A ORALIDADE NAS SOCIEDADES BANTU*
O que hoje entendemos por arte, expressão de sentimentos através das mais diversas formas de estética, destinava-se a desempenhar o papel de unificador e regulador social, politico, religioso, quer se tratando de literatura, música, dança ou artes plásticas.
A“literatura” consistia em provérbios, adivinhas e narrativas de tradição oral, isto é, em histórias que passavam dos pais para os filhos, e que, sofrendo transformações de geração em geração, relatavam lendas ligadas à criação do mundo, à genealogia dos reis, aos feitos dos heróis ou fábulas – cujas personagens eram animais personificados – para retratar a vida social. Os especialistas na narração destas histórias eram os guardiães da memória do povo e narravam-nas em público, em circunstâncias solenes, normalmente à noite, entoando cânticos, tocando instrumentos musicais, executando danças e envergando máscaras esculpidas para o efeito e pintadas de cores por eles próprios escolhidas. Assim se integravam na mesma função a literatura, a música, a dança, a escultura e a pintura.
Como em todas as sociedades, os indivíduos têm a necessidade de conhecer os antepassados para se identificarem uns com os outros e se sentirem unidos. São esses antepassados que legitimam a autoridade dos chefes da comunidade. Daí que a salvaguarda da identidade do grupo e da estabilidade do poder se faça, preferencialmente, pelo recurso à genealogia ou, se preferirmos, a uma história genealógica. A organização dessa história é feita, pois, em função do que a memória colectiva guardou da genealogia das famílias dominantes, aquelas cuja linhagem – matrilinear ou patrilinear – remonta a um antepassado comum fundador do grupo.
Esta história genealógica e mitológica do grupo, que pretende ligar os vivos aos espíritos remotos dos antepassados, reveste-se de um carácter sagrado. A sua transmissão, à semelhança de todos os valores culturais que a sociedade considera importantes para o perfeito funcionamento das suas instituições, processa-se pela via da tradição, ou oralidade (ou, pleonasticamente, tradição oral), entendida esta como processo pelo qual as gerações mais velhas transferem verbalmente para as mais novas um testemunho, o seu, ou do que é colectivamente aceite como o que os antepassados deixaram da vida da comunidade. É perpetrada, por isso, por homens revestidos dessa função no quadro da sociedade em que se inserem, os guardiães da memória colectiva, os chamados “homens-memória”, “genealogistas” ou “tradicionalistas”, conhecidos em kikongo pela expressão mpovi e em Kimbundu pelo termo kaboko. O guardião da palavra e das tradições podia igualmente desempenhar funções judiciais de magistrado ou advogado durante os pleitos. À semelhança, aliás, do que acontece em qualquer sociedade, o advogado (em latim ad vocatio, literalmente ao lado da voz) é “aquele que fala pelos outros” ou “pela voz dos outros” e que nos julgamentos possui a faculdade de “ter palavra”, “fazer palavra”, “cortar palavra” ou “puxar palavra”. Nas sociedades orais a fi- xação da memória colectiva opera-se, portanto, não apenas através da capacidade criativa e mnemónica do narrador, mas igualmente pela intervenção dos auditores, num jogo de “palavra puxa palavra” que, a partir do termo Kimbundu sûngui, originou a expressão, em português de Angola, sunguilamento ou acto de sunguilar. No sûmgui processa-se um entendimento perfeito entre a pluralidade de interlocutores, dentro dos códigos linguísticos e culturais que gera um entretecer de “textos” ou “géneros” orais convergentes para uma construção. Podemos caracterizá-la, quer através dos aforismos “quem conta um conto acrescenta sempre um ponto” ou “a conversa é como as cerejas”, quer pela expressão poética “missanga de cassungos grossos” usada por Arnaldo Santos no seu romance A casa velha das margens. As narrativas da tradição oral, todas susceptiveis de se entretecerem no sûngui, organizavam-se em quatro categorias, que enunciamos em português e em Kimbundu: as canções (miimbu), as adivinhas (jinongonongo), os provérbios (jisabu) e as narrativas (misoso). Podemos subdividir esta última categoria, as narrativas, em quatro subcategorias: as fábulas, pequenas histórias protagonizadas por personagens animais que pretendem simbolizar sentimentos ou instituições, os contos fictícios (são estes que normalmente, em Kimbundu, aparecem designados, no plural, pelo termo misoso), pequenas histórias protagonizadas por seres humanos; os casos tidos como verídicos, designados por maka em Kimbundu e por mambu (termo aplicável aos casos jurídicos) ou ki mona mesu (esta expressão traduz-se literalmente por “o que os olhos vêem” ou por “o que pelos olhos é visto”) em kikongo, finalmente as narrativas épicas, as quais podem reportar-se, quer a mitos universais ou cosmogónicos, etiológicos ou religiosos (malunda), quer a histórias de linhagens que radicam no mito do herói fundador (misendu em Kimbundu e mvila em kikongo).
*Extrato da obra “História de Angola _ da pré-história ao início do século XXI” **Doutor em História de África & Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa