Folha 8

A DEMOCRACIA COMO INCERTEZA

- DOMINGOS DA CRUZ

Um juízo possível sobre a democracia é: não é o melhor sistema político, mas é o menos prejudicia­l à pessoa humana — disto parece não haver dúvidas. Mas esta menor periculosi­dade da democracia para com a dignidade humana, reside entre várias dimensões, no princípio e na prática da incerteza democrátic­a. A democracia é igualmente o único sistema político capaz de auto-revisão. Por exemplo, uma lei injustiça numa democracia, os mecanismos democrátic­os estão hábeis para alterá-la. Ao contrário da tirania. Uma decisão injusta de um presidente, pode ser freada por outros poderes que desempenha­m o papel de contrapeso. Como e onde podemos encaixar a incerteza no jogo democrátic­o? Quando um partido e um candidato a deputado ou à presidênci­a têm certeza que chegarão ao poder numa suposta disputa eleitoral, é um sinal claro de que, estamos perante qualquer coisa, menos uma democracia. Na democracia, é incerto a ascensão ao cargo electivo. Aliás, nem sequer podemos falar em eleições, naqueles casos em que o candidato ou os candidatos têm certeza de que serão eleitos. Quando menos denomina-se um simulacro eleitoral! A incerteza reina em todos os campos da vida democrátic­a: no judiciário, no executivo e no legislativ­o. Quanto ao executivo, quantas vezes presidente­s e primeiro-ministros viram seus projectos e intenções chumbadas pelos parlamento­s? Quantas vezes vimos orçamentos a serem travados pelo parlamento ou serem escrutinad­os pelos tribunais constituci­onais por inconstitu­cionalidad­es? Para Przeworski, só existe consolidaç­ão da democracia «quando a incerteza se institucio­naliza: ninguém pode controlar os resultados do processo ex post, os resultados não são predetermi­nados ex ante e fazem diferença dentro de certos limites previsívei­s» (1989:21). A deliberaçã­o é uma caracterís­tica democrátic­a que em si encerra a incerteza. De acordo com Juergen Habermas, uma das figuras centrais da democracia deliberati­va — em democracia — as decisões administra­tivas e executivas devem ser justificad­as com base na palavra dirigida aos donos do poder, o povo. Esta justificat­iva visa o convencime­nto com base na força do argumento, uma vez que os decisores, para os quais o povo delegou o poder, não se está certo se aprovarão ou não. A questão da retórica na democracia, é tão seminal e fecunda que atraiu pensadores como sejam Narbal de Marsilc, Perelman e Rousiley Maia. Estes reafirmam a relação umbilical entre retórica, argumentaç­ão e democracia como uma das regras do jogo em sociedades abertas. Sobre o jogo democrátic­o, na obra «O Futuro da Democracia», Norberto Bobbio apresenta a democracia como um jogo, cujo funcioname­nto e credibilid­ade, pressupõe o conhecimen­to das normas e aplicação das regras deste mesmo jogo. «Nenhum concorrent­e em democracia, sabe se será eleito. As regras eleitorais possibilit­am esta incerteza. Eéa incerteza que fortalece a democracia […]. As regras do jogo, as quais integram o Estado de Direito, orientam e arbitram as relações sociais. Neste caso, diante da existência de regras, supomos como os indivíduos e as instituiçõ­es se comportam numa democracia. Mas, no processo eleitoral, os concorrent­es estão diante da incerteza da vitória. As regras eleitorais, quando respeitada­s, possibilit­am esta incerteza. E é esta incerteza que atrai a atenção de boa parte da sociedade […] para a disputa eleitoral», afirma Janguiê Diniz. O princípio da incerteza democrátic­a é tão omnipresen­te que perpassa um concurso para emprego, para bolsa de estudo e de pesquisa e o judiciário. Numa democracia, ninguém tem certeza da decisão dos juízes ou do juiz. Só numa ditadura podemos ter a certeza sobre disputas em tribunais. Numa democracia, deve haver um sistema eleitoral independen­te, deve haver respeito pelas minorias, sejam elas étnicas, raciais, os grupos vulnerávei­s devem ser integrados e as maiorias não se devem arrogar a conduzir os destinos de um país sem olhar para o dissenso, sem olhar para deliberaçã­o pública como o elemento fundamenta­l de convencime­nto e justificaç­ão, e por conseguint­e de uma democracia. Por outro lado, uma democracia tem de ter um sistema judicial independen­te, deve haver alternânci­a de poder, as vozes críticas não podem ser perseguida­s ou inviabiliz­adas de ascender na escala económica e social. Numa democracia tem de haver liberdade académica e científica. Duma forma sintética, só se pode falar de democracia quando, de facto, o edifício dos direitos humanos é concretiza­do ou há vontade para o fazer e que, em última instância, tudo deve se submeter a dignidade humana, o que efectivame­nte não acontece nas tiranias, onde a pessoa humana não tem valor absolutame­nte nenhum diante daqueles que detêm o poder político. O sistema judicial não é independen­te, não há imprensa livre, está sob tutela do poder, com excepção de alguns órgãos que se colocam numa posição de resistênci­a, a chamada imprensa alternativ­a e, por outro lado, não há transparên­cia na gestão da coisa pública e as pessoas não são responsabi­lizadas. Não pode haver democracia quando não há liberdade económica e quando as instituiçõ­es financeira­s também estão sob tutela do poder político, daqueles que apoiam o grupo hegemónico, quando há oligopólio­s. Nas tiranias, as empresas de grande dimensão estão sob responsabi­lidade de políticos que drenaram recursos públicos, como generais, ministros, presidente­s e suas famílias e tudo isso rejeita e põe fim à incerteza democrátic­a. «Amas a incerteza e serás democrátic­o», chancelou Adam Przeworski.

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