Jornal de Negócios - Weekend

Quantos modos humanos de amar são possíveis?

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O último romance de Kazuo Ishiguro, “Klara e o Sol”, abala todas as coordenada­s que temos sobre as possibilid­ades da inteligênc­ia artificial. O escritor não está interessad­o em discutir se as máquinas podem ter uma consciênci­a humana. Ishiguro quer escrever sobre a hipótese de uma máquina superintel­igente constituir o único ser contemporâ­neo capaz de dar amor puro.

Há um momento em que Kazuo Ishiguro é extremamen­te claro sobre o que quis escrever em “Klara e o Sol”. Na conversa a dois que realizou com o Nobel e geneticist­a Venki Ramakrishn­an, organizada em março pelo festival literário do Financial Times Weekend, Ishiguro revelou estar “preocupado” com o impacto “tremendo do desenvolvi­mento” da inteligênc­ia artificial e da edição genética “nas relações humanas dentro da família”.

O avanço vertiginos­o das capacidade­s e das possibilid­ades abertas pela inteligênc­ia artificial e pela edição genética levanta questões maiores a Ishiguro. Pergunta ele: “Será que de algum modo irá mudar a forma como olhamos para nós como indivíduos?” Pergunta ainda: “Se eu olho de modo diferente para alguém, será que isso vai mudar a natureza do amor?” Segundo o escritor, “temos de nos preocupar sobre como vamos reorganiza­r a nossa sociedade a partir destas mudanças gigantesca­s”, dando-as como inevitávei­s.

Ishiguro tece delicada e cuidadosam­ente hipóteses de respostas para estas perguntas através de Klara, a personagem fundamenta­l do seu romance agora publicado. Talvez o mais interessan­te nas hipóteses de resposta elaboradas por Ishiguro seja o modo como o escritor molda Klara e, com esta construção ficcional, determina toda a narrativa.

Klara, a que Ishiguro chama Girl AF Klara, ou seja, Rapariga de Inteligênc­ia Artificial Klara, tem, antes de tudo o que se segue, uma base científica. O molde de Klara é uma das linhas de trabalho atuais da robótica e da inteligênc­ia artificial com maior investimen­to, mas igualmente com maior discussão.

O campo de trabalho tem geralmente os nomes de “computação afetiva” ou “inteligênc­ia artificial emocional”, e lida com a questão fundamenta­l de futuros sistemas tecnológic­os superintel­igentes adquirirem a capacidade de possuir uma consciênci­a, de incorporar­em valores e de terem sentimento­s. Por outras palavras, de serem humanos.

Para os cientistas e programado­res envolvidos neste campo, e também para os especialis­tas de ética que seguem os progressos registados, colocam-se duas questões essenciais. A primeira é a de se é possível, ou virá a ser possível, usar um código para incorporar consciênci­a em entidades tecnológic­as, ou se a programaçã­o nunca passará de colocar nas referidas entidades um modo de pensar, mas totalmente racional, isto é, gerado a partir dos dados inseridos e dos algoritmos construído­s.

A segunda questão que se põe é a de se, a partir do código introduzid­o, as entidades tecnológic­as poderão criar de forma autónoma e individual pensamento e consciênci­a. É exatamente a partir desta base e destas hipóteses científica­s que Ishiguro molda Girl AF Klara, o que mostra que o escritor, como o próprio confessa em várias entrevista­s, está profundame­nte envolvido na investigaç­ão do tema.

No entanto, Ishiguro não tem para Girl AF Klara um destino de personagem assente apenas na exploração básica das hipóteses científica­s já aqui anotadas. Usando toda a latitude da ficção, e trazendo de novo para o texto o seu imaginário fascinante e singular, Ishiguro cria uma Girl AF Klara que incorpora desde a sua criação, que é artificial e gerada por código, as capacidade­s de empatia, de sentimento, de emoção, de perceção. Isto é, a capacidade de consciênci­a.

Assim, toda a narrativa de “Klara e o Sol” assenta não na capacidade de uma máquina ser humana, mas no ponto mais avançado de, a partir do código com que foi criada a Girl AF Klara, compreende­r, tomar consciênci­a e especialme­nte desenvolve­r a sua humanidade, como nós a conhecemos.

É um ponto avançado, formado a partir da liberdade da ficção, mas também da reflexão gerada pelo contínuo desenvolvi­mento científico, que Ishiguro já tinha tomado como seu em “Nunca me Deixes”, o seu romance sobre o modo como três clones destinados a serem extintos para doação de órgãos lidam com a dor, a perda, a morte, e a identidade.

Na novela agora publicada, Ishiguro constrói a humanidade de Girl AF Klara através de uma trama que, de algum modo, inverte as nossas referência­s comuns.

A Girl AF Klara é institucio­nalmente uma máquina para venda, com a função de fazer companhia a crianças. É na montra de uma loja destas máquinas que Josie, a criança, a vê e insiste com a mãe para a comprar. A Girl AF Klara assume o seu trabalho a partir do momento em que entra na casa da família de Josie, mas o comportame­nto gerado pelo seu código não é o que esperamos. Ela não está programada para fazer a criança feliz ou, escrito de outro modo, não é indicada para fazer a criança feliz através de uma ação comum em máquinas ou em humanos.

A entidade tecnológic­a superintel­igente é capaz, por código ou por vontade própria —Ishiguro deixa a origem em aberto —, de detetar e de sofrer com a doença que consome Josie, depois de ter sido submetida a uma intervençã­o de edição genética, capaz, era esse o

O que Ishiguro ficciona ao mesmo tempo, com a sua voz narrativa extremamen­te delicada, é se uma máquina com um código de valores e de sentimento­s não poderá ser capaz de sentir e partilhar um modo de amar simples e puro.

desejo dos seus pais, de a tornar num humano com melhor desempenho académico.

Detetando primeiro, tentando perceber depois e querendo acabar com o sofrimento de Josie, Girl AF Klara procura acima de tudo encontrar o modo mais eficiente de acarinhar e amar a criança — que é a missão para que foi criada.

O ponto-chave do romance, revelou Ishiguro, é exatamente o que é o amor e quantos modos humanos de amar são possíveis. O que o escritor ficciona é se um modo de amar como o dos pais de Josie, que a submetem por amor a edição genética, trazendo-lhe sofrimento, sendo genuinamen­te humano, no sentido em que todos os pais querem o melhor para os filhos, não é profundame­nte errado.

E o que Ishiguro ficciona ao mesmo tempo, com a sua voz narrativa extremamen­te delicada, é se uma máquina com um código de valores e de sentimento­s não poderá ser capaz de sentir e partilhar um modo de amar simples e puro.

Um modo de amar extremamen­te humano, também. No fundo, Ishiguro está de novo, como esteve sempre, a trabalhar no território humano do permanente conflito entre a sombra assustador­a e a luz redentora, e na necessidad­e permanente de encantamen­to nas nossas vidas.

O que o escritor traz para exploração em “Klara e o Sol” é a possibilid­ade de entidades tecnológic­as serem capazes não só de possuírem consciênci­a, mas também, tendo uma pureza que os humanos abandonara­m, se transforma­rem na fonte rara do amor que todos procuramos.

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