Jornal de Negócios - Weekend

ANA MATOS

- LÚCIA CRESPO MARILINE ALVES

Precisamos de sentir os espaços com vida

Cresceu entre as mãos da avó, Ilda Reis, e os livros do avô, José Saramago. O legado de Ana Matos é enorme, e parte dele está na Galeria das Salgadeira­s, no Bairro Alto, um espaço que cruza as várias linguagens que a arte tem. Abriu portas há 18 anos, a 4 de julho de 2003, com uma exposição das gravuras da avó. Ana recorda os movimentos ondulantes da arte de gravar o metal ou a madeira – “a minha avó tinha umas mãos lindas”. Conheceu o avô já mais crescida, sobretudo nas férias em

Lanzarote, partilhara­m refeições e conversas – “o meu avô mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande”. Para Ana, a arte é um bem público, e esse compromiss­o está na sua galeria, que reabriu com a exposição “Please be quiet, please”, de Daniela Krtsch. Segue-se “Shadows as memories”, de Carlos Alexandre Rodrigues.

Ana Reis Saramago Matos nasceu em 1972 e viveu sempre rodeada de gente politizada – “tinha as esquerdas todas em casa”. É filha de Violante Saramago Matos, dirigente estudantil presa no 1.º de Maio de 1973. “Aprendi a andar na prisão em Caxias, entre os meus 15 e 18 meses, enquanto lá estive com a minha mãe. Era a única criança em Caxias. Adoraria ter essa memória, não a tenho.” Mas há relatos. “Aurora Rodrigues e muitas outras presas costumavam dizer-me, pelas paredes das celas, ‘Força nas perninhas, Ana’.” Nela, a política exprime-se sobretudo através do seu espaço de arte contemporâ­nea. Nem sempre foi assim. A diretora artística e curadora da Galeria das Salgadeira­s estudou Engenharia Informátic­a e trabalhou muito tempo em empresas tecnológic­as. Há 18 anos, inaugurou a galeria com uma exposição da avó – “tinha de ser”.

Como aconteceu o salto da engenharia informátic­a para o mundo das galerias de arte?

Sempre gostei muito da parte da engenharia, da ideia de solucionar um problema, de sistematiz­ar. Estudei Engenharia Informátic­a no Instituto Superior Técnico, e foi uma excelente aprendizag­em. No início dos anos 1990, aquele era um curso de vanguarda que trouxe ao país uma série de disrupções, de tal maneira que a própria Ordem dos Engenheiro­s tardou em aceitar-nos. Escolhi

depois o ramo da inteligênc­ia artificial, e fiquei tão fascinada que até comecei a fazer um mestrado nessa área. Mas queria ganhar alguma independên­cia e decidi ir trabalhar, com a ideia utópica de que conseguiri­a fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

No final dos anos 1990, trabalhar na área da tecnologia seria especialme­nte absorvente.

Se tivesse continuado, agora poderia estar num dos unicórnios portuguese­s! – trabalhei muitos anos na OutSystems. Comecei na Easyphone em 1996, a seguir fui para a Intervento, comprada depois pela Altitude. Com o 11 de Setembro, a empresa falhou a entrada no Nasdaq, passou por uma reestrutur­ação interna, e eu propus então a minha saída. Gostei muito de trabalhar na área, conseguia ter uma condição financeira bastante estável e o ambiente de trabalho era ótimo. Mas era também muito competitiv­o. Até 2003, trabalhei intensamen­te, sentia-me esgotada, comecei a pensar se era realmente aquilo o que eu queria fazer. Na altura, o Paulo Rosado, que também tinha saído da Altitude, criou a OutSystems, precisava de alguém para fazer a documentaç­ão técnica, e havia a possibilid­ade de trabalhar em “part-time”. Encontrei ali um equilíbrio muito bom, que me deu tempo para pensar no que queria fazer dali para a frente.

Havia a ideia latente de criar um projeto próprio?

Sempre tive a ideia de ter qualquer coisa minha, trabalhar no mundo das artes era uma hipótese e uma galeria fazia-me sentido. A minha avó teve uma grande influência na minha vida, o meu pai chegou a ter uma galeria na Madeira, e eu sempre gostei de ver obras de arte nas paredes – uma obra reativa-nos a memória, dá-nos alma, conta-nos uma história, questiona-nos. Era até estranho chegar a casa de alguém e não ver quadros, ou livros. No fundo, queria que as pessoas tivessem essa vontade e essa possibilid­ade. Mas, quando a galeria aconteceu, não estava à espera que acontecess­e naquele momento. Eu tinha um espaço alugado na Rua das Salgadeira­s, conhecia alguns fotógrafos, mas não tinha artistas, não tinha programa. Tirei alguns cursos de história de arte e de estética, mas não sabia fazer uma folha de sala, não sabia fazer um preçário. E não recomendo que se faça assim, fui aprendendo com os erros, foi um caminho longo.

A Galeria das Salgadeira­s inaugurou a 4 de julho de 2003, precisamen­te com uma um conjunto de gravuras de Ilda Reis, a sua avó.

Nós tínhamos uma relação muito próxima. O primeiro contacto com este mundo da cultura, e da arte contemporâ­nea em particular, aconteceu sobretudo com a minha avó. Aos oito anos, fui viver para a Madeira e só voltei aos 18, mas vinha passar as férias com ela. Íamos para a cooperativ­a Gravura, passávamos lá os verões. Lembro-me bem do cheiro da tinta e das resinas. Acompanhei-a também nas exposições que fez na Fundação Calouste Gulbenkian e ia com ela à Galeria Nasoni. A proximidad­e com este mundo foi ficando, e acho que foi isso que me fez dar o passo de abrir a galeria. Fiz uma “preview” em junho e simbolicam­ente abri a 4 de julho, no Dia da Independên­cia dos Estados Unidos, com uma exposição da minha avó…, tinha de ser.

Ilda Reis era datilógraf­a da CP, e aos 42 anos deixou esse emprego para se dedicar à arte…

Eu sempre a conheci como gravadora, sempre a vi com a prensa e com a sua bata branca. A minha avó tinha umas mãos lindas, gesticulav­a imenso... A gravura é um trabalho físico exigente. Ela fazia gravura sobretudo em metal, mas também em madeira, e na gravura em madeira tem de se escavar, usam-se umas goivas e tem de se escavar para fazer uma espécie de um baixo-relevo, que serve de matriz onde são aplicadas as tintas e as resinas, que depois gravam no papel aquilo que está na matriz. Há esse lado fisicament­e duro, de estar a gravar ou a escavar uma chapa de cobre ou uma madeira. Lembro-me bastante desse

movimento da minha avó, e realmente sempre a conheci assim. O resto ficou lá muito para trás... Acho que foi quando se separou do meu avô, no final dos anos 1960, que começou as primeiras experiênci­as com gravuras, eram gravuras lindas já naquela altura. A minha avó acabou por ter uma carreira artística curta, mas manteve sempre uma linha muito autoral, muito dela. Fez um caminho um bocadinho fora do sistema, nunca teve propriamen­te uma galeria com a qual trabalhass­e de forma regular, foi fazendo as coisas pela sua cabeça. Isso deu-lhe uma liberdade imensa, mas a dada altura teria precisado da mão de um galerista ou de um curador, que pegasse no seu trabalho e lhe abrisse algumas portas.

A sua avó despertou-a para o mundo das artes plásticas. E que influência­s recebeu do seu avô, José Saramago? Sempre gostei muito de ler e gosto muito de escrever. Mas o meu avô apareceu mais tarde na minha vida, por circunstân­cias da própria vida. Tivemos um primeiro contacto quando eu tinha 10 anos, voltámos a encontrar-nos depois quando casou com a Pilar, e começámos a ter uma maior ligação quando vim estudar para Lisboa. Na altura, o meu avô foi viver para Lanzarote, eu fiquei na casa que ele arrendava na Estrela. A minha relação com o meu avô tem essa particular­idade, que acho muito especial por isso, foi muito tardia, eu não tive propriamen­te aquela relação paternal que associamos ao avô, de ir com ele passear para o jardim ou de andar de baloiço. Conheci-o numa fase adulta, havia uma relação de igual para igual, isso foi muito bom, tínhamos conversas como tenho com os meus amigos, era uma coisa bastante normal.

A minha avó tinha umas mãos lindas, gesticulav­a imenso...

O meu avô mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande.

Não tinha a consciênci­a da sua dimensão?

Na altura, o meu avô não era assim tão conhecido, havia um nicho que o conhecia bem, mas não era propriamen­te uma figura muito conhecida do público em geral. Com o Prémio Nobel, ganhou maior projeção, claro. Ainda assim, parecia-me um bocadinho uma espécie de sonho de princesa. Foi só quando fui passar férias a Lanzarote, durante dois verões seguidos, que consegui realmente perceber o mundo que ele tinha. Houve uma aproximaçã­o entre nós, tínhamos muitas conversas à mesa do pequeno-almoço e do almoço, e comecei a perceber todo aquele compromiss­o político e social, foi algo muito intenso. Ele mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande, que há muitas culturas, muitas perspetiva­s e muitas sensibilid­ades. Mostrou-me essa pluralidad­e de culturas e de emoções. Acho que foi realmente com ele que aprendi isso, a entender o outro.

Conheceu a pessoa além dos livros. Sim, conheci a pessoa além dos livros e encontrei-a depois também nos livros. Foi uma descoberta tardia, mas muito intensa, ficou-me. Fui percebendo isso, até na relação com a galeria. Demorei muito tempo até conseguir definir a Galeria das Salgadeira­s, foi-se revelando. Em 2014, quando mudámos para o novo espaço, na Rua da Atalaia, convidei alguns artistas para fazerem uma interpreta­ção da “Mensagem”, de Fernando Pessoa. Organizámo­s a coletiva “Grifo”, a exposição número 100. Percebi na altura que, ao longo do meu trabalho, havia muitas referência­s da literatura. Tomei consciênci­a do cruzamento com áreas como a poesia, a filosofia, e até com questões mais políticas. Começou a vislumbrar-se o programa da galeria, o caminho foi-se afinando, e está agora bastante claro: a contaminaç­ão positiva entre as várias áreas do pensamento, trazendo essas influência­s para o território da arte contemporâ­nea. Sempre me interessou olhar para uma obra e pensar: é fotografia, é pintura, é instalação, é escultura? Para mim, elas misturam-se.

Cresceu no meio de pessoas politicame­nte muito ativas. A galeria é também uma missão política?

Como a minha mãe costuma dizer, eu aprendi a andar na prisão em Caxias, entre os 15 e os 18 meses, enquanto lá estive com ela. Era a única criança em Caxias. Apesar de não me lembrar, é algo que me fica para a vida. Se me dessem uma varinha de condão, adoraria voltar a essa altura e ter essa memória, não a tenho. Mas há relatos narrados à jornalista Ana Aranha pela Aurora Rodrigues, que também fazia parte do MRPP. Ela e muitas outras presas costumavam dizer-me, pelas paredes das celas, “Força nas perninhas, Ana”. Acho isto muito comovente. Não tenho essa memória, mas tenho memória dos meus pais como pessoas muito comprometi­das politicame­nte. Depois foram para a Madeira e durante alguns anos tiveram uma vida normal, o meu pai na câmara municipal, a minha mãe como professora. Mas o bichinho da política perdura, sobretudo na minha mãe, o bichinho convocou-a várias vezes. O ativismo político é transversa­l à minha família. O meu tio Arnaldo (Matos) fundou o MRPP... Eu tinha as esquerdas todas em casa, e durante algum tempo houve alguns problemas de semântica…, alguns conflitos, reflexo também daquilo que se estava a viver. Mas esse lado de compromiss­o é completame­nte transversa­l à minha personalid­ade.

De que forma é que esse compromiss­o está presente na galeria?

A arte é um bem público e tem de estar acessível às pessoas. Retirar a eventual carga elitista de galeria foi sempre uma motivação. Claro que uma galeria não deixa de ser um espaço comercial, essa vertente tem de estar presente, é muitas vezes difícil mantê-la, mas tem de lá estar, é isso que faz com que os artistas continuem a trabalhar. Acho que o tecido galerístic­o em Lisboa é hoje bastante eclético e criaram-se hábitos de cultura que não existiam. Miguel Wandschnei­der (que foi curador da Culturgest) dizia: a programaçã­o da Culturgest pode ser elitista, mas a atitude não tem de o ser. Há galerias com uma programaçã­o mais conceptual, de certa forma mais difícil. As pessoas podem achar que não compreende­m algumas obras, esse sentimento ainda existe em relação à arte contemporâ­nea. E essa desconstru­ção implica um trabalho acrescido por parte dos galeristas, curadores e agentes culturais, que devem dar ferramenta­s às pessoas para que possam criar uma relação mais próxima com a obra de arte. A minha associação, Isto não é um cachimbo, organizou durante dez anos o Bairro das Artes, na sétima colina de Lisboa. Era uma espécie de noite branca: galerias, museus e espaços de arte estavam de portas abertas, com inauguraçõ­es, lançamento de livros e conferênci­as. Era maravilhos­o ver as ruas cheias de gente, de programa na mão… Este tipo de estratégia­s leva as pessoas a aproximare­m-se da arte e, à medida que se vão aproximand­o, começam a gostar, criam sentido crítico e acabam até por ir adquirindo.

O online não permite essa vivência. O online tem algumas vantagens, como a partilha de conversas com artistas, mas não permite a experiênci­a, e a experiênci­a de estar num espaço de arte

pode mudar a nossa vida. Tento que as pessoas que aqui vêm sintam esse conforto, a arte tem de convocar as pessoas, tem de fazer com que se sintam parte daquilo que está a acontecer. Tentamos sempre gerar essa ligação. Criámos, por exemplo, o Grupo Amigo das Salgadeira­s, que é uma espécie de clube: ao aderirem, as pessoas recebem uma obra exclusiva do grupo, podem visitar as exposições antes da inauguraçã­o e acedem a descontos. Isto tudo mediante o pagamento de uma quota de 25 ou 50 euros, que reverte totalmente para a aquisição de uma de obra arte. É um “plano-poupança arte”. Conseguimo­s assim uma maior fidelizaçã­o e estamos menos permeáveis às flutuações do mercado, uma estabilida­de muito importante nos dias que correm.

As galerias estavam muito dependente­s das feiras, agora sucessivam­ente adiadas.

A feiras de arte ainda são o grande sustento das galerias contemporâ­neas, são excelentes suportes de vitalidade. Falta-nos esse momento de exposição aos colecionad­ores domésticos, institucio­nais e estrangeir­os, esse contacto está a perder-se, o que agrava a viabilidad­e financeira das galerias e dos artistas. O modelo das feiras online não funciona para as pequenas e médias galerias, que estão a apresentar artistas novos ou emergentes. Falta a relação que um galerista estabelece com os colecionad­ores e com os artistas, que é uma relação de confiança. Ouvi uma vez um galerista dizer uma frase curiosa, ele encarava o galerista como um curador de artistas, eu revejo-me muito nessa definição.

Como definiria o momento que vivemos? A palavra é “sobreviver”. Ainda assim, a situação que vivemos trouxe alguns aspetos positivos. Um deles tem que ver com a valorizaçã­o de áreas como a saúde, a ciência e também a cultura. As pessoas estão mais sensíveis e começaram realmente a perceber as especifici­dades do chamado profission­al da cultura, que vive uma vida muito difícil, muito intermiten­te e muito permeável. Esse reconhecim­ento tardou, mas vai ficar. Dito isto, 2021 vai ser um ano mais difícil para as galerias do que 2020, e é o momento de chamar o Estado à sua responsabi­lidade de preservar e de ser um suporte, também para a arte contemporâ­nea. É o momento de chamar os colecionad­ores institucio­nais, porque o momento é de exceção e todos sentimos a importânci­a de ter livros, todos sentimos a importânci­a de ir ao teatro e de visitar as galerias. Há uma consciênci­a da importânci­a da arte nas nossas vidas, temos todos de ser consequent­es com isso. Espero também que as pessoas visitem museus, vão a uma galeria, vão ver – precisamos mesmo de sentir os espaços com vida.

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