O futuro incerto dos museus
Louvre, MoMA, Prado ou Hermitage. Nenhum escapou à covid-19. A pandemia teve um efeito devastador nos museus de todo o mundo. Nos Estados Unidos, algumas instituições estão a vender obras para pagar despesas correntes. Por cá, voltaram esta semana a abrir as portas, mas se a situação financeira já era difícil há muitos anos, agora está ainda pior. No ano passado, os museus portugueses tiveram uma quebra nas receitas de 13,7 milhões de euros. A falta de verbas está a pôr em risco a segurança dos acervos nacionais. Nos privados, procuram-se novas formas de gerar receitas, porque as fontes de financiamento estão mais “secas”.
Estamos a viver um desastre do ponto de vista económico.” O desabafo da diretora dos Museus do Vaticano foi feito há dias. Barbara Jatta falava no webinar “Europe's ‘Big Museums’ and Covid”, promovido pelo International Council of Museums (ICOM) Europa, no qual participaram representantes dos museus mais visitados na Europa.
Seria impensável há uns anos ouvir estas palavras da responsável pelo terceiro museu mais visitado do mundo que, antes da covid-19, recebia sete milhões de pessoas por ano. No encontro online, Barbara Jatta revelou que a instituição registou no ano passado perdas de receitas na ordem dos 80%. “Pertencemos ao Estado, mas não recebemos financiamento público. Sobrevivemos da bilheteira”, afirmou.
“Agora ser grande é ser frágil”, reconheceu Dominique de Font-Réaulx, diretora de Mediação e Programação Cultural do Museu do Louvre. Antes da pandemia, o museu emblemático de Paris era o mais visitado do mundo. Recebia 10 milhões de visitantes por ano. Em 2020, foram apenas 2,2 milhões.
Com a pandemia, o número de visitantes nos museus europeus caiu em média entre 70% e 80%. Um inquérito realizado pela ICOM Europa revelava que quase 75% dos museus estimavam registar uma perda nas receitas em 2020 e sete em cada dez esperavam sofrer cortes orçamentais nos próximos anos. Luís Raposo, presidente ICOM Europa, destrinça o impacto da covid-19 nos grandes museus. Deve-se, por um lado, à sua dimensão – quanto maior, mais custos tem – e, por outro, ao “modelo de negócio”. A última década foi “altamente transformadora” para estas instituições. “A ideia geral era, aos poucos, passar de modelos de financiamento 100% públicos para um cofinanciamento entre o público e o privado e, nalguns casos, para uma quase privatização completa da gestão”, explica.
Foi esse o caminho traçado, por exemplo, pelo Museu do Prado, onde “já praticamente não havia investimento público”. O museu madrileno vivia das receitas geradas com uma gestão privada e “numa lógica de mercado”. Antes da covid-19, conseguia ter dois terços dos custos cobertos por receitas próprias. De facto, alguns museus da Europa eram “máquinas de fazer dinheiro” e alcançavam “superavits”, refere o especialista. “São esses que mais estão a sofrer, pois perderam completamente as receitas e, como o Estado já se tinha retirado do finan
ciamento, é-lhes muito mais difícil ultrapassar a crise.” Alguns estão a conseguir verbas públicas. No Prado, onde as receitas próprias cobrem agora muito menos de um terço do orçamento, “o Estado espanhol teve de se chegar à frente para cobrir o que falta”.
VENDER OBRAS PARA PAGAR CONTAS
No outro lado do Atlântico, a crise também bateu à porta dos museus. Mas nos Estados Unidos a maioria dos grandes museus são privados e, por lei, podem vender obras para investir nas suas coleções. As regras variam, mas obedecem todas a “critérios exigentes”, diz Pedro Gadanho, antigo curador de arquitetura moderna do MoMA, em Nova Iorque. “Normalmente são alienadas obras de menor valor para ajudar a comprar outras mais relevantes”, porque “os valores das peças nos leilões atingem quantias proibitivas”. A regra “sagrada” de só vender com o objetivo de reforçar a coleção está agora em causa. “A pandemia pode ter mudado as regras do jogo”, admite.
Em fevereiro, o Metropolitan Museum of Art (MET), em Nova Iorque, recebeu uma chuva de críticas quando o diretor, numa entrevista ao The New York Times, admitiu estar a equacionar vender algumas peças do acervo para enfrentar o défice de 150 milhões de dólares. Max Hollein aproveitou a janela de oportunidade aberta pela Associação de Diretores de Museus de Arte. A entidade que serve de farol para as boas práticas dos seus membros definiu, na primavera de 2020, um horizonte de dois anos permitindo aos museus venderem obras para pagar contas. Brent Benjamin, presidente da associação, afirmou que este é “um momento sem paralelo”, e que no mundo dos museus nunca houve nada parecido com o que está a acontecer agora, nem mesmo durante a crise financeira de 2008.
Vários museus nos Estados Unidos venderam obras de arte após a flexibilização das regras, válidas até 10 de abril de 2022. Um “raio-x” aos museus americanos, realizado em outubro de 2020 pelo American Alliance of Museums e pelo Wilkening Consulting, revelou que os 850 museus inquiridos registaram, em média, uma quebra de visitantes na ordem dos 35%. Mais de metade (53%) despediu ou colocou os funcionários em lay-off e 12% afirmaram haver um “risco significativo” de, até ao próximo outono, fechar as portas definitivamente.
Pedro Gadanho diz que muitos museus americanos, que têm
filantropos nos conselhos de administração, “são ‘máquinas’ com orçamentos anuais na ordem das centenas de milhões de dólares” e, sendo instituições privadas ou parcialmente privadas, “são geridos quase numa lógica empresarial”. Era assim no MoMA que, já depois de uma redução de pessoal, ficou com 800 trabalhadores. Estas instituições “vivem muito da bilheteira, que representa 15% a 20% das receitas”, refere. Com a pandemia, tiveram de encerrar ao público: um rombo nas contas.
À ESPERA DA AUTONOMIA FINANCEIRA
Em Portugal, a saúde financeira dos museus é frágil há décadas. A pandemia só agravou a situação. No ano passado, os 25 equipamentos tutelados pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) registaram em média uma quebra de visitantes de cerca de 70%. O Mosteiro dos Jerónimos, o mais visitado, recebeu 235 mil pessoas – em 2019, tinha recebido mais de um milhão. Segundo o Ministério da Cultura, em 2020, os museus portugueses tiveram uma quebra nas receitas de 13,7 milhões de euros.
Os sinais de alerta soaram quando vários museus públicos denunciaram que as suas coleções estão em risco de degradação. Um deles foi o Museu Nacional de Arte Antiga, cujo diretor, Joaquim Caetano, fez chegar à DGPC um relatório referindo que a falta de manutenção nos sistemas de ar condicionado e nas coberturas do edifício põem em perigo a integridade das obras.
Outro caso é o Museu Nacional do Azulejo, onde a falta de manutenção na cobertura do edifício faz com que chova dentro das galerias e que muitas vezes seja preciso espalhar alguidares para conter a água. Também o Museu Nacional de Arte Contemporânea, o Museu Nacional do Traje e o Museu Nacional do Teatro e da Dança estão a lidar com problemas estruturais graves, que causam danos nos respetivos acervos.
“Os problemas não são conjunturais, são estruturais”, sublinha Maria de Jesus Monge, presidente da delegação portuguesa do ICOM.
Tendo em conta que o Plano de Recuperação e Resiliência não terá uma linha de apoio aos museus, a tutela sugeriu que estas instituições pudessem usufruir da chamada “bazuca”, através dos fundos disponibilizados para a eficiência energética. Mas “não será com isso que os museus vão passar a ter uma situação financeira estável.”
Luís Raposo, presidente do ICOM Europa, fala numa situação “verdadeiramente dramática”. “Não estou otimista quanto ao futuro dos museus nacionais”, admite. O Ministério da Cultura tem-se revelado “frágil”, “incapaz” e “sem perspetivas de melhorar”. Por outro lado, a estrutura na área do património e dos museus, a DGPC, “é burocrática, pesada e totalmente ineficaz”.
Maria de Jesus Monge recorda a legislação publicada em 2019 (Decreto-Lei n.º 78/2019), que facultava autonomia de gestão aos museus, monumentos e palácios. O problema, diz, “é não estar prevista a entrada em vigor do decreto-lei que previa que cada diretor de museu tivesse uma verba predefinida que podia gerir com autonomia”.
QUANDO É QUE O DINHEIRO CHEGA?
O Governo lançou concursos públicos para novos diretores dos museus nacionais, que ainda estão a decorrer. “O que se dizia era que, depois de terminados os concursos, seria aplicado o decreto-lei da autonomia”, explica a museóloga. A primeira fase do concurso está concluída. Estão em funções desde o início do mês quatro dos novos diretores – do Panteão Nacional; Museu Monográfico de Conímbriga – Museu Nacional; Museu Nacional de Machado de Castro e Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo. E mantiveram-se as direções do Museu Nacional de Arqueologia, Mosteiro dos Jerónimos, Palácio da Ajuda e Museu Grão Vasco.
Questionado pelo Negócios sobre o que falta para a entrada em vigor da autonomia financeira dos museus, o Ministério da Cultura respondeu que “à medida que os novos diretores forem tomando posse, serão contratualizados com os mesmos os planos plurianuais de gestão”. A quantia que cada equipamento vai receber “difere con
Em 2020, os 25 museus, palácios e monumentos tutelados pela DGPC registaram, em média, uma quebra de 70% no número de visitantes. As receitas caíram 13,7 milhões de euros.
soante as necessidades” e “diz respeito à programação cultural”. Cada um dos diretores, quando concorreu, já sabia de que verba iria dispor. O dinheiro que vai ser entregue aos museus sairá do orçamento da DGPC, mas o Ministério da Cultura não revela, para já, quando é que o vai começar a distribuir.
Adianta, no entanto, que com o regime de autonomia, “os museus voltam a poder realizar despesa até ao limite máximo legal de 99 mil euros, com um fundo de maneio também para aquelas pequenas despesas […]; e há ainda a possibilidade de consignação de receitas próprias”. Atualmente, as receitas dos museus, monumentos e palácios nacionais são entregues às finanças. Depois, através da DGPC, o dinheiro é disponibilizado às instituições de acordo com as necessidades apresentadas. Não existe um orçamento anual previamente definido para os diretores gerirem.
“Só é possível avaliar o desempenho de um diretor de um museu se ele tiver condições para cumprir o seu programa. A autonomia de gestão era a luz ao fundo do túnel”, diz Maria de Jesus Monge. A questão, afirma por sua vez Luís Raposo, é que a DGPC “está totalmente paralisada, porque não tem dinheiro, muitas vezes, nem para pagar salários”, e vai sobrevivendo a ‘bochechos’ de verbas que o Ministério das Finanças lhe liberta”.
O arqueólogo refere que nos museus portugueses, antes da pandemia, as receitas de bilheteira cobriam em média 20% a 30% dos custos. Mas há museus nacionais que não cobrem mais do que 5% a 8%, sublinha. Se já era assim antes da covid-19, “agora é muito pior”.
Uma das pedras de toque desta reforma da autonomia “era a criação de um bolo global com as receitas totais dos museus, palácios e monumentos”. Esse dinheiro “seria redistribuído de acordo com critérios de equilíbrio”. Em situações normais, os “museus nas zonas turísticas em Lisboa terão sempre muito mais receita do que um que está em Vila Real”. O que faz sentido é “uma redistribuição solidária pelo país”, defende Luís Raposo.
PRIVADOS ADAPTAM-SE À MUDANÇA
Os museus privados também enfrentam tempos de mudança. “Temos o suficiente para manter a máquina a funcionar, mas todos os gastos são contidos”, diz Maria Mayer, diretora da Casa-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa. Detido pela Fundação Medeiros e Almeida, este museu foi dotado pelo fundador de meios financeiros que garantem o seu funcionamento. No caso, são rendas de um prédio de escritórios no centro de Lisboa, situado no mesmo quarteirão do museu. A estas receitas juntam-se as da bilheteira, da cafetaria e da loja de “merchandising”.
O que neste momento preocupa a diretora é o facto de a pandemia estar a mexer com o mercado imobiliário. “Se os nossos inquilinos, que são empresas, chegarem à conclusão de que já não precisam de um escritório com 100 m2, teremos de nos adaptar.” Todos os anos é estipulado um orçamento para o museu, onde “pomos sempre uma rubrica para restauros, até por causa da conservação preventiva”, explica. Em 2020, o investimento foi aplicado no restauro de “um tecto enorme do edifício, do século XVIII”.
Na Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, também se estão a fazer contas. São os negócios agropecuários – como a venda de vinhos, azeite e carne – que financiam as atividades culturais. “Os resultados de 2020 ainda não estão fechados, mas prevemos que essas atividades tenham registado uma quebra de 20%”, afirma Maria do Céu Ramos, administradora executiva da fundação. O orçamento de 2021 foi, por isso, “ajustado à diminuição de rendimento”.
A fundação é detentora de vários equipamentos museológicos em Évora – o Centro de Arte e Cultura, a Coleção de Carruagens, a Casa Museu Paço dos Condes de Basto, as Casas Pintadas e o Convento da Cartuxa. Sendo a cidade alentejana um dos destinos turísticos periféricos mais visitados do país, houve um “enorme impacto” da pandemia. “As entradas nos espaços baixaram para cerca de um terço.” Antes da covid-19, a bilheteira pesava 20% no orçamento.
Neste momento, a fundação está a refletir sobre o seu futuro. O modelo de financiamento vai manter-se, garante Maria do Céu Ramos, “mas temos desafios muito grandes pela frente”. Por isso, é preciso “repensar a sustentabilidade dos equipamentos culturais”, no sentido de encontrar formas de “gerar mais receitas”. Neste novo “racional económico”, como lhe chama, “precisamos de acompanhar os desafios da linguagem digital, garantindo a assiduidade dos públicos nos equipamentos”. A mudança é para fazer sem pressas. “Esta é uma reflexão aberta. Queremos aprender com as experiências de outras instituições.”
Os museus nacionais estão numa situação “verdadeiramente dramática”. E o Ministério da Cultura tem-se revelado “frágil” e “incapaz”, acusa Luís Raposo, presidente do ICOM Europa.