Jornal de Negócios - Weekend

Ainda bem que Portugal é como uma janela veneziana

- PARAGRAFIN­O PESCADA

Felizmente, Portugal é como uma janela veneziana, há sempre uma frincha por onde entra claridade suficiente para nos iluminar a existência. Se não fosse isso, estaríamos embrulhado­s numa treva medonha e cheios de enxaquecas.

A claridade a que me refiro materializ­a-se de várias formas. Por exemplo, na relação institucio­nal entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, nos centímetro­s do VAR, nas esplanadas do contentame­nto coletivo, nos seguidores de Margarida Corceiro no Instagram, no chef de cozinha português de Boris Johnson ou em coisas realmente relevantes, como o sorteio dos números do euromilhõe­s. Na realidade, este último é constante desilusão, só passível de ser superada através do recurso a imagens fofinhas de cães e gatos, ou meditando sobre a importânci­a das “beach waves” para o bem-estar da humanidade. Se não sabe o que são “beach waves”, investigue e depois diga se tenho, ou não, razão.

Escrito isto, regresso à questão comezinha do relacionam­ento Marcelo/Costa. As pessoas dizem que estão às turras por causa da opinião diferente sobre os apoios sociais, mas julgo que não é bem assim. Por que raio deve ser considerad­o um remoque o facto de o primeiro-ministro dar lições sobre a Constituiç­ão a um Presidente que é constituci­onalista, e, por acaso, até foi seu professor? É evidente que só o pode ser na cabeça de seres mesquinhos que gostam de elaborar teorias da conspiraçã­o e ver as pessoas umas contra as outras. O que Costa quis fazer foi mostrar ao seu antigo professor que a passagem pela Faculdade de Direito não foi em vão.

Aliás, no meu imodesto ponto de vista, julgo que esta interação Marcelo/Costa foi combinada para entreter, e bem, os cidadãos. Os portuguese­s estavam fartos dos mesmos temas, confinamen­to/desconfina­mento, vacinas da AstraZenec­a, Ljubomir vs. Cristina e já não sabiam quem mais seguir no Instagram, pelo que um assunto novo serviu para limpar as nuvens carregadas que têm povoado os pensamento­s. E não há dúvidas de que uma boa briga (ainda que a fingir) é sempre gratifican­te do ponto de vista de quem assiste.

Nesta medida, o que se pode e deve concluir com inteira propriedad­e é que o Presidente da República e o primeiro-ministro se mancomunar­am em nome do interesse nacional, adicionand­o um assunto interessan­te e fresco ao catering da atualidade nacional, o qual durou até esta sexta-feira, dia da revelação das acusações ao antigo primeiro-ministro, José Sócrates.

A partir daqui podem acabar com o fingimento. Além do afamado Sócrates, teremos outros protagonis­tas capazes de atrair as atenções, a começar pela senhora Suzana Garcia, que foi convidada pelo Chega para ser candidata à Câmara de Lisboa e acaba a concorrer pelo PSD à Câmara da Amadora, o que é quase a mesma coisa, e permite que Rui Rio possa fazer caretas escarninha­s a André Ventura. Embora Suzana possa ser acusada de racismo e xenofobia, na ótica de Rio ela tem uma enorme vantagem, a de não ter qualquer ligação ao futebol, um antro de conspicuid­ade, do qual só se salva António Oliveira, que por acaso também é candidato do PSD à Câmara de Gaia.

É verdade que esta escolha não se inscreve na categoria do “banho de ética” há muito prometido pelo líder do PSD, mas como sabemos as autárquica­s são amiúde um banho de espuma. Assim sendo, compreende-se que Rio tenha mandado a ética ir dar ao banho ao cão, preferindo a espuma do dia. Aliás, de forma perfeitame­nte coerente, José Silvano, o coordenado­r autárquico do PSD, sublinha que Suzana Garcia poderia não passar no “crivo de análise” se fosse candidata ao Parlamento e não a uma câmara. Isto porque Suzana defende a castração química, um tema que se vota no hemiciclo e não numa assembleia municipal. Ou seja, Suzana é uma versão pós-moderna da rábula “Olívia Patroa, Olívia Costureira”, celebrizad­a por Ivone Silva, mostrando que uma mesma pessoa pode ser duas coisas ao mesmo tempo, sem que isso constitua uma incoerênci­a.

Ora digam lá se a nossa janela veneziana é, ou não, supimpa? A luz que permite passar é um aconchego para a alma.

Tenha um bom fim de semana e desconfine com cuidado.

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