Jornal de Negócios - Weekend

Naquele tempo!

- José Tiny

Já não sei se naquele tempo o prazer era lento ou longo. Mas sei: naquele tempo era ainda o tempo, lento ou longo, do prazer. Se fosse naquele tempo, nesses longínquos anos, antes de, mordidos a vírus, 2020 e 2021 se arrastarem em culpa e penitência, podíamos, sem máscara, assoarmo-nos ao prazer. Havia aeroportos e o avião ressuscita­va em nós a euforia do menino, a exaltação do adolescent­e. Levava-nos à alegria do desconheci­do, com uma sub-reptícia promessa, económica ou “business”, de inculpada transgress­ão. Hoje iria jan tar a Nova Ior que. É Primavera e em Manhat tan quais quer 10 graus cen tí gra-dos sabem a 15 ou 16. Podía mos ser três ou qua tro, para a con versa ir de car ri nho. A espla nada do Aqua grill, na 210 Spring St, é cálida e irreverent­e como a morena Melanie Griffith que inflamava o “Something Wild” de Jonathan Demme. E se nos desse um arre pio, mudá va mos de mesa, para o uterino conforto da sala interior rectangula­r. Era do prazer lábil das ostras que queria falar. As ostras saem de gelo e mar e se man-darmos vir champanhe, o pro mís cuo cham panhe não desdenha mesmo nada um “petit ménage” de lín gua e ostra. E porque hoje se marisca, o estômago, para fazer caminha, pede viei ras, “gril led scal lops”, a bivalve carne sólida, super fí cie ace ti nada, que se entre-ga, insi nu an te, a uma boa aber tura de lábios e den tada firme. É por isso que todo o cora-ção que sai do Aqua grill é um coração apaixonado.

São agora nove da noite e teria almo çado antes, por volta das treze, no infer nal Gol den Uni corn, enfi ado num pré dio assus ta dor de uma esquina de Chi na town. É o paraíso can-to nês do “dim sum”: dum plings” cor do mais cintilante cobre, cre pes de veludo, a insa-ci ada boca (perdoem-me o abuso lexi cal) a “goludiciar-se” na espes sura de tanto frito – nada é tão frito como o absolu ta mente frito da cozi nha des tes chi ne ses pré-Xi Jiping. As salas do Gol den Uni corn são deca den tes salas de baile pro te gi das por uns imensos e ron-ro nan tes dragões de ouro faiscante. Têm olhos semi cer ra dos e satis fei tos, uma pre gui-çosa língua em fogo, uma barriga lacada a “bar be cue” e fresquís si mos fres cos do mer-cado. Fazem-se novas ami za des no Gol den Unicorn.

Antes do Aqua grill, pelas sete e meia da tarde de Manhat tan, havia de pas sar pela Bro-adway. Volta-se ali, à W 44 St, encos tada a bai la ri nas, bai la ri nos e actores, como quem se encosta à escola pri má ria. Ou como quem volta a abra çar o Pedro Bandeira Freire, fundador do antro de sonhos que foram, em Lisboa, as quatro salas do cinema Quarteto. O Pedro, ou talvez fossem só os olhos azuis do Pedro, era um tão len dá rio fre quen ta dor quão len dá rio é este Sardi’s, fun dado em 1921. No Sardi’s bebia-se o mais vibrante, o mais clássico dry-martini, generoso e geladíssim­o gin com meia-gota de vermute bianco seco, gota cortada à faca quando já vai no ar a cair da garrafa para o copo cónico e canónico. Leva-se à boca e logo desliza pela garganta um urso polar que nos transforma o apa relho diges tivo na mais ampla e lumi nosa auto-estrada de desejo e contente melancolia. Bebe-se ao bal cão do velho bar: era o mais des pre ten si oso e dinos sáu rico bar de Nova Ior que, com tanto cheiro a casa dos nos sos avós, que só se levam ao Sardi’s os mais anti gos e incon di ci o nais amigos.

E volto ao colo do Pedro Bandeira Freire. Foi pouco antes de ele ir deambular pela eternidade. Disse-me, já que vais a Nova Iorque, faz-me esse favor. E eu fiz: dry-martini na mão, telefonei-lhe do Sardi’s, o velho Joe, “bartender”, ao lado, a estender-lhe um abraço, tanta saudade e a despedida. Naquele tempo!

MANUEL S. FONSECA O AUTOR ESCREVE COM A ANTIGA ORTOGRAFIA Hoje iria jantar a Nova Iorque. É Primavera e em Manhattan quaisquer 10 graus centígrado­s sabem a 15 ou 16. Podíamos ser três ou quatro, para a conversa ir de carrinho.

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