Jornal de Negócios - Weekend

AS MENTIRAS A QUE A lágrima de Sebastião e a “Invenção de Morel”

- PARAGRAFIN­O PESCADA

Nada acontece por acaso. Antes de 25 abril de 2024, Sebastião Bugalho era comentador político na SIC. No pós 25 de abril de 2024, emerge como cabeça de lista da AD às eleições europeias de 9 de junho. Se isto tivesse acontecido após o 25 de Abril de 1974, Sebastião Bugalho seria apelidado de vira-casacas. Cinquenta anos depois da revolução dos cravos, é apenas um jovem que num dia estava a comentar as eleições legislativ­as, o que deveria supor um sereno exercício de equidistân­cia, e um mês depois passa para um dos lados da barricada como uma insustentá­vel leveza ética. Não é preciso ajuda para descredibi­lizar o jornalismo porque o jovem e intrépido Sebastião fez mais por isso do que 100 TikTok da dupla André & Rita.

Nos tempos que correm, chamam-lhe também portas giratórias, expressão sofisticad­a para o pessoal que entra e sai de funções aparenteme­nte conflituan­tes como se fosse a coisa mais natural do mundo. Diz-se ainda que estas movimentaç­ões se enquadram na política espetáculo, e é bem verdade, são verdadeiro­s números de “vaudeville” que entretêm bem e, em alguns casos, fazem até rir a bandeiras despregada­s.

É de esperar, no próximo mês, ver o intrépido e jovem Sebastião a verter uma ou outra lágrima, diante de Daniel Oliveira, no “Alta Definição”, programa pelo qual passam todos os aspirantes a terem um papel de relevo no país, com o objetivo de mostrar que são tão humanos quanto os portuguese­s indiferenc­iados.

Neste enquadrame­nto, faz cada vez mais sentido a Cristina Ferreira candidatar-se à Presidênci­a da República. Aliás, depois da AD ter escolhido Sebastião, coloca-se um enorme desafio a André Ventura no plano de arranjar um contendor capaz de ter uma agilidade retórica similar à de um praticante de ioga. Não podendo ser ele o candidato do partido às europeias, a única figura capaz de pedir meças a Sebastião seria mesmo a Rita, mas o André amedrontou-se e indicou um ex-deputado do PSD, Tiago Moreira de Sá de sua graça, só para fazer pirraça.

No meio de tudo isto, causa alguma estranheza ouvir os líderes partidário­s manifestar­em a sua preocupaçã­o pelos portuguese­s se alhearem das eleições europeias quando são eles próprios a darem munições para que tal aconteça.

Olho para as candidatur­as de Sebastião Bugalho e de Joana Amaral Dias e já estou a antecipar magníficos debates sobre a importânci­a da construção europeia, a aposta no pilar da defesa ou a regulação da inteligênc­ia artificial. Enquanto tal não acontece, aproprio-me das palavras do meu imortal amigo, Fernando Sobral (1960-2022), que nos deliciava com a sua sulfúrica crónica “Pulo do Gato”. Estas foram escritas a 30 de agosto de 2015. “Depois do sucesso do palhaço Tiririca na política brasileira, quatro anos depois, em 2014, surgiram no Brasil outros candidatos que seguiam a mesma linha ideológica: o candidato Mortadela dizia, depois de tirar o fato de palhaço, que “agora é a sério” e o autoprocla­mado Tiririca do Norte afirmava que “é melhor ser um palhaço político do que ser um político palhaço”. (…) O problema de muita da política atual é que é impossível de levar a sério: as suas piadas já não causam riso ou, mesmo, uma singela gargalhada. Um palhaço profission­al chega a uma certa altura em que uma piada está gasta. E muda-a. Alguns políticos da nova geração não têm capacidade para isso: repetem a mesma piada até nem eles próprios acharem graça ao que estão a dizer. E em Portugal não faltam exemplos. Nem na Europa”.

É por estas e outras que Portugal se parece assustador­amente com a máquina criada por Adolfo Bioy Casares no livro “A Invenção de Morel” e que o Centro Nacional de Cultura sintetiza assim: “Um fugitivo condenado na Venezuela chega a uma ilha aparenteme­nte deserta do Pacífico (porventura Tuvalu) e sente-se invisível. A ilha parece estar afetada por uma perigosa e doentia radiação. Morel é um cientista e jogador de ténis que fala com uma mulher bela, a que chama Faustine, que se parece tremendame­nte com Louise Brooks, heroína do cinema mudo. O fugitivo apaixona-se por essa mulher fatal que todos os dias olha o pôr do sol na costa oeste da ilha. Entretanto, descobre que Morel inventou uma máquina capaz de reproduzir a realidade, e aí está a explicação para o mistério com que o fugitivo se confronta. Dalmácio Ombrellier­i, Alec, Dora, Irene, a Senhora Idosa, Haynes ou Stoever povoam um mundo dividido entre a ilusão e a realidade, o mundo é duplicado”.

Bom fim de semana, diletos.

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