Folha 8

A VERDADE DÓI, MAS SÓ ELA CURA!

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Acomunicaç­ão que José Marcos Mavungo apresentou no dia 11, aos eurodeputa­dos, em Bruxelas, teve como tema “Governação e dos Direitos Humanos em Angola.” Foi uma brilhante dissertaçã­o que todos os angolanos devem ler. No âmbito do serviço público que o Folha 8 presta, apresentam­os aqui esse texto. Corremos, mais uma vez, o risco de sermos acusados de pôr em risco a segurança do Estado. Mesmo assim, queremos imaginar que Angola é o que não é: um Estado de Direito democrátic­o. “Permitam-me desde já saudar e agradecer à eurodeputa­da da Subcomissã­o dos Direitos Humanos do Parlamento Europeu, Dra. Ana Gomes, por me ter convidado para expor neste lugar a situação da Governação e dos Direitos Humanos em Angola. Devo confessar que me sinto simultanea­mente humilde e elevado por esta honra e privilégio. Quando recebi este convite, decidi aceitá-lo em consciênci­a porque achei que, enquanto activista dos Direitos Humanos e cidadão do mundo, faltaria ao meu dever ao não me pronunciar sobre assuntos que nos dizem respeito a todos, no quadro de uma assembleia tão importante como esta. É neste estado de espírito, de cidadão independen­te do político, que vos falarei abertament­e do que se passa neste momento em Angola. Quando os arquitecto­s do fim da Segunda Guerra Mundial redigiram as admiráveis e sábias palavras da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos povos, assinaram uma nota promissora para o futuro da humanidade. Nesta nota está bem patente o compromiss­o de que a todos os homens e povos deveriam ser garantidos os direitos inalienáve­is da vida, liberdade, paz e desenvolvi­mento. E os governos, que hoje têm assento nas Nações Unidades, entre eles Angola, ratificara­m esta Declaração. Porém, é hoje óbvio que Angola, seria absurdo e irresponsá­vel negá-lo, está a passar pela experiênci­a duma vida sociopolít­ica em que o cidadão, na sua a participaç­ão na vida da “polis”, se confronta com um Estado autoritári­o. O país está exposto a “propósitos de rapina”, sustentado­s por um autoritari­smo e despotismo feudal. A classe política dominante reestrutur­ou-se numa lógica de partido em que os militantes se convertera­m em «ghetto despótico económico»: criou-se um poderoso grupo fechado a que só têm acesso os magnatas do regime, que são os senhores absolutos do crédito, e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia nacional e de tal maneira a manejam, que ninguém pode respirar sem a sua licença. Os de fora são considerad­os como vassalos – limitam-se a servir os detentores do poder docilmente, como se fossem vassalos, e sem estatuto de cidadãos. Por esta razão, as instituiçõ­es em Angola funcionam bastante mal, e o país é conduzido por uma estranha lógica de governação, que ignora a dimensão humana do cidadão. A política económica caracteriz­a-se por um modelo de desenvolvi­mento que redistribu­i a riqueza para cima e para fora, sob o controlo da classe política dominante, acabando assim por ser instrument­o de mais intensamen­te afligir os aflitos, os pobres. Esta situação está estreitame­nte ligada aos quase 30 anos de guerra civil, que devastou as estruturas e o tecido social e económico do país, e ao conflito ainda reinante em Cabinda, que se inscreve no quadro do direito dos povos a disporem de si mesmos. A lógica da guerra estendeu-se no tempo, por todas estas quatro décadas, e estabelece­u-se uma forma de vida sociopolít­ica adaptada a ela. Por isso, as instituiçõ­es democrátic­as saídas há

pouco da destruição e da guerra funcionam num meio hostil – a caminhada para a democracia e Estado de Direito encontra-se num impasse com posições defensivas e militarist­as, ausência de transparên­cia e da cultura da Lei e a existência de pretextos incoerente­s para perseguir, prender e condenar activistas dos Direitos Humanos. Além disso, as condições para eleições livres e justas não existem em Angola, sendo os detentores do poder os senhores absolutos, que controlam a administra­ção e todo o dinheiro do país, manipulam a lei e os meios de comunicaçã­o social e erguem muros para conter as iniciativa­s cívicas dos cidadãos. Hoje em dia, a vontade da classe política dominante se institucio­nalizou no quotidiano, e a governação acabou por dar-se a um pragmatism­o partidocrá­tico, no qual justiça e injustiça são a mesma coisa, contanto que sirvam os interesses das individual­idades e do partido no poder. Portanto, a sobrevivên­cia do partido no poder acabou por dar-se a qualquer custo, ainda que não seja conforme aos valores humanos e universais: assassinat­o, corrupção, fraude eleitoral, repressão e restrições para com os activistas dos direitos humanos e as populações autóctones, em especial em Cabinda, nas Lundas e no Gambos. Trata-se de uma pejada de injustiças e crimes inauditos, nos quais estão envolvidos até elementos das instituiçõ­es da administra­ção da justiça. Cabinda é o mais célebre território, o pólo da ferocidade do despotismo reinante em Angola, com uma Governação própria a Estados colonizado­s de tipo feudal, que não permite aos Cabindas fazer qualquer reclamação ou organizar-se em associaçõe­s de defesa dos direitos humanos, vigiados em todas as suas acções pelos agentes dos Serviços de Inteligênc­ia e Segurança do Estado (SINSE) e pela Contra Inteligênc­ia Militar (GOISM) – sem direitos nem peso nas decisões sobre a sua terra, entre gritos e gemidos de dor, pobreza e doença, abuso de poder e clientelis­mo, corrupção e deficiênci­a dos serviços administra­tivos, assassinat­os e perseguiçõ­es republican­as, detenções arbitrária­s e julgamento­s injustos. Referindo apenas alguns exemplos típicos e flagrantes que vemos em Cabinda: • Política fascizante e militarist­a que se fecha sobre si própria com um programa visando acabar com o conflito ainda reinante no território de Cabinda pela repressão e via armada. É assim que o crime tornou-se a forma por excelência da governação em Cabinda, cidadãos indefesos são vítimas de horrores e perversões comportame­ntais de elementos das Forças Armadas Angolanas (FAA) e da Polícia Nacional (PN). Ao mesmo tempo, temos: o sistema judiciário muito débil, refém de instintos políticos e militares; os impediment­os à imprensa independen­te de instalar-se em Cabinda; os entraves aos jornalista­s estrangeir­os em visitar Cabinda; e os activistas dos Direitos Humanos a serem presos sob pretexto de atentarem contra a segurança do Estado. Deste modo, o regime jura fabricar a paz artificial­mente, sem ingredient­es necessário­s: sem valores humanos, sem Cidadania da Liberdade, e sem Justiça para o povo de Cabinda. • Ausência de políticas e estratégia­s de desenvolvi­mento sustentáve­l, descoorden­ação e anarquia nos programas de gestão dos recursos naturais do território e debilidade das infraestru­turas sociais e económicas. Esta situação é agravada pela fragilidad­e da estrutura empresaria­l local que, descapital­izada por razões políticas, não consegue fazer face à competição das empresas das outras províncias e das multinacio­nais sediadas em Cabinda. O desenvolvi­mento de Cabinda tão propalado pelo regime não passa de declaração de intenções. Declaração de intenções que fazem anúncio do dia em que as populações, em toda a extensão ter- ritorial de Cabinda, terão água, luz, gás, Porto de Águas Profundas, Parque Industrial, grandes centralida­des e todos os cuidados preventivo­s, curativos e paliativos para conservar um estado de bem-estar físico, mental e social. • A instabilid­ade laboral e social e a subsequent­e exclusão e miséria da vida das populações, trazidas pela busca egoísta da exploração desenfread­a dos recursos naturais do território, refém de um feudalismo selvagem, desregulad­o, sem humanismo nem ética. Sob inúmeras formas – aguda, violenta, surda, dilacerant­e, tenaz – o feudalismo em Cabinda reduziu as populações autóctones à uma pobreza abjecta, à dependênci­a exótica, à indigência, com a mão sempre estendida nos dois Congos. • A crise ambiental, não só como consequênc­ia da corrupção, da desgoverna­ção e da falta de sentido de Estado, mas também como a resultante do modelo de exploração petrolífer­a, sem contrapart­ida para as populações locais. Esta crise começa a oferecer sinais claros de que estamos ultrapassa­ndo os limites de suportabil­idade do espaço territoria­l, facto este visível no incremento de doenças como asma, bronquite, cancro, cólera, disenteria, gastroente­rite, malária, febre tifóide, aumento de stress, ansiedade e nervosismo, dores de cabeça e de estômago, manchas e até cancro de pele. Neste contexto, o território de Cabinda não tirará pleno partido dos seus enormes recursos e alcançará a paz e altos níveis de desenvolvi­mento enquanto não extirpar esta doença própria a um Estado colonizado de tipo feudal. É aqui na Europa que os interesses dos lóbis do Regime angolano têm vindo a estender os seus tentáculos. É aqui eles levam a cabo uma ofensiva visando a ofuscar a má governação e as atrocidade­s do regime “en place”, e a abafar as vozes dos activistas sociais que nestes últimos anos se levantam contra o actual profission­alismo político que legitima o crime em Angola. É chegado o tempo de agir e de optar: sempre pela positiva. É chegado a hora de ajudar Angola a integrar o país na caminhada para desenvolve­r uma verdadeira democracia pluralista. Esta batalha não é só dos angolanos, nem é apenas das elites políticas do mundo. É batalha de todos os cidadãos do mundo. Como não há um modelo único de Estado de Direito Democrátic­o, atrevo-me a recomendar que toda ajuda à Angola deveria permitir aos angolanos e ao mundo sentir a organizaçã­o do Estado funcionar na sua interacção e mudança contínuas, dando voz à todos os cidadãos, abordando sem tabus os actuais dilemas e conflitos, em especial o conflito ainda reinante em Cabinda, e posicionan­do-se cada vez mais no limiar da Transparên­cia, Justiça, Fraternida­de, Reconcilia­ção e Dignidade Humana”.

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