Vestir a camisola sem conhecer a equipa
Inês, Rodrigo, Diana e João foram contratados em plena pandemia. Desta vez, não houve visita guiada às instalações nem a tradicional apresentação aos colegas, porque todas as equipas estavam em teletrabalho. Tudo aconteceu online. Para as empresas, não é fácil integrar um novo colaborador à distância. E é necessário muito mais tempo até os trabalhadores sentirem que fazem parte da casa.
Diana Dias, de 29 anos, sentia que precisava de um novo desafio profissional. Licenciada em Gestão de Empresas, trabalhava há sete anos como analista de recebimentos (“senior analyst order to cash”) no departamento financeiro de uma companhia de aluguer de automóveis. Não estava propriamente à procura de emprego. Decidiu apenas ativar essa opção na rede social LinkedIn. Poucos meses depois foi contactada por uma consultora de recrutamento, que lhe apresentou uma oferta para integrar uma empresa de produtos e soluções médicas. “Ponderei imensos aspetos, nomeadamente a estabilidade financeira e emocional, porque numa altura de pandemia pensamos em tudo o que pode correr mal”, afirma. Mas a proposta era sedutora. O processo de recrutamento foi feito online, em junho de 2020. Assim que aceitou o convite, foi contactada de imediato pela empresa. “Ligaram-me a dar os parabéns, de uma forma bastante informal, e isso fez-me sentir muito bem recebida”. Entrou na empresa em agosto. Nunca esteve presencialmente com o chefe e toda a componente burocrática foi realizada online e por correio normal. A empresa disponibilizou-lhe o material de escritório para poder trabalhar em casa e deu-lhe formação. A história de João Coutinha, de 35 anos, profissional de marketing, é semelhante. Também não estava à procura de trabalho. Foi contactado por uma consultora de recrutamento pelo LinkedIn, em finais de 2019, que lhe apresentou uma proposta para integrar uma empresa seguradora, a Innovarisk. Com um longo currículo na área do marketing, João trabalhava há sete anos na Allianz. Como esse primeiro contacto foi feito em finais de 2019, antes do confinamento, ainda chegou a estar numa entrevista presencial. Em janeiro de 2020, conheceu pessoalmente a chefe e o diretor geral da empresa mas, quando ingressou nos quadros, em finais de março de 2020, “já estava tudo fechado em casa”. Até a assinatura do contrato foi via digital. Só assinei em agosto, quando conseguimos ir ao escritório.
Para Inês Ferreira, de 26 anos, tudo está a ser uma novidade. Foi contratada pela primeira vez para um estágio profissional há cinco meses. Licenciada em Informática, encontra-se a estagiar num banco de investimento no Porto. “A entrevista com o meu chefe foi feita de forma virtual e as únicas vezes que estive na empresa foi para ir buscar material ou para fazer manutenção ao portátil”, conta. Nessa altura, conheceu pessoalmente um dos colegas. Com os outros, esteve apenas virtualmente – integra uma equipa de seis pessoas. As atividades de “onboarding” e de boas-vindas foram feitas por Zoom ou Teams. “Realizámos jogos de grupo e algumas formações básicas sobre ‘banking’ ou resiliência. Claro que tudo seria mais giro ao vivo”, diz.
Inês não está apenas a adaptar-se às especificidades tecnológicas do banco, está também a “vestir” o estatuto de trabalhador e a aprender o que significa estar integrado numa empresa. “É completamente diferente [da faculdade]. A maior dificuldade passa por mudar de contexto abruptamente e ir-me habituando” ao mundo do trabalho. Confessa que “a insegurança está sempre lá”, mas, como os colegas se têm mostrado sempre disponíveis para ajudar através de uma mensagem ou de uma chamada, “não senti que estivesse sozinha”.
Se Inês está a começar a sua vida profissional, Rodrigo Esteves, de 46 anos, está no topo da carreira e garante que, em mais de 20 anos de vida profissional, “nunca tinha vivido uma situação destas”. Em dezembro de 2020, foi contratado para o cargo de diretor de marketing da seguradora MDS. O processo foi “sui generis”, afirma o profissional, que passou por multinacionais de vários setores. A seguir ao verão, e com algum alívio na pandemia, ainda foi possível fazer presencialmente parte das entrevistas com a consultora de recrutamento, mas de uma forma “estranha”. “Estavam duas pessoas de máscara, numa sala enorme, cada uma sentada numa ponta da mesa”.
Quando o processo começou a consolidar-se, caiu em si. Apesar de toda a experiência profissional que tinha e de a proposta ser
muito interessante, vivia uma situação nova. “Era um desafio grande, pois ia gerir à distância uma equipa de cinco pessoas e tinha de criar confiança”.
Em dezembro, ainda conseguiu ir duas ou três vezes à sede da empresa, no Porto, e reunir com a equipa. Neste momento, todos os colaboradores estão em teletrabalho. Apesar de tudo, houve uma vantagem. As pessoas já estavam habituadas a trabalhar juntas e a máquina estava oleada. “Acho que consegui ultrapassar algumas barreiras e criar espírito de equipa, e isso foi facilitado pela própria organização. A forma como as pessoas me receberam e estiveram disponíveis para me ajudar, foi muito importante”, afirma.
CRIAR CULTURA À DISTÂNCIA
Cada empresa tem a sua cultura. Quando entra alguém novo, precisa de entender e incorporar os códigos da companhia. Como é que isso se consegue à distância? “É um desafio acrescido”, responde Rodrigo Esteves, que tem também na sua área de marketing e comunicação a função de criar e trabalhar a cultura da empresa.
“Faz-se, mas com ferramentas diferentes” e de acordo com o perfil de cada elemento. “Há pessoas que precisam de mais acompanhamento e há as que trabalham bem com autonomia”. Mas, sublinha, “é preciso que as organizações tenham já a sua cultura forte, solidificada e bem presente no dia-a-dia das pessoas”. Se assim for, “quando entra um elemento novo, rapidamente percebe que as pessoas falam a uma voz, estão alinhadas e partilham um conjunto de valores e princípios. Isso também facilita a integração.”
Diana Dias trabalha numa empresa americana de produtos e soluções médicas, que abriu uma filial em Portugal em fevereiro de 2020. Num universo de 150 colaboradores, apenas cerca de 20 se conhecem pessoalmente. Os outros, nunca se viram. “Criar uma cultura numa empresa nova já é difícil presencialmente, quanto mais à distância”, admite a analista financeira. “É mais complicado criar empatia com os colegas.”
Diana sublinha que a empresa tem feito um esforço para ultrapassar a barreira da distância, apostando em ações de “teambuilding” e na marcação de “cafés virtuais” entre trabalhadores de áreas diferentes. “Em situações normais, encontraríamos estas pessoas na copa ou no elevador e começaríamos a conversar naturalmente. Se a empresa não fomentar esta ligação, vou conhecer apenas as 25 pessoas da minha equipa, com quem tenho contacto direto”, afirma.
Para João Coutinha, o “onboarding” virtual na Innovarisk também foi difícil no início. Tinha “uma rotina de ir ao escritório” e, além disso, quando se entra num novo emprego, “a pessoa tem necessidade de provar que foi a aposta certa e quer mostrar à empresa que é, de facto, uma mais-valia”. Ora, nestas circunstâncias, sem contacto presencial, “isso torna-se mais desafiante”.
“Se estivesse no escritório, a integração teria sido mais rápida”, admite o profissional de marketing. Mas “houve um esforço muito grande da empresa para mostrar que estava presente. Não me senti abandonado”. João já conheceu todas as pessoas com quem trabalha diretamente – a empresa tem 21 colaboradores. Mas sente falta do convívio em ambiente laboral. “Só falo com as pessoas por videochamada. É diferente de estarmos juntas a conversar informalmente.”
A empresa tem adotado algumas iniciativas para contrariar a distância. “Temos um grupo no WhatsApp, onde podemos conversar, sem ser de trabalho e, de vez em quando, organizamos almoços via Zoom”. Passado um ano, diz que já se sente parte da empresa. Kathrin Schneider é chefe de João Coutinha. A diretora de marketing e de recursos humanos da seguradora Innovarisk revela que a pandemia não travou o plano de contratações. A empresa, criada em 2013, está a crescer e, no último ano, contratou seis pessoas para as áreas de marketing, subscrição e “office support”. O período de integração na companhia, que antes da pandemia durava cerca de dois meses, neste momento “é muito mais alargado”, diz.
O contexto de teletrabalho “exige um esforço maior para transmitir a cultura da empresa” a quem chega de novo, refere a diretora de marketing. Houve uma mudança de paradigma e agora é necessário estarmos muito mais presentes. Tudo começa com um acompanhamento diário. “Quando sentimos que a pessoa está mais adaptada, passamos para um acompanhamento semanal”, conta. É importante passar a mensagem de que “se o colaborador precisar, estamos cá”, apresentando-o a trabalhadores das diferentes equipas. Também é importante “definir muito bem os objetivos” que o colaborador tem de atingir.
No escritório de advogados Antas da Cunha Ecija, foi igualmente necessário fazer adaptações ao “onboarding”. No último ano, foram contratadas cerca de 10 pessoas dos mais variados perfis, desde estagiários a associados séniores. A esmagadora maioria foi recrutada por via telemática, diz Pedro da Quitéria Faria, sócio responsável pelo departamento de Direito do Trabalho e da Segurança Social. “Isto criou uma dificuldade acrescida do ponto de vista da criação de uma empatia pessoal prévia”, considera.
No primeiro dia de trabalho, os advogados vão ao escritório, não só para conhecerem o espaço e receberem um “welcome pack”, mas também para terem acesso aos instrumentos de trabalho. Na primeira semana, “preenchem um conjunto de módulos via virtual – da mesma
Se as pessoas falarem a uma só voz e partilharem valores, facilitam a integração de quem chega de novo à empresa, diz Rodrigo Esteves, diretor de marketing da MDS.
forma que fariam se estivessem presencialmente connosco – relacionados com procedimentos, formas de integração, sistemas tecnológicos, comunicação, lançamento de diligências, etc.” Depois, de acordo com a área do Direito em que vão ser integrados, são promovidas reuniões online com o sócio responsável. “Tentamos criar mecanismos para diminuir o isolamento do advogado em teletrabalho”, garante Pedro da Quitéria Faria.
“Para nós, é absolutamente crítico que as pessoas continuem, dentro do possível, a beber a nossa cultura e o nosso ADN”. Por isso, “do ponto de vista da comunicação interna, tentamos manter uma interação intensa para nos fazermos sentir presentes”. Apesar dos esforços para criar “envolvência e ‘engagement’”, Pedro da Quitéria Faria admite que hoje será mais difícil para quem chega “vestir a camisola”.
PERGUNTAS AINDA SEM RESPOSTA
Kathrin Schneider aponta alguns desafios novos colocados às empresas. Desde logo, quais serão os níveis de retenção das pessoas contratadas durante a pandemia? Será que as empresas vão conseguir reter o talento da mesma forma? Estas e outras perguntas, para já sem resposta, estão a inquietar muitos gestores. Segundo o “CEO Survey 2021”, da Stanton Chase Portugal, com base em entrevistas a 200 líderes empresariais, os inquiridos apontam como maiores dificuldades o recrutamento do talento adequado (53%), o incentivo
à motivação e compromisso dos colaboradores (35%) e a retenção de pessoas-chave (27%).
Terão razões para estar preocupados. Um novo estudo da Microsoft, a nível global, revelou que mais de 40% dos trabalhadores consideram mudar de emprego este ano. De acordo com o primeiro Índice de Tendências de Trabalho 2021 da gigante tecnológica, que avaliou cerca de 30 mil pessoas de 31 países, “uma abordagem cuidadosa ao trabalho híbrido será crítica”. Isto porque “os funcionários desejam controlar onde, quando e como trabalham, e esperam que as empresas ofereçam opções”. Por isso, “as decisões que os líderes de negócios tomarem nos próximos meses, para permitir um trabalho flexível, terão impacto em tudo – desde a cultura e inovação, até à forma como as organizações atraem e retêm os melhores talentos.”
As consultoras de recrutamento confirmam que o mercado está mais focado no teletrabalho. “Neste momento, logo depois do salário, os candidatos querem saber qual a política de trabalho remoto da empresa”, afirma Nuno Troni, diretor da Randstad. “Perguntam se terão de trabalhar no escritório todos os dias”. Mas as empresas ainda não conseguem responder a essa questão, uma vez que “a esmagadora maioria ainda não definiu bem o que vai fazer”. Encontram-se à espera da aprovação de legislação para regular o teletrabalho.
Inês Paes de Vasconcelos, senior associate manager da consultora Michael Page, revela que muitas empresas estão a realizar inquéritos internos para “medir o pulso” aos colaboradores sobre a questão. As pessoas “focaram-se e agarraram-se, sem dúvida, ao equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho, e acredito que esta será uma tendência que não vai voltar para trás”.
É certo que a distância coloca novos desafios às empresas. No “onboarding”, já “não basta ter um “pack de merchandising”. Tem de haver outra maneira de fazer a pessoa sentir que chegou à organização”. Mas, “se existir criatividade e motivação de ambas as partes – do colaborador e da empresa –, não acho impossível a pessoa vestir a camisola”, considera. Neste recrutamento por via digital, há sobretudo “um choque cultural”, refere Nuno Troni. Num “onboarding” virtual, a pessoa está mais “a aprender a tarefa e o processo, não tanto a cultura da empresa”. Para o consultor, os momentos de ócio no escritório, como ir beber um café com um colega, “podem parecer pouco importantes, mas criam cultura, relação, ‘engagement’”. Com o virtual, perde-se essa ligação. “Uma coisa é estarmos habituados a trabalhar e a conviver com determinadas pessoas, outra coisa é conhecê-las apenas pelo ecrã”. Até porque, acrescenta, uma das formas de integração é “aprender com os pares, tirar dúvidas, trocar impressões”.
Rodrigo Esteves, diretor de marketing da MDS, recorda quando as pessoas chegavam antes da hora da reunião e trocavam dois dedos de conversa ou ficavam depois a confraternizar. Agora, mal a reunião chega ao fim, “carrega-se no botãozinho vermelho e as pessoas desaparecem da nossa frente”. É como se a pandemia tivesse criado uma espécie de buraco negro nas relações profissionais.
Kathrin Schneider, diretora de marketing e RH da Innovarisk, teme que as empresas tenham agora mais dificuldade em reter talentos.