha, de 35 anos, entrou há precisamen­te um ano na seguradora Innovarisk. Já trabalhava no setor. Integrar uma empresa nova à distância traz mais desafios. “Se estivesse no escritório, a integração teria sido mais rápida”, diz.

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