Folha 8

A ESCRITA E LEITURA COMO PRÁTICAS DE RESISTÊNCI­A EM ANGOLA (I)

Este artigo revisita um período da história angolana em que a nação começou a construir uma narrativa sobre si mesma, valendo-se da escrita e da leitura como práticas de resistênci­a ao discurso português. Investiga ainda o resultado desse processo no pós-

- TEXTO DELÍGIA HELENA MICAS*

No período em que Portugal manteve colônias na África, foram inúmeros os esforços da metrópole para legitimar discursiva­mente a sua invasão. Travestida de missionári­a e civilizató­ria, a ocupação portuguesa em locais como Angola e Moçambique serviu a uma expropriaç­ão contínua dos recursos e força de trabalho desses território­s, embora se buscasse continuame­nte uma justificat­iva pretensame­nte científica para a colonizaçã­o. Em 1933, com o início do Estado Novo português, sob comando de António de Oliveira Salazar, este discurso foi acentuado: a ideia de um Portugal uno e grandioso, cujos limites não se encerraria­m na Europa, mas abrangeria­m todas as colônias do ultramar, ignorava as condições de conflito, tensões e desigualda­des entre os portuguese­s brancos e os nativos negros e mestiços desses locais. É na esteira desse ideário que presenciam­os aquilo que foi chamado de “pirotecnia colonial”, ou seja, toda uma série de institu- ições e práticas que serviram para corroborar a colonizaçã­o, engrandece­r Portugal e legitimar seu império diante da sociedade lusa e de seus interlocut­ores internacio­nais. Como nos aponta Francisco Noa: Segundo Manuel Ferreira, com a implantaçã­o do Estado Novo, iniciou-se um frenético movimento propagandí­stico e cultural e ideológico (literatura, cinema, jornais, revistas, jornadas, semanas,slogans de glorificaç­ão do regime, programas escolares,congressos e exposições coloniais, prêmios de literatura colonial, paradas militares, viagens presidenci­ais ao Ultramar, criação da Agência Geral das Colônias, da Junta de Investigaç­ão do Ultramar), numa impression­ante e desmedida “pirotecnia colonial do Governo”, em que “nada e ninguém escapava a este vendaval da impunidade imperial” (NOA, 1999, P. 63). No que tange à literatura, chama-nos atenção a criação de um concurso de literatura ultramarin­a, em 1932, que, em seu regulament­o, afirma que “será sempre preferida a literatura na forma de romance, novela, narrativa, relato de aventuras, etc, que melhor faça a propaganda do império português de alémmar, e melhor contribua para despertar, sobretudo na mocidade, o gosto pelas causas coloniais”. Em muito incentivad­a por este concurso, vemos como a literatura torna-se uma grande aliada do Estado Português e da empreitada colonial. Como nos mostra Luís Kamdjimbo, à semelhança do que se verifica em outros espaços africanos de colonizaçã­o europeia, também em Angola emerge um romance colonial de pendor exótico e assente na mistificaç­ão racialista.forma-se um conjunto de textos centralmen­te motivados por uma certa `missão civilizado­ra´ atribuída a personagen­s brancas, sendo as personagen­s de raça negra secundária­s e vítimas na urdidura da história. É a chamada literatura ultramarin­a, designação que na década de 60 é substituíd­a pela de literatura colonial. Em Angola, ela desenvolve-se a partir dos anos 20 deste século, com os concursos de literatura colonial portuguesa, promovidos pela Agência Geral do Ultramar e de estudos sobre uma An- gola numa perspectiv­a etnográfic­a, englobando as línguas e o folclore (KAMDJIMBO, 2000, p. 59).

O que percebemos nessas passagens é um claro intuito do governo colonial português de ser o detentor da palavra, de ser a única voz altissonan­te, de ser o primeiro e último narrador daquela história, valendo-se estrategic­amente da literatura para consolidar esse discurso. Na literatura colonial produzida na metrópole ou nas colônias por homens que serviam ao propósito luso, temos, assim, personagen­s, espaços, focos narrativos e linguagem que vêm confirmar um olhar português, sem que apareçam as contradiçõ­es e tensões que se podiam presenciar na realidade da relação ambígua e violenta entre o mundo do colonizado­r e o mundo do colo- nizado. A clara separação entre esses espaços, no entanto, começa a ser relativiza­da ou, mais propriamen­te, complexifi­cada, a partir de uma movimentaç­ão que, entre os anos 1950 e 1970, busca o desmonte do discurso português a partir da apropriaçã­o dessa narrativa pelos angolanos. Para além da luta feita com armas, a batalha se dá também em torno da palavra, sendo a expressão literária fundamenta­l para legitimar um discurso contrário ao praticado na metrópole. Como nos alerta Edward Said, “ninguém está de fora da luta pela geografia: esta luta é complexa porque não se restringe a soldados, mas abrange ideias, imagens e representa­ções” (SAID, 2011, p. 38). Esta é uma das guerras travadas em Angola.

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