O mundo sustentável da moda circular
Vera Fernandes criou a Buzina Brand, uma marca nacional que produz 90% das suas peças a partir de tecidos excedentes de várias fábricas. Cadeias como a H&M, a Burberry e a Gap aderiram à iniciativa Make Fashion Circular. E há cada vez mais pessoas a comprar roupa em segunda mão. A indústria do têxtil e do vestuário está a ganhar um cunho cada vez mais sustentável – mais do que uma moda, é um novo paradigma.
AH&M lançou este mês a primeira coleção produzida pelo seu laboratório de sustentabilidade. O objetivo é experimentar o uso de materiais e soluções inovadores, antes de os integrar na coleção regular. Esta não é a primeira iniciativa ambiental da marca de “fast fashion”: em 2020, 65% dos materiais usados para produzir o seu vestuário eram orgânicos, reciclados ou de origem sustentável – e a meta é chegar aos 100% em 2030. A casa sueca não está sozinha nesta estratégia e integra a iniciativa Make Fashion Circular, que conta com marcas como Burberry, Gap, Stella McCartney, Adidas, Farfetch e o grupo Inditex. As preocupações chegaram também aos Governos, e França até criou uma lei que proíbe a destruição das roupas não vendidas, obrigação a que também estão sujeitas as marcas que quiserem estar presentes na semana da Moda de Copenhaga, na Dinamarca. “Mais do que uma tendência, é um novo paradigma”, afirma Madalena Rocha Pereira, professora de Design de Moda Sustentável na Universidade da Beira Interior (UBI). “Desde 1970 que o consumo dos recursos tem aumentado, atingindo níveis preocupantes. Estratégias como o European Green Deal, que traça metas para 2050, o Pacto Ecológico Europeu ou os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU, têm como propósito não pôr em risco os recursos disponíveis para as gerações futuras, e vão fazer do design circular o novo paradigma”, diz a docente. Além de privilegiar o regresso dos recursos à economia, o design circular tem como princípios minimizar o desperdício e a poluição, permanecer em utilização pelo maior tempo possível e permitir a regeneração dos materiais em novos fluxos de recursos. “É algo que acompanha todo o ciclo: do design, aos materiais, até à produção, passando pela distribuição, pela embalagem, pelo tipo de loja, incluindo o fim de vida dos produtos”, afirma Madalena Rocha Pereira.
Esta tendência traduz-se nas políticas adotadas de forma crescente pela indústria têxtil e do vestuário, com a investigação a apostar em materiais sustentáveis, tais como lycra e o poliéster produzidos a partir de plástico recolhido dos oceanos, alternativas vegetais ao couro, ou tecidos reciclados e embalagens reutilizáveis e recicláveis. “Os alunos de design de moda fazem sempre uma análise para conhecerem o mercado e as empresas portuguesas que inovam nesta matéria”, exemplifica a docente.
Para adaptar o setor ao novo paradigma e sensibilizar os profissionais do futuro, multiplicam-se iniciativas como o iTechStyle Green Circle, promovido pelo CITEVE, que pretende motivar os profissionais do têxtil e da confeção a adotarem práticas sustentáveis na escolha de materiais e no processo produtivo. Por sua vez, o Green Textiles Club, um grupo de trabalho do Cluster Têxtil Tecnologia e Moda, assumiu como missão definir uma estratégia de investigação e inovação, para inspirar os
processos de decisão dos diferentes intervenientes no processo.
UMA INDÚSTRIA EM MUDANÇA
A aposta numa moda mais sustentável sente-se na forma como as marcas e os criadores apresentam o seu trabalho. “Atualmente, 20% da produção acaba por não ser comercializada, ficando em ‘stock’. A tendência será para a prototipagem 3D, associada à venda online, em que só são produzidas as peças que vão ser vendidas”, explica Madalena Rocha Pereira. A apresentação das coleções também será reformulada, com uma maior ênfase nas apresentações digitais. “As empresas vão começar a reduzir custos, graças à digitalização, a produzir menos e com maior valor acrescentado”, vaticina a docente da UBI. Mas há desafios que permanecem. Por um lado, apesar do caráter abrangente deste novo paradigma, há segmentos, como o “low cost”, que continuam sem abraçar práticas sustentáveis. Por outro, existem ainda dificuldades técnicas, sobretudo no que toca à reciclagem. Exemplo disso foi o que aconteceu com os signatários do Circular Fashion System Commitment 2020 (compromisso assinado em 2017 por 90 empresas). Em meados de 2019, dos 213 objetivos traçados, só 45 tinham sido alcançados.
Na altura, o relatório da Global Fashion Agenda instava as marcas a acelerar os seus esforços, mas reconhecia o impacto negativo que a falta de soluções de reciclagem de fibras de qualidade colocava ao processo. Madalena Rocha Pereira acredita que o investimento em soluções técnicas crescerá na mesma proporção do aumento da procura por este tipo de produtos.
Transparência e rastreabilidade são outras duas vertentes que ganharam peso na lógica da moda circular. Nos sites de marcas como a Inditex ou a H&M, já é possível ter informação detalhada sobre o produto – não só sobre o preço e o material, mas também onde foi feito e com que materiais. O Grupo Puma vai mais longe e, nas Declarações Ambientais dos seus produtos, faculta dados sobre o impacto ambiental ao longo do ciclo de vida, contabilizando categorias, que vão do aquecimento global e potencial de esgotamento da camada do ozono, à eutrofização, passando pelo potencial esgotamento de combustíveis fósseis e os resíduos.
A adoção de boas práticas de sustentabilidade não é assumida da mesma maneira em todos os segmentos. Enquanto nas marcas de “fast fashion” a comunicação é usada como elemento diferenciador, no segmento de luxo não há alusões claras às práticas sustentáveis, mas, nos sites, de forma discreta e por trás de palavras como “equilíbrio”, é explicada a ação da “griffe” nesta área. Já os criadores individuais, como lembra Madalena Rocha Pereira têm, no geral, um caráter sustentável quase inato.
É o caso de Vera Fernandes, criadora da Buzina Brand, marca nacional que produz 90% das peças a partir de tecidos provenientes do “stock” excedente de várias fábricas parceiras. Quando criou a marca, Vera já sabia que o recurso aos restos de “stock” era a solução. “Quando nos dirigimos à indústria com um projeto novo, geralmente falamos de sonhos e a indústria responde-nos em euros. Eu sabia que não tinha dinheiro e, para não me exigirem a compra mínima de metros e metros de tecido, propus-me a comprar os restos de ‘stock’”, conta.
“Não é só o facto de usarmos tecidos que estão parados há cinco ou seis anos. Tudo é produzido num raio de 11 quilómetros, e este é um projeto que dá trabalho a várias famílias, já que cada peça é feita por uma costureira”, diz a criadora. Mas Vera sublinha que, mais do que uma escolha premeditada, o caráter sustentável resultou da necessidade inicial. “Estamos sedeados em Joane, Vila Nova de Famalicão, onde o têxtil é fortíssimo – eu fui criada pela minha avó, que era modelista, em cada esquina há uma confeção e alguns dos meus familiares também trabalhavam no ramo. Para quem é de outras zonas, é mais difícil”, admite.
Depender quase exclusivamente dos restos de produção de terceiros não lhe limita as escolhas e faz com que cada coleção seja feita, quase a 100%, por peças de edição limitada. “Compro os tecidos à medida das necessidades e só consigo produzir o número de peças que aqueles metros de tecido permitem”, diz Vera, que passou a incorporar a questão da sustentabilidade na estratégia de comunicação da marca. No entanto, está ciente de que a maioria dos clientes não valoriza o lado sustentável do projeto. “Gostava de dizer que, para o público, a questão da sustentabilidade é importante, mas não sinto muito isso. No estrangeiro, sim – faço alguma exportação –, este é um aspeto que já faz a diferença”, garante.
CONFINAMENTO MUDOU CONSCIÊNCIAS
A reutilização e o recurso a roupa em segunda mão é outra das vertentes da moda circular. Em Portugal, ainda é um nicho. De acordo com o Relatório de Moda Circular 2020, do site Micolet, elaborado a partir de um inquérito a mulheres entre os 18 e 65 anos residentes em território português, no recheio dos roupeiros e gavetas há um predomínio de peças de “fast fashion” (46%), seguidas da roupa “low cost” (20%), marcas “premium” (9%), “outlets” (5%), e, no fundo da tabela, com 2%, aparecem as marcas de luxo e a roupa em segunda mão. Mas o futuro parece prometedor para o segmento, já que 60% das inquiridas garante que a perceção sobre este mercado melhorou nos últimos cinco anos e 18,7% planeia aumentar os gastos com roupa usada.
São principalmente as “millennials” quem recorre a este tipo de vestuário. Por três motivos: poupar, ser sustentável e adquirir produtos exclusivos. O mesmo relatório mostra que os meses de confinamento, juntamente com maiores preocupações económicas, levaram a uma atitude mais sustentável na altura de limpar os armários: da roupa descartada em 2020, apenas 2% foi para o lixo. A maior parte (40%) foi doada, 33% oferecida a amigas e 4% vendida em plataformas online de venda de roupa em segunda mão.