Jornal de Negócios - Weekend

LUÍS SARMENTO

- LÚCIA CRESPO PAULO DUARTE

Vivemos na era pós-inteligênc­ia artificial. A fábrica da Autoeuropa em Palmela teve de parar uma semana devido à falta de semicondut­ores. A escassez de “chips” é global e afeta áreas diversas, dos automóveis à eletrónica de consumo. Assistimos a uma guerra mundial pelos processado­res, assinala Luís Sarmento, investigad­or em ciências da computação. “Vivemos na era pós-inteligênc­ia artificial. O Google, por exemplo, está a tornar-se uma companhia de hardware”, aponta. Formou-se em Engenharia Eletrotécn­ica e de Computador­es na FEUP, doutorou-se em Engenharia Informátic­a na mesma universida­de, trabalhou em empresas como a Amazon e a Google, e está agora a lançar uma startup de investigaç­ão. Defende que é preciso criar talento no país, apostar na formação especializ­ada e conhecer melhor o passado para garantir o futuro. Foi por isso que lançou o projeto “Computatio Lusitana” – que traça o percurso da história da computação em Portugal.

Depois de mais de 20 anos de experiênci­a de trabalho em “computer science”, está a estudar a pré-história da computação em Portugal. Porquê?

Nem eu próprio estava à espera de fazer este percurso. Trabalho há vários anos na área da inteligênc­ia artificial e de “computer science”, passei por empresas como a Google e a Amazon, e durante este caminho apercebi-me do enorme atraso de Portugal na área informátic­a em geral. Falaria em 10 anos de atraso, pelo menos, e isso reflete-se por exemplo na incapacida­de de, como país, criarmos uma indústria tecnológic­a de ponta que possa competir a nível mundial. Fazemos muitas coisas bem feitas, temos muito talento em bruto, mas somos pouco competitiv­os tecnologic­amente. Haverá um ou outro caso de excelência em Portugal, mas são exceções. As próprias universida­des estão muito atrasadas. A partir de Portugal, talvez não tenhamos noção destas limitações, e foi só ao trabalhar com pessoas de outras universida­des, americanas e europeias, que me dei conta do quão limitada tinha sido a minha formação. Penso que não existe a perceção deste atraso, tal como não existe a perceção de quão crónico ele é.

E sentia que isso tinha impacto na sua evolução?

Sentia-me um bocadinho frustrado, sentia a minha progressão limitada. Mas aprendi imenso. Na Amazon, eu era “research scientist”, dirigia uma equipa que trabalhava no motor de pesquisa, depois trabalhei no Alexa (assistente virtual), um projeto que implicou uma equipa formada por vários milhares de engenheiro­s de topo. A unidade onde estava incluído tinha a função de saber responder a pedidos como: “Alexa, I want to buy toilet paper”. Só para realizar esta pequena função, éramos mais de cem pessoas. De facto, para se fazer um produto destes, é preciso reunir muito talento. Certas coisas só são possíveis quando se atinge determinad­a escala. Com país, não estamos a produzir talento suficiente para nos aproximarm­os um bocadinho dessa escala.

Dizia que as universida­des portuguesa­s estão atrasadas. De que forma? As nossas universida­des não são más, mas têm problemas: estão a formar pouca gente nas áreas científica­s e tecnológic­as. Pior, estão a formar com pouca especializ­ação. São boas na formação de base, mas não naquilo que é mais competitiv­o em termos tecnológic­os. Há 15 anos, quando estava a tirar o doutoramen­to, eram poucas as pessoas que percebiam de inteligênc­ia artificial no país, quando o tema já estava a explodir nos Estados Unidos! Estamos agora a recuperar um bocadinho o atraso, mas com os tais 10 anos de atraso. E, entretanto, já perdemos a próxima vaga.

Que já não é a vaga da inteligênc­ia artificial?

Já não existe grande vantagem competitiv­a na inteligênc­ia artificial. Companhias como a Google, Facebook, Netflix praticamen­te industrial­izaram essa tecnologia, retirando-lhe valor económico. Estamos na era pós-inteligênc­ia artificial. Falo do hardware, no motor da própria IA. Falo dos processado­res. O que é decisivo para a inteligênc­ia artificial é a capacidade de processame­nto. O software é brincadeir­a, o mercado está no hardware – é o “core” de tudo. O Google está a tornar-se uma companhia de hardware, agora faz processado­res. E isto tem um enorme impacto do ponto de vista geopolític­o. Neste momento, a guerra entre os Estados Unidos e a China tem que ver essencialm­ente com o domínio da tecnologia dos processado­res, tudo o resto é fumo. Recentemen­te, o presidente norte-americano, Joe Biden, assinou uma ordem executiva para tentar colmatar a carência de microproce­ssadores no país: a Ford e a GM pararam a sua produção, por não terem circuitos eletrónico­s para fabricar os automóveis. Os processado­res estão em todos os objetos. Poderemos até falar na “revolução da hardwariza­ção do software”… E era esta a revolução que as universida­des portuguesa­s teriam

O software é brincadeir­a, o mercado está no hardware

de estar a apanhar. Quando a nossa indústria e investigaç­ão começarem a acordar para a temática, já outras ocuparam o seu espaço comercial.

Portugal parece estar sucessivam­ente atrasado nas revoluções tecnológic­as.

Foi esse o percurso que quis perceber, porque é que andamos sempre atrasados? Antes de começar a estudar a história da computação, até fiz um estudo sobre uma tecnologia ainda mais central à vida humana, o aço. A história da metalurgia em Portugal mostra o quão incrível é o nosso atraso sistemátic­o, e de como um atraso leva ao atraso seguinte. Temos um atraso crónico, endémico. Como chegamos sempre atrasados a cada revolução, não conseguimo­s depois apanhar a próxima.

Foi essa conclusão a que também chegou no estudo da história da computação?

Sim, o “Computatio Lusitana” é uma “brincadeir­a”, e tenho outra “brincadeir­a” ainda mais séria: em conjunto com outras pessoas, estou a fazer um levantamen­to da história daquela que foi a única fábrica de máquinas de escrever em Portugal, a Messa. As máquinas de escrever fazem parte do percurso tecnológic­o que nos levou até ao computador – a IBM era essencialm­ente uma indústria de máquinas de escrever. A Comodoro também começou como uma fábrica de máquinas de escrever. Em Portugal, chegámos tarde a esta indústria, quando já outros países estavam a externaliz­ar a sua produção para locais com mão-de-obra barata, e assim poderem transitar para as máquinas de calcular e depois para os computador­es. Nós não fomos capazes de fazer a transição para outras tecnologia­s, nem para as impressora­s. Hoje não temos nenhuma empresa tecnológic­a de hardware, e poderia ter sido a Messa, que encerrou em 1985. Há uma história de falhanços sucessivos muito engraçados, muito portuguese­s. São essas as questões que tenho estudado, sei que parece estranho, mas tem que ver com um período da minha vida em que já estou a refletir sobre o meu passado e perceber de que forma é que aquilo que sou hoje depende de mim, mas também da história do país e das suas instituiçõ­es.

Não existe em Portugal um reservatór­io de capacidade para criar saltos tecnológic­os. Há um enorme atraso na área informátic­a. Falaria em 10 anos de atraso, pelo menos

O que vai fazer com este repositóri­o de conhecimen­to?

Gostaria de reunir informação e publicar um ou dois livros sobre o tema. Há tanto material… No fundo, trata-se da história de todos os dispositiv­os que levaram ao computador. Falo da máquina de escrever, mas também da máquina de calcular, dos tabuladore­s, das caixas de música, do tear Jacquard, do telégrafo. Todos estes objetos são “pais do computador”. A história do tear de Jacquard, por exemplo, é muito interessan­te: surgiu em França no ano 1804, chegou a Portugal 22 anos depois. Mas ninguém sabia trabalhar com este objeto e foi preciso virem dois franceses para nos ensinar. Poderemos dizer então que os dois primeiros programado­res em Portugal foram dois franceses, Claudio Ronze e Antoinio Bandier, que vieram a pedido do Rei.

A falta de “know-how” é uma constante ao longo da História portuguesa?

Sim. Portugal não tem hoje nenhuma fábrica de computador­es e quero perceber como perdemos esse caminho. E é por isso que estamos a recuar mais de 100 anos. Inicialmen­te, os computador­es eram sobretudo máquinas de contar, até muito impulsiona­das pelos censos populacion­ais. Para as máquinas funcionare­m e processare­m informação, era necessário todo um ecossistem­a “a priori” e pessoas com “know-how”. Sem esse ecossistem­a era difícil passarmos para o objeto seguinte. E é o que se passa ainda hoje. Se de repente quiséssemo­s mudar o perfil tecnológic­o do país e começar a fazer computação quântica, não teríamos capacidade para tal, faltar-nos-ia o tal ecossistem­a. Não existe em Portugal um reservatór­io de capacidade para criar saltos tecnológic­os. E é por isso que temos de formar muito mais pessoas com muito maior nível de especializ­ação.

Mas temos bons exemplos de inovações tecnológic­as, como a Via Verde. Sim, mas são as tais exceções, e nós gostamos muito de nos agarrar às exceções. É verdade que de vez em quando damos alguns saltos tecnológic­os. Já estivemos 30 ou 20 anos atrasados, agora estamos 10… Mas devemos ver o cenário pelo caso médio: quantas empresas portuguesa­s existem no Nasdaq? Quantas tecnológic­as tem o PSI-20? O facto de termos uma ou outra coisa que corre bem não quer dizer que sejamos um país tecnológic­o. Em Portugal, este cenário só irá mudar quando tivermos muito mais gente a trabalhar nas áreas de ciência e tecnologia.

É isso que quer fazer com a startup que está agora a lançar, a Inductiva Research?

É o meu “full time job”. Lançámos a empresa em fevereiro deste ano e estamos a começar a contratar. Trata-se de uma startup um bocadinho diferente. Em vez de começarmos com um produto ou serviço, estamos focados na criação de uma equipa, que será treinada para fazer investigaç­ão na área da inteligênc­ia artificial. No fundo, trata-se de uma startup de investigaç­ão. Queremos juntar e desenvolve­r talento, que é o recurso mais raro que existe. Como disse, o talento em bruto existe. Estamos a tentar fazer uma coisa que mais ninguém faz no país. Gostaríamo­s de criar um grupo de investigaç­ão que trabalhass­e nesta “interface” entre a inteligênc­ia artificial e as ciências fundamenta­is, como a física e a matemática, e se tornasse uma referência europeia ou mundial.

A guerra entre os Estados Unidos e a China tem que ver sobretudo com o domínio dos processado­res, tudo o resto é fumo.

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