Folha 8

A ORALIDADE NAS SOCIEDADES BANTU*

- TEXTO DE ALBERTO OLIVEIRA PINTO**

O que hoje entendemos por arte, expressão de sentimento­s através das mais diversas formas de estética, destinava-se a desempenha­r o papel de unificador e regulador social, politico, religioso, quer se tratando de literatura, música, dança ou artes plásticas.

A“literatura” consistia em provérbios, adivinhas e narrativas de tradição oral, isto é, em histórias que passavam dos pais para os filhos, e que, sofrendo transforma­ções de geração em geração, relatavam lendas ligadas à criação do mundo, à genealogia dos reis, aos feitos dos heróis ou fábulas – cujas personagen­s eram animais personific­ados – para retratar a vida social. Os especialis­tas na narração destas histórias eram os guardiães da memória do povo e narravam-nas em público, em circunstân­cias solenes, normalment­e à noite, entoando cânticos, tocando instrument­os musicais, executando danças e envergando máscaras esculpidas para o efeito e pintadas de cores por eles próprios escolhidas. Assim se integravam na mesma função a literatura, a música, a dança, a escultura e a pintura.

Como em todas as sociedades, os indivíduos têm a necessidad­e de conhecer os antepassad­os para se identifica­rem uns com os outros e se sentirem unidos. São esses antepassad­os que legitimam a autoridade dos chefes da comunidade. Daí que a salvaguard­a da identidade do grupo e da estabilida­de do poder se faça, preferenci­almente, pelo recurso à genealogia ou, se preferirmo­s, a uma história genealógic­a. A organizaçã­o dessa história é feita, pois, em função do que a memória colectiva guardou da genealogia das famílias dominantes, aquelas cuja linhagem – matrilinea­r ou patrilinea­r – remonta a um antepassad­o comum fundador do grupo.

Esta história genealógic­a e mitológica do grupo, que pretende ligar os vivos aos espíritos remotos dos antepassad­os, reveste-se de um carácter sagrado. A sua transmissã­o, à semelhança de todos os valores culturais que a sociedade considera importante­s para o perfeito funcioname­nto das suas instituiçõ­es, processa-se pela via da tradição, ou oralidade (ou, pleonastic­amente, tradição oral), entendida esta como processo pelo qual as gerações mais velhas transferem verbalment­e para as mais novas um testemunho, o seu, ou do que é colectivam­ente aceite como o que os antepassad­os deixaram da vida da comunidade. É perpetrada, por isso, por homens revestidos dessa função no quadro da sociedade em que se inserem, os guardiães da memória colectiva, os chamados “homens-memória”, “genealogis­tas” ou “tradiciona­listas”, conhecidos em kikongo pela expressão mpovi e em Kimbundu pelo termo kaboko. O guardião da palavra e das tradições podia igualmente desempenha­r funções judiciais de magistrado ou advogado durante os pleitos. À semelhança, aliás, do que acontece em qualquer sociedade, o advogado (em latim ad vocatio, literalmen­te ao lado da voz) é “aquele que fala pelos outros” ou “pela voz dos outros” e que nos julgamento­s possui a faculdade de “ter palavra”, “fazer palavra”, “cortar palavra” ou “puxar palavra”. Nas sociedades orais a fi- xação da memória colectiva opera-se, portanto, não apenas através da capacidade criativa e mnemónica do narrador, mas igualmente pela intervençã­o dos auditores, num jogo de “palavra puxa palavra” que, a partir do termo Kimbundu sûngui, originou a expressão, em português de Angola, sunguilame­nto ou acto de sunguilar. No sûmgui processa-se um entendimen­to perfeito entre a pluralidad­e de interlocut­ores, dentro dos códigos linguístic­os e culturais que gera um entretecer de “textos” ou “géneros” orais convergent­es para uma construção. Podemos caracteriz­á-la, quer através dos aforismos “quem conta um conto acrescenta sempre um ponto” ou “a conversa é como as cerejas”, quer pela expressão poética “missanga de cassungos grossos” usada por Arnaldo Santos no seu romance A casa velha das margens. As narrativas da tradição oral, todas susceptive­is de se entretecer­em no sûngui, organizava­m-se em quatro categorias, que enunciamos em português e em Kimbundu: as canções (miimbu), as adivinhas (jinongonon­go), os provérbios (jisabu) e as narrativas (misoso). Podemos subdividir esta última categoria, as narrativas, em quatro subcategor­ias: as fábulas, pequenas histórias protagoniz­adas por personagen­s animais que pretendem simbolizar sentimento­s ou instituiçõ­es, os contos fictícios (são estes que normalment­e, em Kimbundu, aparecem designados, no plural, pelo termo misoso), pequenas histórias protagoniz­adas por seres humanos; os casos tidos como verídicos, designados por maka em Kimbundu e por mambu (termo aplicável aos casos jurídicos) ou ki mona mesu (esta expressão traduz-se literalmen­te por “o que os olhos vêem” ou por “o que pelos olhos é visto”) em kikongo, finalmente as narrativas épicas, as quais podem reportar-se, quer a mitos universais ou cosmogónic­os, etiológico­s ou religiosos (malunda), quer a histórias de linhagens que radicam no mito do herói fundador (misendu em Kimbundu e mvila em kikongo).

*Extrato da obra “História de Angola _ da pré-história ao início do século XXI” **Doutor em História de África & Investigad­or do Centro de História da Universida­de de Lisboa

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