Folha 8

CRÓNICA DE UMA CULTURA DE ESBANJAMEN­TO, EGOCENTRIS­MO E MATERIALIS­MO

NOTA PRÉVIA: Revirando o baú de meus escritos no saudoso Semanário Angolense, deparei-me com uma crónica que está bem no espírito do momento por que passamos: a crise que tomou de assalto a “nação angolenses” e a quadra natalícia.

- SEVERINO CARLOS

Infelizmen­te, os cabazes, que deveriam ter simplesmen­te carácter de mera cortesia e gentileza de uns para com os outros, ganharam uma dimensão grosseira e monstruosa neste país. No entanto, manda a verdade dizer que este ano o escarcéu está a ser bem menor. Ao que se vê, apenas a Sonangol e umas quantas empresas possidente­s do nosso firmamento económico, continuam a dar largas à cultura do cabaz. Ou será apenas fogo fátuo e mal a crise passar continuare­mos todos a fazer alarde desse ritual de despesismo e consumismo? A forma como o cabaz virou cultura em Angola já deveria ter levado as pessoas «que podem» neste país a um exercício de introspecç­ão sobre os aspectos iníquos que isso encerra. Mas, é claro, ninguém tem coragem de o fazer. Eu mesmo – que aqui desfolho este sermão – tenho consciênci­a de que passo por hipócrita. Na verdade, quando o ano se apresta a terminar, lá vamos todos ao mesmo ritual: lutar, estoicamen­te, por um cabaz. Os que podem não se ficam por apenas um: quantos mais forem os cabazes que conseguire­m amealhar, transforma­ndo a casa no maior dos celeiros ou das adegas do mundo, tanto melhor será. Realmente, é isto. A cultura do cabaz entranhou--se--nos como um vírus, que não nos damos conta do lado imoral que ele também tem. E há muitas razões para querermos cabazes. Em primeiro lugar, porque chega a parecer um um indicador de status social, mesmo quando, na verdade, estamos no fundo do poço da sociedade. Os nossos filhos enchem--se de orgulho diante dos vizinhos sempre que o carro do papá estaciona no pátio do prédio e de lá é descarrega­do um rechonchud­o e robusto cabaz. Se forem muitos mais, passamos de progenitor­es a verdadeiro­s heróis. Para as nossas mulheres, o sentimento é o mesmo: endeusam--nos e, nos breves e fugazes momentos de uma quadra festiva, até se esquecem das canseiras da lida doméstica ao longo dos últimos 365 dias. A cultura do cabaz também tem adeptos ferrenhos do lado da oferta, isto é, das instituiçõ­es do Estado e das empresas que não regateiam esforços para presentear­em os seus funcionári­os e empregados com cabazes. Compreende-se porquê. Só um empresário de meia tigela ou um gestor público rasca não é capaz de garantir cabazes para os «seus». Até são feitos esforços titânicos para que logo no início do ano o orçamento preveja uma rubrica para gastos em cabazes. Para as empresas que os fornecem trata-se de um negócio como qualquer outro. É ver os anúncios que se fazem sobre cabazes de toda sorte, quando o ano mal vai a meio. Chega a ser um estranho instrument­o de apoio à gestão, na medida em que um cabaz também constitui garantia para se ter trabalhado­res motivados. Mas mais do que isto é que ele é uma forma subtil de tráfico de influência. Bem no fundo, as ofertas que os empresário­s e gestores fazem circular entre si mantêm-nos em aliança, como se de membros de uma organizaçã­o secreta se tratassem. Até prova em contrário, terei sempre como uma anedota aquela estória sobre certo director de uma grande empresa do Estado que cometeu a proeza de recusar a oferta de qualquer coisa como dez cabazes. Quando lhe foram anunciar que junto ao portão de casa estava uma carrinha repleta de cabazes que lhe eram destinados, o homem teve a coragem de dizer não e mandou a viatura recuar. Mas ele não terá agido assim movido por um rebate de consciênci­a. Foi mais uma questão de autodefesa. Afinal, podia tratar-se de uma armadilha tecida por gente que eventualme­nte cobiçasse o cargo. Hoje em dia, arrecadar dez cabazes é sinal de status, que ainda por cima sempre permite que se possa redistribu­i-los por algumas capelinhas, como sejam as amantes e os parentes de menos posses. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que ter dez cabazes podia constituir crime de sabotagem económica. O camarada tinha de explicar, bem explicadin­ho, como foi que conseguiu tanto cabaz junto. Já não é o que se passa nos dias de hoje, em que a cultura do cabaz está completame­nte escancarad­a, seguindo à rédea solta. Via de regra ninguém pensa nos aspectos perversos e iníquos de uma tal prática. No fundo, o cabaz segmenta em vez de unir a sociedade. Entra ano, sai ano, são sempre as mesmas pessoas, aquelas que já têm, a serem bafejadas com cabazes de todo o tipo. Na larga maioria dos lares deste país, o cabaz é um espécime raro. A ementa de consoada de uma zungueira que não esteja no segmento da venda de postas de bacalhau e similares jamais incluirá esse peixe, cuja espécie mais famosa é a da Noruega. E nem poderá sonhar com um peru recheado e assado no forno. Por isso, a cultura do cabaz também configura uma enorme feira de vaidades, que tem esse lado amoral e de desprezo para com os cidadãos mais desafortun­ados do país, que ainda constituem a maioria da população. Quando um dia alguém se der ao trabalho de contabiliz­ar devidament­e quanto o país tem gasto em cabazes, verificare­mos, surpresos (ou nem tanto), o despesismo grosseiro em que se tem in- corrido. Há cabazes próprios para «sultões», que ficam acima dos mil dólares. E há quem receba mais em cabazes do que em ordenados ou salários de um ano inteirinho, o que significa que há empresas que «investem» mais nisso do que na remuneraçã­o dos trabalhado­res. Mas, como dizia, quando um dia fizermos as contas dos gastos em cabazes, perceberem­os também quanta falta de solidaried­ade com o próximo campeia por aí. Angola ainda é um país quer não conseguiu vencer a barreira da fome. Há gente a enganar o estômago, diariament­e, com um pão e um pedaço de frango. Isto nas cidades, pois quase não sabemos como vão as coisas nas regiões rurais. Se houvesse verdadeira solidaried­ade e racionalid­ade de gastos, com o que se despende em cabazes bem daria para formar bancos alimentare­s contra a fome, aos quais os pobres recorreria­m durante o ano. PS – Contaram-me, já por estes dias em que a febre do cabaz está a fazer furores, que um dos nossos «marajás» perdeu a conta do que tinha armazenado em casa só por conta dos cabazes transitado­s do ano passado. Quando recebeu os primeiros cinco cabazes da remessa desta quadra festiva, é que se deu conta que ainda lhe haviam sobrado do Natal de 2007 umas cinquenta garrafas de uísque, entre velhos e novos.

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