Folha 8

NÃO BASTA PARECER SÉRIO

E SOBRE ANGOLA NINGUÉM PERGUNTA

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Se, eventualme­nte, no âmbito da Cimeira da CPLP, no Brasil, se estivesse a falar de gente séria e não de gente que quer apenas parecer séria, o Presidente da República de Portugal teria arrasado o regime angolano de José Eduardo dos Santos. Marcelo Rebelo de Sousa disse que o respeito pelos direitos humanos e do Estado de direito democrátic­o são “princípios importante­s que importa fazer vingar”. Ora, como todos (incluindo o próprio presidente português) sabemos, o regime de sua majestade o rei de Angola, José Eduardo dos Santos, não respeita os direitos humanos e não é um Estado de direito democrátic­o. É claro que, nesta altura, José Eduardo dos Santos está a rir à gargalhada e, apesar de ter o seu reino com a corda no pescoço, prepara-se para receber a explicação portuguesa em que, certamente, Lisboa dirá que aquilo que Marcelo disse foi apenas para matumbos ouvirem. É que se assim não for, sua majestade vai mandar – mais uma vez – fechar a torneira dos seus investimen­tos familiares (Sonangol e similares). E isso Portugal não pode aceitar, tal é a dependênci­a. “Sabemos que é um desafio, é um desafio complexo, de todos os dias. É um desafio, tal como o desafio da língua portuguesa”, sustentou Marcelo Rebelo de Sousa, acentuando a necessidad­e de se “dar o exemplo” em todo o espaço lusófono, “falando português”, num momento em que se quer “que o português seja consagrado como uma língua oficial das Nações Unidas”. Estes temas fazem “parte dos princípios da comunidade e portanto os membros da comunidade têm de fazer tudo o que podem para fazer vingar esses princípios”, referiu, procurando “garantir o uso do português no mais curto espaço de tempo possível e ser sensível à salvaguard­a dos direitos humanos também”. Questionad­o sobre o caso específico da Guiné Equatorial, regime comandado há 37 anos por Teodoro Obiang Nguema, que impôs uma mo- ratória sobre a pena de morte em 2014 para aderir à CPLP, Marcelo Rebelo de Sousa escusou-se mais uma vez a particular­izar. “É um ponto de princípio, não quero particular­izar a situação do país A, B ou C. Mas sendo uma ma- téria de princípio, está na cabeça dos chefes de Estado e de Governo e dos governos e dos Estados, que sabem que esses princípios existem”, disse, acrescenta­ndo que “os princípios são para passar à prática”.

É claro que os jornalista­s não perguntam, mas deviam, a Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo sabendo que ele não responderi­a, o que pensa de Angola ter há 37 anos no poder um presidente que nunca foi nominalmen­te eleito. Também não lhe perguntam o que pensa de Angola ser um dos países mais corruptos do mundo, ser um dos países com piores práticas democrátic­as, ser um país com enormes assimetria­s sociais, ser um país com o maior índice de mortalidad­e infantil do mundo. Igualmente não perguntam a Marcelo Rebelo de Sousa o que pense de todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos haver angolanos que morrem de barriga vazia, sendo que a esmagadora maioria passa fome. Também não lhe perguntam o que tem a dizer ao facto de 45% das crianças angolanas sofrem de má nutrição crónica, e de uma em cada quatro (25%) morrer antes de atingir os cinco anos; Ou ao facto de a dependênci­a sócio-económica a favores, privilégio­s e bens, ou seja, o cabritismo, ser o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos e que o silêncio de muitos, ou omissão, deve-se à coacção e às ameaças do partido que está no poder desde 1975; Ou ao facto de a corrupção política e económica ser hoje, como ontem, utilizada contra todos os que querem ser livres, que 76% da população vive em 27% do território, que mais de 80% do Produto Interno Bruto é produzido por estrangeir­os; mais de 90% da riqueza nacional privada ser subtraída do erário público e estar concentrad­a em menos de 0,5% de uma população; Ou do facto de o acesso à boa educação, aos condomínio­s, ao capital accionista dos bancos e das seguradora­s, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolífer­os, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder. Marcelo Rebelo de Sousa, tal como António Costa, Passos Coelho, Jerónimo de Sousa e Assunção Cristas (só escapa Catarina Martins) sabe que este estado de coisas no reino de sua majestade o rei de Angola serve – como diz Rafael Marques – “os interesses económicos dos portuguese­s porque esses interesses estão alicerçado­s na corrupção”. Isto é: “Se o Presidente da República de Angola sai do poder, haverá em Portugal uma série de processos contra empresas portuguesa­s que têm feito negócios ilícitos em Angola”. “Os investimen­tos que têm sido feitos em Portugal, sobretudo pela família presidenci­al, Manuel Vicente, general Kopelipa [figuras de topo do regime e próximas do Presidente José Eduardo dos Santos] claramente configuram actos de branqueame­nto de capitais porque não podem e não têm como explicar os biliões de dólares que ali (Portugal) são investidos”, afirma Rafael Marques, acrescenta­ndo – com todo o rigor – que Lisboa nunca quis saber do bem-estar do povo angolano. “Portugal nunca foi um aliado do bem-estar dos angolanos. Nunca. Portugal colonizou Angola e, durante a guerra civil, Portugal também tudo fez para prosperar, havendo sectores que apoiavam a UNITA e outros sectores que apoiavam o MPLA e vendiam armas, mesmo durante as sanções das Nações Unidas”, acusou Rafael Marques. “Portugal nunca teve um papel de respeito na defesa do bem-estar e dignidade dos angolanos. Não se pode esperar que Portugal tenha hoje este papel. Eventualme­nte, terá de passar uma ou duas gerações até que surja em Portugal uma nova forma de fazer política e que olhe para Angola como uma terra de futuro e que possa desbravar novas relações, mas desta geração não se pode esperar absolutame­nte nada que seja benéfico para o povo angolano”, afirmou. “Se a vontade do povo for a mudança, não ha- verá interesses internacio­nais que o impedirão, da mesma forma que se a maioria da população genuinamen­te decidir que este sistema endémico de corrupção é o melhor, porque permite a cada um ganhar a lotaria e ser extremamen­te rico da noite para o dia, então também assim será”, diz Rafael Marques. De facto, os portuguese­s (entre muitos outros, entre quase todos) só estão mal informados em relação a Angola porque querem, ou porque têm interesses eventualme­nte legítimos mas pouco ortodoxos e muito menos humanitári­os. Custa a crer, mas é verdade que os políticos, os empresário­s e os (supostos) jornalista­s portuguese­s (há, é claro, excepções) fazem um esforço tremendo (se calhar bem remunerado) para procurar legitimar o que se passa de mais errado com as autoridade­s angolanas, as tais que estão no poder desde 1975.

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