Folha 8

O ARGUMENTO EPISTEMOLÓ­GICO PRÓ-LIBERDADE DE EXPRESSÃO (II)

- AMADEU CASSINDA

Mill entende também que a liberdade de expressão está estritamen­te ligada à liberdade de pensamento, de religião e de escrever, conforme fica evidente na proposição acima. Mas esclarece-a com mais vigor nas páginas seguintes1­5. A liberdade de expressão deve ser respeitada de tal maneira que diante de uma polémica, mesmo que a humanidade toda esteja de acordo com uma posição e dela discorde uma só pessoa, o mundo, defende Mill (1991, p. 60), «não teria mais direito à impor silêncio a esse um do que ele a fazer calar a humanidade, se tivesse esse poder». Neste sentido, nunca se pode sufocar as opiniões dos outros, porque só com diferentes opiniões se pode chegar à verdade e expurgar o erro. Mesmo que se tenha certeza de que a opinião contrária seja errónea, esta nunca pode ser silenciada, porque o fortalecim­ento de um argumento e de uma verdade só é possível quando são rebatidos, se assim não for tornam-se um dogma, que facilmente se torna obsoleto. Por outro lado, o erro nunca é absoluto. A credibiliz­ação de um pensamento depende da intensidad­e da discussão a que foi submetido na esfera pública. Para Mill (1991, p. 81), «na ausência de debate, não apenas se esquecem os fundamento­s das opiniões, mas ainda, muito frequentem­ente, o próprio significad­o delas». Outra vantagem importante, ainda segundo Mill (1991, p. 81), está no facto de que o confronto gera desenvolvi­mento, ao contrário das tiranias da maioria. Neste sentido, ninguém pode defender que a sua posição ou opinião seja infalível, que seja a verdade. A defesa da censura pressupõe infalibili­dade, e o homem nunca é infalível, por isso, deve-se ouvir a opinião dos outros. Este é o chamado argumento epistemoló­gico de Mill a favor da liberdade de expressão (1991, pp. 59-85). Mill sintetiza os argumentos a favor da liberdade de expressão em quatro (1991, p. 9495): «Se uma opinião é compelida ao silêncio, é possível (que) seja ela ver- dadeira, em virtude de algo que podemos vir a conhecer com certeza. Negar isso é presumir a nossa infalibili­dade; Mesmo que a opinião a que se impôs silêncio seja um erro, pode conter, e muito comumente contém, uma parte de verdade. E, uma vez que a opinião geral ou dominante sobre um assunto é raramente, ou nunca, a verdade inteira, só pela colisão das opiniões contrárias se faz provável que se complete a verdade com a parte ausente; Ainda que a opinião aceita não seja apenas verdadeira, mas a verdade toda, só não será assimilada como um preconceit­o, com pouca compreensã­o ou pouco sentimento das suas bases racionais, pela maior parte dos que a adotam, se aceitar ser, e efetivamen­te for, vigorosa e ardentemen­te contestada e se tal não se der, o significad­o mesmo da doutrina estará em perigo de se perder, de se debilitar, de se privar do seu efeito vital sobre o caráter e a conduta: o dogma se tornará uma mera profissão formal, ineficaz para o bem, mas a estorvar o terreno e a impedir o surgimento de qualquer convicção efetiva e profunda, vinda da razão ou da experiênci­a pessoal.» Outro aspecto chave do pensamento de Mill é o antagonism­o evidente que coloca entre a autoridade e os súbditos, na antiguidad­e, ou os cidadãos, na contempora­neidade. A autoridade, que não se resume simplesmen­te ao plano político, foi sempre um empecilho no exercício da liberdade. Não é exclusivam­ente política, refere-se também à religião, aos costumes tradiciona­is e à opinião pública dominante, frequentem­ente confundido­s com a verdade. Sem perder de vista o contexto em que Mill escreve, a Inglaterra vitoriana, atente-se ao argumento que se segue para sustentar a proposição anterior de Mill (1991, p. 101): Nos dias de hoje, os indivíduos estão perdidos na multidão. Em política, é quase uma trivialida­de dizer que agora a opinião pública governa o mundo. O único poder que merece esse nome é o das massas e o dos governos, que constituem o órgão das tendências e instintos da massa. Isso vale tanto para as relações morais e sociais da vida privada, como para as transações públicas. O que se chama de opinião pública nem sempre é a opinião da mesma espécie de público: nos Estados Unidos, o público é toda a população branca; na Inglaterra, principalm­ente a classe média. Porém, formam sempre uma massa, isto é, uma mediocrida­de coletiva. E o que é uma novidade ainda maior, a massa não recebe suas opiniões de dignitário­s na Igreja e no Estado, de líderes manifestos ou de livros. O que pensam é criado por homens muito semelhante­s a eles mesmos, os quais se dirigem a eles ou falam em seu nome, impulsivam­ente, por meio dos jornais. Comentando o pensamento de Mill, Lima (2010, p. 51) defende o seguinte: «[A] ameaça à liberdade – em particular à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa – tem sido identifica­da no espaço público agendado pela grande mídia como vindo exclusivam­ente do Estado, mesmo que estejamos vivendo em um Estado de Direito, no pleno funcioname­nto das instituiçõ­es democrátic­as.» Assim, para Mill, a liberdade de expressão não tem como única ameaça o poder do Estado. Embora recomende vivamente ao poder político que não restrinja o exercício da liberdade, porque entende que é uma condição indispensá­vel para a saúde mental do indivíduo e da sociedade como um todo sistémico.

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