A CIRURGIA PLÁSTICA
É TÃO NORMAL QUANTO ESCAMOTEADA
Com um número superior a 2.000 cirurgiões plásticos por metro quadrado, e onde um cuidado facial básico passa por uma rotina de limpeza de 10 passos, a capital da Coreia do Sul é famosa pela estética. Mas qual é o impacto de viver num lugar onde a primeira avaliação vai para o rosto? Corinne Redfern viaja para Seul para perceber melhor a capital mundial da cirurgia plástica.
Completamente nua e a tremer em frente a um espelho em Seul, percebo que o meu conhecimento sobre o conceito de corpo feminino na Coreia do Sul apresenta algumas falhas. Esqueci alguma coisa – algo muito importante. À minha esquerda e direita tenho dúzias de mulheres, todas magras, tonificadas e nuas. E ainda assim, eu sou a mais despida de todas.
O rosto de todas as outras mulheres encontra-se coberto por uma máscara de microfibras concebida para iluminar, limpar e manter a firmeza e a elasticidade da pele durante 20 minutos. É apenas uma das aparentemente infindáveis etapas que todas as mulheres em Seul completam diariamente. “Vou fazer três mascaras hoje”, diz-me Samantha, de 19 anos, retirando da embalagem os produtos que compõem a restante rotina diária de limpeza de dez passos. “Tenho exame de matemática amanhã, por isso quero ter a melhor aparência possível”. Assim é a vida na Coreia do Sul, para onde fui enviada pela Women’s Health para investigar o local que, com mais frequência, faz manchete na imprensa pela beleza do seu povo. A tecnologia ao dispor da beleza na Coreia parece estar uma década à frente da do Reino Unido, e o mercado ‘K-Beauty’ (K de Korean) é um dos maiores do mundo. Mas não falamos apenas de máscaras e cremes exfoliantes. Pensa-se que cerca de 50% das mulheres na casa dos vinte, em Seul, já se submeteu a uma cirurgia plástica, conferindo a este país a taxa mais alta per capita do mundo, seguido do Brasil.
MEDIDAS EXTREMAS
“Beleza é a coisa mais importante na vida de uma mulher coreana”, diz Sarang Kim, 26, bailarina profissional no Korean National Ballet. Pograma o alarme para as 5 da manhã, todos os dias, para dispensar cerca de uma hora a tratar do rosto, e a conta mensal – entre produtos, manicures e trata-mentos de rosto e de corpo – ascende às centenas. “É uma manutenção básica”, diz. “Todas as mulheres que conheço fazem isto”. Sarang sabe do que fala. O ano passado con-quistou o segundo lugar no Miss Coreia – o concurso de beleza que tem feito correr muita tinta a nível mundial pelos piores motivos. Enquanto recorda os seus tempos de concorrente, fica claro que a indignação não foi ultrapassada. O evento é tão fechado em relação ao público, os telefones das concor-
‘AS CRIANÇAS SÃO LEVADAS PARA CLÍNICAS ESTÉTICAS AOS 12 ANOS’
rentes são confiscados e as malas são revistadas (“não vá termos escondido dispositivos de comunicação ou chocolate!”). São atribuídos guarda-costas e um batalhão de cabeleireiros e maquilhadores, totalmente à disposição. A competição é tão feroz que, quando uma concorrente está a sair-se bem, as joias e a make-up começam a desaparecer na tentativa de diminuir as suas hipóteses. Durante o longo mês que dura o concurso, Sarang sobreviveu a dormir apenas duas horas por noite. Depois de o guarda-costas e as companheiras de quarto adormecerem, costumava esgueirar-se para as escadas e ficava a praticar exercício até às três ou quatro da manhã. “Não conseguia deixar de pensar no fato de banho”, recorda, enquanto me mostra uma foto a posar num número minúsculo. “Tinha os maiores papos debaixo dos olhos, mas só pensava, ‘Isto seria um cenário catastrófico – pareceres um sapo’”. Enquanto Sarang andava a subir e descer escadas na calada da noite, a concorrente Chae Yeong, 23, sonhava com bacon. “Lembro-me que só tinha fome”, diz. “Os desejos de comida eram apenas uma parte. Não acho que o concurso me tenha tornado numa melhor pessoa. Ficava frequentemente irritada”. Soa a uma verdadeira tortura, com um impacto nas concorrentes que claramente não se desvanece no tempo. E, contudo, candidatar-se a Miss Coreia ainda é visto com tão bons olhos que as mulheres de ascendência coreana viajam de todas as partes do mundo para poder participar.
“Precisava de mostrar ao mundo que era bela de outras formas”, conta-me Sarang. “Nunca vi os meus pais tão orgulhosos de mim”, acrescenta.
“É como se eles soubessem que eu já era inteligente, mas agora, oficialmente, era também a mais bela”.
GRANDES EXPECTATIVAS
Lá está outra vez. Esta necessidade de ser vista como bonita. Não é como se a cultura ocidental fosse imune a esta pressão, mas parece ter penetrado muito mais fundo na consciência sul-coreana. “O aspeto de uma pessoa influencia tudo à sua volta, desde as perspetivas de emprego ao sucesso da sua relação, mas vai muito além da influência – controla tudo”, explica Sarang. “Quando se candidata a um emprego, tem que enviar uma foto, pelo que é a primeira coisa que o empregador vê e é assim que nos avalia”. “Dias livres aqui não existem”, diz Jiaying Lim, psicóloga e fundadora da clínica de aconselhamento, Couchology, com base em Seul. “Aos fins de semana, toda a gente usa roupa informal para ir beber café com os amigos, sem nunca descurar a elegância, com os cabelos e a maquilhagem perfeitamente alinhados. Pode até sentir-se cansada ou stressada, mas não vai querer mostrar esse lado aos amigos, nem aos mais íntimos”. Stella Yujin concorda que esse lado cultural é infinitamente diferente do ocidente. Esta mulher de 27 anos cresceu em Pohang city, na costa leste da Coreia da Sul, antes de se mudar para São Francisco, nos EUA , quando tinha 23. “Fui criada para ser perfeita”, diz . “Cresci a frequentar o liceu das 8 da manhã até à meia-noite e depois tinha um tutor por mais duas horas”. Sim, leu bem. Ou seja, até às 2 da manhã. Quando chegou à universidade, Stella estava fixada no peso. “Tenho 1,62 metros, pelo que pensei que teria que pesar exatamente 44 kg [equivale a um IMC de 16.5 – bem abaixo de um limiar saudável] porque ninguém me iria dar emprego se tivesse excesso de peso. Quando fui viver para os EUA, pensei: “Espera lá, as mulheres podem ser mais fortes e continuar bonitas”, e ganhei 10 kg em três meses. Comecei a
treinar e a restringir menos a ingestão de alimentos. Estava tão feliz!”. Faz uma pausa. “Mas cla-ro, assim que voltei, uma amiga disse-me, ‘Stella, o que aconteceu? Precisas fazer uma dieta’”. Os anseios que pesavam sobre Stella, mesmo durante a adolescência, levaram-na a ir mais longe do que apenas a restrição calórica. “Lembro-me que, no final do Ensino Secundário, a minha mãe disse-me: ‘Stella, és muito bonita, mas poderias ser ainda mais com uma pequena intervenção aos teus olhos’ e então ela pagou-me uma cirurgia plástica. Foi como se a pressão para ser academicamente perfeita tivesse feito um pequeno desvio e agora tivesse que ser também maravilhosa na aparência física”.
Os pais que pagam para os filhos se submeterem a uma cirurgia plástica parece algo acabado de sair de My Super Sweet 16, mas o que dizer daqueles que ainda o sugerem? De acordo com Lim, as operações plásticas são tão vulgares na Coreia do Sul que o choque não tem o mesmo impacto que em qualquer outra parte do mundo. “A minha cunhada teve uma bebé com monolids [são os olhos que, de forma natural, não possuem a dobra da pálpebra] e toda a gente brincava dizendo que, quando ela fosse mais velha, iriam oferecer-lhe uma cirurgia de prenda de aniversário”, recorda. “Por um lado, era apenas uma idiotice divertida. Mas por outro, as crianças aqui são iniciadas nas cirurgias pelas mãos dos pais quando têm apenas 12/13 anos, e quanto te dás conta disso, a brincadeira deixa de ter graça. Com menos de 18 anos os pais precisam autorizar uma cirurgia, mas não há um requisito de idade mínimo. Um médico com quem falei relembra uma menina de nove anos que veio para uma cirurgia facial”.
O elevado número de clínicas coreanas era parte da atração para Mika Rivero. A estudante espanhola de 20 anos que se mudou para aqui há um ano, submeteu-se a uma lipoaspiração poucas semanas após ter chegado. “Para onde quer que olhes há cartazes a publicitar tratamentos cosméticos”, diz-me na clínica La Prin em Cheongdam, onde se encontra a meio de um tratamento de uma hora de lifting a laser ao rosto. Mas a conveniência de uma clínica a cada esquina não foi a única tentação para ela. Com uma correção ao nariz por apenas 165€ (mínimo), falamos de valores bastante tentadores para as massas. O centro nevrálgico da cirurgia cosmética encontra-se na ‘Beverly Hills’ de Seul, mas estão disponíveis tratamentos para homens e mulheres com todos os tipos de rendimentos. “Quando estava em Espanha sentia o mesmo anseio de melhorar a aparência física, mas a cirurgia plástica nunca foi uma hipótese – provavelmente porque é muito cara na Europa. O tratamento que estou a fazer é para combater a acne e tonificar os músculos faciais. Custa cerca de 700€, mas dura um ano, pelo que acho que vale a pena. A seguir, planeio tratar do nariz e dos lábios”.
GANGNAM STYLE
A cirurgia tão acessível e a perfeição, um conceito tão enraizado na cultura sul-coreana, estão na base do motivo por que o Miss Coreia é sempre controverso em qualquer parte do mundo. O concurso de 2013 foi notícia em todo o mundo. O motivo? Todas as concorrentes apresentavam uma semelhança surpreendente. “A maior parte das raparigas era tão parecida, que dizíamos que elas tinham um ‘Rosto Gangnam Girl’, batizado em honra do exclusivo bairro – Gangnam-gu – onde estão localizadas todas as clínicas cosméticas”, diz o dr. Yang Soo Park da Miin Clinic. “Há determinadas tendências comuns – como narizes retos ou olhos grandes e infantis. Desça a rua e vai encontrar exatamente as mesmas características em várias pessoas – homens e mulheres”. “Cada concorrente submeteu-se a alguma cirurgia”, diz-me Sarang. “A minha custou cerca de 880€, e é o máximo que consigo pagar. Mas outras jovens já fizeram aos olhos, ao nariz, à boca e ao peito. Estão fantásticas”, diz, suspirando. Sarang submeteu-se à cirurgia ‘V-line’, um procedimento popular que elimina a gordura do queixo para criar um rosto ‘tipo coração’ (mais larga nas sobrancelhas e estreita no queixo). É uma cirurgia tão procurada antes dos concursos, que se diz que são destacados guarda-costas para impedir que as concorrentes se esgueirem para tratamentos de melhoramento. Sarang baixa o queixo até ao
‘PODEM SOFRER DE DISTÚRBIOS EXTREMOS DE COMPARAÇÃO’
EM 2013, AS CONCORRENTES AO MISS COREIA ERAM TODAS SEMELHANTES
pescoço para mostrar que não existe uma única prega à vista. Entristece-me ouvir que ela pensa que ainda não é suficiente. Foi a primeira rapariga em 11 anos a chegar à final do concurso com monolids e sentiu-se dividida ao decidir se se submetia ao procedi-mento para criar a dobra da pálpebra e conquistar o lugar cimeiro. Por fim, a razão falou mais alto. “Decidi que era aquele porme-nor que me tornava diferente e única”, diz. Dr. Young Gil Kim fica agra-dado de ouvir isso. “Atualmente desvalorizamos as concorrentes que têm demasiadas cirurgias”, confessa-me. Ele, que tantas vezes desempenhou o papel de júri, e que é fundador da Allura Cosmetic Clinic, é também ex-presidente da Korean Society of Aesthetic Plastic Surgery. “É triste. As raparigas deste país sofrem tanta pressão para parecerem bonitas, mas as pessoas esquecem-se que é na diversidade que está a beleza”. É esse o motivo pelo qual, apesar de já ter realizado cerca de 40.000 procedimentos cirúrgicos bem-sucedidos ao longo dos seus 30 anos de carreira, dissuade a sua própria filha de se submeter a algo assim.
O PESO DA DECISÃO
Uma dose de anestésico e uma mandíbula enfaixada não me soa exatamente a uma receita de autoconfiança – e, em muitos casos, não é. Um estudo recente descobriu que 32% das pessoas que se submetiam a cirurgia plástica na Coreia do Sul não ficavam satisfeitas com os resultados, e pensase que até 80% dos médicos de Gangnam-gu podem não ter a qualificação adequada para realizar os procedimentos que oferecem. É comum especialistas recomendarem procedimentos a colegas menos experientes a fim de satisfazer o excesso de procura. Claro que só pode ser uma coincidência, que o país com a maior taxa de cirurgias plásticas no mundo tenha também a maior taxa de suicídios dos países desenvolvidos entre o sexo feminino, mas numa sociedade que coloca um peso tão grande na aparência, quando alguma coisa corre mal, as conse-quências podem ser desastrosas. Em 2014, foi noticiado que uma ex-concorrente a Miss Coreia tinha tentado o suicídio duas vezes após um aumento mamário que correu mal. “Lamento tanto [a cirurgia]”, disse na altura a concorrente, que pediu o anonimato. “As cirurgias são como um vício. Se faz os olhos, quer fazer o nariz. E os médicos, em momento algum, lhe dizem que já é bonita o suficiente, ainda incentivam as pessoas a fazer mais”.
A trabalhar em Seul como consultora, Lim diz que ouve frequentemente as pessoas lamentarem a pressão pela manutenção de uma fachada de perfeição. “A saúde mental continua a ser estigmatizada neste país”, explica ela. “Abrir os seus sentimentos a um estranho – especialmente as falhas e as inseguranças – é visto como algo negativo, e os benefícios são negligenciados. Mas muitas mulheres, quando chegam até mim, apresentam perturbações graves de comparação, síndrome do impostor e distúrbios alimentares”. Felizmente, todas as sociedades têm os seus rebeldes. “As pessoas têm uma visão limitada de como deve ser o visual das mulheres, o que não as faz necessariamente sentir-se melhor com elas próprias”, diz Gyo-Hyo Bae, de 25 anos, e que faz parte de um duo extra-size que tem a missão de sacudir a perceção de beleza, ao desfilar no Instagram tamanhos 16-20 (@jstyle_ evellet). Tem sorte, diz. Os pais criaramna a sentir-se confortável na sua própria pele; uma segurança que surgiu a praticar desportos que adora e não propria-mente em dietas sucessivas. “Quero provar que ser ativa é mais importante que ser magra. Posso vestir uns números acima, mas adoro o que posso fazer com o meu corpo”.
UM TRABALHO INTERIOR
“Quando regressei a casa, os meus amigos não me reconheceram”, diz Mika. “Não que tenha transformado o rosto, mas porque voltei mais confiante e segura”.
Após ter feito a lipoaspiração, começou a seguir uma alimentação saudável (para nunca mais ter de recorrer a uma cirurgia). Hoje, acredita que está mais saudável do que já estivera antes. Rachel Lee, 31 anos, nascida em Seul, con-corda que entrar nesta cultura pode servir de mote para uma vida mais saudável. “Em Seul, somos aquilo que comemos – é sim-ples. A minha mãe ensinou-me desde nova a pensar naquilo que punha no corpo. Sabia que não poderia esperar ter uma boa pele se não praticasse exercício ou se não me alimentasse bem”. Sarang resume toda a história sul-coreana desta forma. “Na Coreia, a beleza realmente não é um tema superficial. Representa a forma como a pessoa vive toda a sua vida Investimos na aparência do mesmo modo como investimos nas nossas carreiras. Apenas tento ser a melhor pessoa que consigo”. Com três máscaras de rosto ao dia e tudo.