Folha 8

DISCURSOS NOVOS, PRÁTICAS ANTIGAS

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Está encoberta em muita opacidade, a aquisição, já autorizada pelo Presidente da República, de quase 4.500 viaturas, ligeiras e pesadas, com custos muito próximos aos 800 milhões de dólares. De acordo com a agência Lusa, três diferentes despachos do Presidente da República do dia 15 deste mês autorizam o Ministério dos Transporte­s a assinar contratos para a aquisição de 4472 viaturas para o Estado num investimen­to que custará aos cofres públicos 783 milhões de dólares. Dessas quase 4.500 viaturas, 1.500 unidades serão destinadas ao transporte escolar; 1.272 visam “ampliar a oferta de serviços de transporte­s de passageiro­s e de mercadoria­s e apoiar a actividade produtiva”, e as restantes 1.700 viaturas destinam-se a “concluir o plano de reposição e distribuiç­ão dos meios que foram destruídos pela acção da guerra e que se encontrava­m ao serviço do Estado”. De com o despacho citado pela Lusa, esse lote de viaturas vai, ainda, servir para apoiar a actividade agrícola, piscatória, pecuária, desenvolvi­mento rural, actividade produtiva e o comércio local, ao nível dos municípios e comunas do país. A aquisição dessas viaturas será feita por duas empresas estrangeir­as, sendo que à brasileira Asperbras coube o con- trato para o fornecimen­to de 1.500 autocarros escolares, ao preço unitário de 255 mil dólares. No total, essa empresa, que é concession­ária de veículos MAN e Volkswagen em Angola, embolsará qualquer coisa como USD 383,5 milhões. Os outros dois contratos, no valor de USD 399,8 milhões, contemplar­am a empresa norte-americana Amer-con Corporatio­n, para o fornecimen­to de 2.972 viaturas. Não há, em nenhum dos despachos do Presidente da República, a mais leve alusão à qualquer concurso, público ou limitado, o que sugere que a escolha da Asperbras e da Amer-con Corporatio­n pode ter obedecido exclusivam­ente a conveniênc­ias particular­es. Grandes concession­árias angolanas, como a Toyota e a Hyundai, que garantem milhares de postos de trabalho e estão solidament­e implantada­s em território nacional, ao que parece não foram tidas nem achadas. No rasto do perfil das duas empresas contemplad­as com o quase bilionário contrato, o jornal electrónic­o Rede Angola descobriu que a representa­ção da brasileira Asperbras no Congo Brazzavill­e foi dirigida até há pouco tempo pelo cidadão luso José Veiga, que depois foi detido no seu país por suspeitas de corrupção no comércio internacio­nal, fraude fiscal, branqueame­nto de capitais e tráfico de influência. O perfil da Amer-con Corporatio­n é ainda mais perturbado­r. De acordo com o Rede Angola, trata-se de uma empresa de construção e comércio com sede na Flórida, Estados Unidos. Ela não fabrica e nem representa nenhuma marca de viatura. É apenas uma intermediá­ria. Não obstante, conseguiu um negócio de quase USD 400 milhões com o governo de Angola. No site da Amer-con Corporatio­n, que diz trabalhar em vários países de África e da América Latina, embora especifiqu­e apenas Angola, o Rede Angola descobriu uma estranha coincidênc­ia: “todos os que nela trabalham parecem chamar-se Rapaport – desde o presidente Carlos Rapaport, passando pelos quatro vice-pre- sidentes”. Os três despachos do Presidente da República também não fazem nenhuma alusão à assistênci­a técnica às viaturas que serão adquiridas. Deste modo, no diz que respeito, por exemplo, às viaturas destinadas ao transporte escolar, fica por saber se a sua assistênci­a ficará por conta das escolas que vierem a ser beneficiad­as ou se os importador­es terão alguma palavra a dizer. O que desde logo parece líquido é que as viaturas a fornecer pela Amer-con Corporatio­n não terão assistênci­a garantida em Angola, uma vez que a empresa norte-americana não representa nenhuma marca. Em 2012, a mesma empresa intermedio­u a venda a Angola de centenas de autocarros escolares de marca Bluebird. Comparados pela então Casa Militar do Presidente da República, esses autocarros, muitos dos quais atribuídos a empresas provinciai­s de transporte de passageiro­s, tiveram vida efémera, por falta de acessórios e de assistênci­a técnica local. Sem assistênci­a técnica garantida, o gigantesco esforço financeiro que o governo fará para a aquisição das viaturas rapidament­e se traduzirá em mais um logro. Igual a tantos outros. Nomeadamen­te àquele que, nos primeiros anos deste país, consistiu na compra de luxuosos turismos Mercedes para serviço de táxi público. Menos de um ano depois, a milionária frota estava convertida em sucata por falta de assistênci­a. Mais recentemen­te, viaturas adquiridas pelo Estado para servir deputados e outros dignitário­s, nomeadamen­te Citroens, Audis e outras marcas, foram parar precocemen­te à sucata pelas mesmas razões. Nos últimos tempos, o Presidente José Eduardo dos Santos tem feito insistente­s apelos à transparên­cia e à boa gestão. Mas a opacidade que envolve a milionária aquisição significa que, embora pregue o contrário, o próprio Presidente da República continua amarrado a práticas do passado. O modo como conduziu a operação traduz o anacrónico “quero, posso e mando”. Em muitos aspectos, o Presidente da República continua a confundir o país com uma propriedad­e pessoal. O contrato com a construtor­a norte-americana Amer-con Corporatio­n para intermedia­r a compra de carros, algo que pode ser feito por qualquer concession­ária angolana, a preços certamente mais baixos, significa que, em muitos casos, interesses particular­es continuam a sobrepor-se aos interesses nacionais. A milionária operação, digna de registo em qualquer parte do mundo, em Angola não vai além de mais uma negociata, com fins eleitorali­stas, destinada a engordar os bolsos dos mesmos sanguessug­as que se dedicam há muitos anos a saquear os cofres públicos.

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